Hoje, sábado, continuando a alternatividade referida na postagem "Reformulação de meu blog"(16.06) postarei para vocês na nova seção "Ética&Moral" a subseção "Princípios e Valores".
Visando a melhor compreensão do tema o subdividirei em 4 partes :
"Princípios Éticos","
"Valores Éticos",
"Princípios Morais" e
"Valores Morais"
Como a Subseção é quinzenal hoje postarei um artigo relacionado aos "Princípios Éticos" e nos sábados 11, 18 e 25.07 artigos relativos às outras partes.
Antes de tudo, esclareço que esse texto são algumas conjecturas, que exponho na forma de um ensaio a respeito da existência, ou não, de princípios básicos inatos da Ética. Tentarei lançar alguma mínima luz sobre questões do tipo: existem princípios éticos universais, ou não? De onde vieram nossas raízes Éticas? Suas bases são inatas? A evolução comportamental e cultural do Homo sapiens sapiens acabou, inexoravelmente, transformando os princípios primordiais éticos absolutos em subjetivos?
Lembro que, de maneira alguma estou postando as ideias subsequentes como uma verdade estabelecida, e nem seria tão audaz, muito menos impertinente em afirmar que tal discussão é ponto consensual na sociedade. Muito pelo contrário. Tentarei nesse texto, fazer uma busca pelas raízes de nossos princípios éticos. Se terei sucesso, não sei. Mas já tenho consciência que essa busca de fato não é uma tarefa fácil, nem de longe simples.
Feitos os devidos esclarecimentos, partirei da ideia que se subentende que um princípio básico ético deva primar pela universalidade. Sendo assim, ao contrário do que o movimento pós-moderno afirma, a ética naturalista defende a ideia de que existem "regras de ouro", que são norteadas por comportamentos adaptativos peculiares a muitos organismos sociais, e que respaldam o sucesso de sobrevivência e reprodução dos indivíduos dessa sociedade.
Mas antes de explicar o porquê supõe-se a existência de princípios morais e éticos básicos, acho interessante "dar nome aos bois".
O que se entende por moral?
“[...] um conjunto de valores, considerados universalmente como norteadores das relações sociais e da conduta dos homens. Esse conjunto dos princípios, adotados por um indivíduo que norteia o seu modo de agir e pensar define sua moral." -(Dicionário Houaiss)
E o que se entende por ética?
Segundo autor mexicano Sanchez a "Ética é a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade". Se Ética é ciência ela deve ter um objeto, que no caso será a moral, além de possuir leis e métodos próprios. A ética vai além da moral: procura os princípios fundamentais do comportamento humano (J. R. Nalini). Dessa forma, a Ética está para a moral assim como a citologia está para a célula.
Porém, alguns autores consideram ética e moral sinônimos.
Mas para uma organização melhor das ideias, acredito que a separação de significâncias da moral e da Ética deva prevalecer. Assim podemos dizer que:
ÉTICA --> MORAL
Permanente --> Temporal
Universal --> Cultural
Regra --> Conduta de regra
Teoria --> Prática
Princípios --> Aspectos de conduta específicos
Logo, se a ética é permanente, universal, estabelece-se como regra, mune-se como teoria e carrega princípios, não há porque não dizer que existe uma Ética universal e objetiva, em contraposição à Ética Relativa (subjetiva). Essa, por sua vez, é estabelecida sobre o estado atual do mundo. A observação do que existe constrói a teoria explicativa para o comportamento vigente. Além disso, a Ética Relativa é mutável, presta a convenções, tornas-se subjetiva, derivando várias formas aplicáveis de normas para uma mesma situação, por exemplo:
Para nossa sociedade, é moralmente e antiético matar crianças que possuam algum tipo de deficiência (qualquer que seja), porém para algumas tribos indígenas, enterrar vivas as crianças que não tenham condições de se desenvolver independentes não acarreta nenhum tipo de problema ético ou moral.
Assim, percebemos que a Ética Relativa não carrega consigo valores universais, objetivos, porém são condicionais, construídos de acordo com um dado tempo, em um dado ambiente, sob aspectos de certa cultura. Poderia incluir ainda, a Ética Subjetivista, onde Protágoras (487 - 420 a.C.) dispõe o princípio básico de que “o homem é a medida de todas as coisas existentes ou inexistentes”.
Sob o aspecto individual diria que a Ética Subjetivista impele cada um a estabelecer seus valores éticos e/ou morais de acordo com a sua conveniência. As necessidades do homem são o imperativo e a máquina remarcadora de valores. Aqui é interessante frisar que a Ética Subjetivista pode ser implantada de maneira coletiva, ou seja, a sociedade ou comunidade é o que estabelece o fator consensual do que é justo, bom, verdadeiro, etc. Nesse caso, não há um critério objetivo para a construção dos princípios éticos, pois esses irão variar de acordo com o Ethos do grupo. Durkheim, seguindo essa ótica subjetiva, afirma que “a moral não é um sistema de regras abstratas que as pessoas trazem gravadas na consciência ou que são deduzidas pelo moralista no isolamento de sua sala. É uma função social ou, mais que isso, um sistema de funções formado e consolidado sob a pressão das necessidades coletivas" [10].
Contudo os princípios Éticos Subjetivistas incorrem em uma questão delicada. Se é a sociedade quem define previamente os padrões e valores éticos e morais, lançando o indivíduo à heteronomia de valores, têm-se a possibilidade de que a própria sociedade avalize os seus erros, como no caso das sociedades nazistas, faxistas e até mesmo canibais que convivem com seus erros éticos. Outro perigo, na minha opinião, do subjetivismo ético, é a possibilidade dele originar o relativismo absoluto.
Fica clara que a grande questão e disputa sobre as origens dos nossos códigos éticos e morais situam-se na polivalência de nossa espécie. A peculiaridade do Homo sapiens sapiens em suas relações sociais e simbólicas imputa a emergência de um ser "bio-psico-cultural-social-individual". Edgar Morin em sua obra, Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro, coloca que "[..] somos indivíduos de uma sociedade e fazemos parte de uma espécie. Mas, ao mesmo tempo em que fazemos parte de uma sociedade, temos a sociedade como parte de nós, pois desde o nosso nascimento a cultura se nos imprime. Nós somos de uma espécie, mas ao mesmo tempo a espécie é em nós e depende de nós. [..] Portanto, o relacionamento entre indivíduo-sociedade-espécie é como a trindade divina, um dos termos gera o outro e um se encontra no outro. A realidade humana é trinitária.” [1]
Mas o que diz a Ética Naturalista, a Ética Apriorística?
Retomando o conceito da Ética Apriorística ou Absoluta, a base de suas relações de valores é a razão. Assim, uma teoria explicativa é elaborada para em seguida é lançada ao mundo para ver se é adequada, ou não. Dessa forma, cada ser humano deveria de ter um sistema cognitivo inato de discernimento ético, que por sua vez, indicaria racionalmente o que deve ou não ser feito. Dentro desse enfoque, a Ética se torna atemporal, absoluta, tendo valores éticos que podem ser conhecidos e ensinados a priori, não importando o tempo e/ou cultura.
Mas será que possuímos essa "pré-programação"? (digo pré-programação para não incorrer no erro determinístico dos genes, pois sabemos que o comportamento humano é resultado de uma vasta combinação e luta de diversos módulos em nossas mentes).
Mas então, existe algum comportamento que daria respaldo aos princípios éticos universais? Suponho que sim. A lei de ouro da ética respalda-se da seguinte forma:
"Não faça ao outro o que não queres que o outro faça a ti.
Ou, Faça ao outro o que queres que o outro faça a ti."
A primeira reporta a ação de maneira passiva, a segunda denota a pró-atividade ao ato. Esse seria um caminho para buscarmos os princípios fundamentais de nossos valores Éticos? Mas por quê? Pelo indicativo de universalidade que é retratado em diversas citações e passagens históricas.
Hinduísmo: “O dever é, em suma, isto: não faças aos outros aquilo que se a ti for feito, te causará dor”. Mahâbhârata, 5, 1517.
Budismo: “Não atormentes o próximo com o que te aflige”. Udanavarga, 5, 18.
Confucionismo: “Não faças aos outros aquilo que não desejas que te façam”. Analecto, 15, 23.
Zoroastrismo: “Só terás boa índole quando não fizeres aos outros o que não for bom para ti próprio”. Dadistani-dinik, 94,5.
Taoísmo: “Considera o lucro do teu vizinho como se fora o teu próprio e o prejuízo do teu vizinho como se fora teu próprio prejuízo”. T’ ai Shang Kan Ying P’ ien.
Judaísmo: “Se algo te fere, não o use contra o próximo. Isto é todo o Torah; o mais simples comentário”. Talmude.
Islamismo: “Ninguém será um crente enquanto não desejar para o seu próximo aquilo que desejaria para si mesmo”. Tradições.
Cristianismo: aqui Jesus Cristo põe de forma pró-ativa a lei de ouro da ética - “Não faça ao outro o que não queres que o outro te faça”, dizendo: “Tudo que quereis que os outros vos façam, fazei primeiro a eles” (Mateus, VII, 12).
Talvez os valores éticos não sejam moldados subjetivamente apenas, mas tenham sido constatados aprioristicamente, derivando-se de comportamentos sociais menos complexos de nossos ancestrais, anteriores ao pleistoceno. É cabível supor que várias formas de regra de ouro existam ou existiram, e tenham sido selecionadas positivamente em seus primórdios como um comportamento inato em nossos ancestrais.
Em seu livro O gene egoísta [9], Richard Dawkins serve-se de uma análise a respeito da agressividade. Segundo a teoria do gene egoísta, os organismos são máquinas, veículos de condução para os replicadores. Esses, por sua vez, seriam os principais alvos de seleção natural e objetos da hereditariedade. Pois bem, seguindo esse conceito, Dawkins procura explicar como uma máquina egoísta, construída por seus genes egoístas, lida com outras máquinas egoístas? Afinal, para uma máquina de sobrevivência, outra máquina de sobrevivência (excetuando-se seus filhos e parentes próximos) é parte do seu meio ambiente, não se diferenciando muito de uma pedra ou um rio, a não ser pelo fato de quando agredida acaba revidando a agressão.
Sabemos que a rede de interação entre organismo no meio ambiente é complexa e intricada, o impacto que cada ser causa no ambiente a sua volta é proporcional à interação construída entre os organismos, como no caso da relação predador-presa. Dessa forma, é fácil pressupor que máquinas de sobrevivência da mesma espécie acabam influenciando na vida uma das outras de maneira muito mais intensa e direta, como na disputa por parceiros sexuais, além de competirem pelos mesmos recursos dentro do seu nicho.
Dawkins, então, discute que a ação política mais lógica nesses casos seria o assassinato daqueles que rivalizam por recursos, devorando-os em seguida. É sabido que existe o canibalismo e o assassinato na natureza - somos um exemplo disso -, mas também é sabido que tais comportamentos não são freqüentes na natureza. Mas porque não é regra, na natureza, a disputa entre indivíduos da mesma espécie chegarem às vias de fato? Dawkins responde a essa questão aventando que a belicosidade é extremamente custosa, mesmo que traga um benefício imediato. Em um sistema complexo de interação social, onde surgem rivalidades, matar um rival não trará obrigatoriamente benefícios, podendo, inclusive, favorecer outros rivais, ao invés do próprio indivíduo que foi responsável pela eliminação.
Mas e se a eliminação fosse seletiva?
Mesmo sob esse aspecto, entrar em conflito com outro organismo trará ao indivíduo a mesma probabilidade entre matar ou morrer. E se o rival com quem disputo a posse de um recurso estiver mais bem preparado? E se o rival for mais forte? Tudo indica que meu adversário deva ser de fato mais preparado, pois ele dispõe do recurso que eu pretendo disputar. Além do mais, meu adversário deve ter conquistado esse recurso através de outros embates, nos quais se sagrou vitorioso
Esse exemplo hipotético indica que pode haver nos organismos um cálculo inconsciente da relação “custo-benefício” quando diante de um conflito. Estratégias diferentes de lidar com conflitos são amplamente estudadas na etologia. A análise dessa diversidade de comportamentos pode nos indicar se será adaptativa ou não, através do conceito de Estratégias Evolutivamente Estáveis. A teoria da EEE foi desenvolvida por Maynard Smith e prediz que, se estabelecerá um equilíbrio em grupos de seres vivos pelas forças da seleção natural até o ponto que este equilíbrio não será abalado por indivíduos que eventualmente tirariam vantagem (trapaceiros) do grupo estável. Então, em um cenário onde uma máquina de sobrevivência que “jogasse” apenas na forma de eliminar seus rivais a qualquer custo (agressor), versus, uma máquina que julgasse melhor recuar quando verificada a impossibilidade de vitória (ponderado), em um primeiro momento se mostraria preponderante o “agressor”. No entanto, quando esse se tornasse maioria, a belicosidade se tornaria uma desvantagem de tal magnitude que aqueles poucos que adotam a estratégia “ponderada” iriam prosperar.
Porém, para se estabelecer uma EEE, deve haver um equilíbrio, como citei anteriormente. Esse equilíbrio existirá quando houver uma dada proporção de “ponderados” e uma dada proporção de “agressores”, ou seja, uma proporção estável de genes de “agressores” e de genes de “ponderados” seria atingida no pool gênico – polimorfismo estável é o termo empregado na genética para esse estado. É claro que a dinâmica da luta de e seus comportamentos não são tão simplórios como no modelo que apresentei. Mas esse modelo se torna interessante ao avaliarmos as relações de interesses e disputas entre indivíduos dentro de uma sociedade de uma espécie qualquer, possibilitando averiguar o tipo de comportamento que irá preponderar e sua evolução. Contudo, não é apenas sob esse aspecto que reside uma provável origem inata de um sistema de reconhecimento de valores e regras básicas de conduta social.
A etologia e a psicologia evolutiva trouxe-nos a possibilidade de vislumbrar os mecanismos pelos quais a seleção natural atuou. A engenharia reversa possibilita estudar a evolução de um dado órgão através dos registros que os animais trazem em suas bagagens herdadas de seus ancestrais evolutivos. Até mesmo o aprendizado acerca dos subprodutos não adaptativos, na busca pelas adaptações, emerge das descobertas dessa areia – a religião é um exemplo de um subproduto não adaptativo que emergiu de sistemas cognitivos adaptativos.
“De fato, uma população de redes a que se permite desenvolver pesos de conexões inatos muitas vezes se sai melhor do que uma rede neural isolada a que se permite aprendê-los. Isso vale em especial para as redes com múltiplas camadas ocultas, que os animais complexos, principalmente os humanos, seguramente possuem” (S. Pinker, p. 191, Como Funciona a Mente) [2]
Os conhecimentos trazidos com a teoria de módulos mentais e a teoria de EEE acaba facilitando o entendimento de como padrões de comportamento sociais emergem em organismos que possuem algum nível de organização social mais complexo. O desenvolvimento de sistemas inatos que permitem ao organismo um aprendizado mais rápido, ou até mesmo com a funcionalidade de um sistema pré-programado possibilita o surgimento de comportamentos inatos em animais com um sistema nervoso complexo.
Os diversos estudos na área da etologia nos apresentam dados muito interessantes a respeito do sistema de valores e regras sociais entre os primatas. Até o momento já foram catalogadas mais de 60 formas de manifestações culturais e regras de convívio em chimpanzés. Comportamentos como a empatia já foram constatados em diversos grupos de primatas [3] [4]. Esse comportamento colaborativo pró-social foi positivamente selecionado entre nossos ancestrais símios. Isso quer dizer que, aqueles que possuíam a capacidade de colocar-se no lugar de outro indivíduo do grupo e “entender” suas necessidades, foram privilegiados na corrida pela reprodução, deixando o legado de seus genes comportamentais para a próxima geração. Além disso, um comportamento colaborativo aumenta em muito a capacidade de sobrevivência do indivíduo, ao contrário de uma estratégia de vida que provocasse a segregação e isolamento. Essas considerações podem indicar que em sua ancestralidade, nossos valores éticos podem ser frutos de comportamentos inatos, ou seja, aprendidos de maneira empírica e ensinados a priori, dispondo de um sistema cognitivo pré-programado para emergir tal comportamento.
Faz-se interessante constar, que o ambiente - isso engloba tanto os recursos para sobrevivência, como demais organismos que interagem com o indivíduo - é capaz de exercer duas funções primordiais, agindo de maneira muito “sutil” na evolução de comportamentos. Sobre o primeiro aspecto (o tradicional), o ambiente é encarado como um agente de seleção; é o ambiente que determina as variantes que irão ter sucesso e se reproduzirem de acordo com o cenário. Porém, hoje se sabe que o ambiente também tem a capacidade de influenciar no desenvolvimento, determinando quais as variantes que estarão presentes para serem possivelmente selecionadas [5] [6]. Através da assimilação genética, comportamentos originalmente aprendidos como resposta ao ambiente, podem vir a se tornarem inatos!
Muitos comportamentos de diversos animais são inatos, vários mamíferos, inclusive o bicho homem, carregam em seus cérebros comportamentos inatos. Mas o que são comportamentos inatos?
Comportamentos inatos ou instintivos são comportamentos complexos que sobrevêm sem jamais terem sido aprendidos, ou com muito pouco aprendizado. Os instintos são claramente adaptativos. Porém, acho difícil supor que tais comportamentos surgiram apenas através de pequenas mutações casuais em genes responsáveis pela construção de módulos mentais, como acredita Steven Pinker.
Afinal, seria essa casualidade mutacional a responsável pelo surgimento do medo que pequenos mamíferos possuem ao deparar-se com uma cobra ou seu sibilo pela primeira vez? Ou a reação de hienas, que mesmo quando criadas em cativeiro, e nunca tendo contado com leões, respondem com pavor ao sentirem o cheiro do leão pela primeira vez? E como nossa ética poderia estar “linkada” com esse aspecto?
Em seu livro, Evolução em Quatro dimensões, Eva Jablonka apresenta uma nova visão a respeito do processo evolutivo. Ela acrescenta a dimensão comportamental e simbólica (essa última exclusivo a nossa espécie) como fatores que possuem papel importante na evolução das espécies, tirando o foco de que evolução é dada apenas por um processo de seleção de modificações aleatórias de genes. Ela lembra que a seleção natural é a base para a explicação de diversas diferenças supostamente inatas em relação aos valores e atitudes de homens e mulheres. Mas a questão é: como um comportamento que fora aprendido pode se tornar inato através da seleção natural ou sexual? Como um ancestral nosso, ao verificar que agindo de maneira altruística, com empatia, pode em seu complexo mundo cultural transformar tal comportamento aprendido por tentativa e erro em algo inato?
Em seu livro, Evolução em Quatro dimensões, Eva Jablonka apresenta uma nova visão a respeito do processo evolutivo. Ela acrescenta a dimensão comportamental e simbólica (essa última exclusivo a nossa espécie) como fatores que possuem papel importante na evolução das espécies, tirando o foco de que evolução é dada apenas por um processo de seleção de modificações aleatórias de genes. Ela lembra que a seleção natural é a base para a explicação de diversas diferenças supostamente inatas em relação aos valores e atitudes de homens e mulheres. Mas a questão é: como um comportamento que fora aprendido pode se tornar inato através da seleção natural ou sexual? Como um ancestral nosso, ao verificar que agindo de maneira altruística, com empatia, pode em seu complexo mundo cultural transformar tal comportamento aprendido por tentativa e erro em algo inato?
Faço um pequeno exercício imaginativo para demonstrar o argumento de que comportamentos aprendidos venham a se tornar inatos:
“Considere uma população de aves canoras na qual os jovens precisem aprender seu canto com os adultos. Imagine que um novo tipo de predador chegue ao local, fazendo com que tanto os machos jovens quanto os adultos sejam forçados a cantar menos para não serem detectados e atacados. Graças aos predadores, os jovens vão ouvir o canto dos adultos com menos freqüência e terão menos chance de praticá-lo. Como conseqüência, se as fêmeas continuarem a preferir os bons cantores como parceiros, haverá forte seleção para um aprendizado rápido e preciso do canto. Os machos jovens que aprenderem a cantar mais rapidamente ganharão mais parceiras e terão mais filhotes, e alguns desses filhotes podem herdar a mesma capacidade de aprendizado.” (Jablonka, p. 341) [7]
Se o cenário proposto por Jablonka no exemplo acima permanecer por várias e várias gerações, onde a pressão de seleção esteja sobre a capacidade de aprender o canto cada vez mais rápido, o canto um dia se tornará praticamente inato. Esse mesmo processo pode ser aplicado para explicar o porquê de crianças que nunca tiveram contato com cobras ou aranhas, nem foram instruídos por seus pais, acabam demonstrando medo ao ver uma pela primeira vez. Essa teoria de assimilação de comportamentos foi bem estudada e proposta por Mark Baldwin, onde a se explica como a seleção natural poderia transpor caracteres adquiridos em caracteres hereditários. Esse efeito ficou conhecido como “efeito Baldwin”, muito similar ao conceito de assimilação genética. A ideia central é que as mudanças genéticas podem ir “atrás” das mudanças comportamentais.
É nesse ponto que entra a nossa capacidade inata de estabelecer valores éticos básicos e universais. Algumas pesquisas já demonstraram que bebês de entre seis e 10 meses de idade já possuem senso de moralidade/Ética em relação a eventos que requeiram um julgamento de valor [8]. Basicamente a experiência se dava da seguinte forma: Eram mostrados bonecos aos bebês, onde os bebês viam um boneco ajudando o outro a subir uma montanha e outro boneco atrapalhando o outro a subir. Em 90% dos casos os bebês escolheram o boneco que ajudava a subir a montanha. Para verificar se essa escolha era limitada a uma questão de mera interação social ou uma questão de valores, foi feito um segundo experimento onde os bonecos não possuíam olhos, apresentando-os apenas como objetos. Nesse caso houve mudanças nos percentuais de escolha dos bebês, onde seis dos 12 bebês de 10 meses e quatro dos 12 bebês de seis meses escolheram o boneco que ajudava. Isso indica que o experimento dois foi percebido de maneira diferente do experimento 1. O que indica é que os bebês distinguiram os dois experimentos como sendo o primeiro uma relação de interação social e o segundo não.
Houve ainda um terceiro experimento, onde foi testada a questão de valência de comportamentos julgados pelos bebês. Nesse experimento foram apresentados aos bebês três cenários distintos. O primeiro era uma cena onde havia uma situação de ajuda, um boneco ajudava o outro a subir uma montanha. A segunda cena era uma situação de neutralidade e a última onde um boneco atrapalhava o outro a subir. O resultado indicou a distinção de valores dados pelos bebês, entre a primeira cena de ajuda e a de neutralidade, os bebês escolhiam os bonecos que ajudavam. Entre a segunda cena (de neutralidade) e a terceira (de empecilho), os bebês escolhiam o boneco neutro, apresentando aversão ao boneco que atrapalhava.
Esses e outros tantos estudos demonstram que temos uma capacidade inata de avaliar interações sociais desde tenra idade de maneira universal e não-aprendida (quase que instintivamente). Existem bases genéticas que foram selecionadas ao longo da história evolutiva de nossos ancestrais que compõem o estabelecimento de nossas bases éticas e morais. Mas é óbvio que esse não é um fator determinante, não podemos ignorar que os fatores ambientais (neles incluímos questões culturais e sociais) moldam de uma forma ou de outra nosso comportamento. Assim como Jablonka deixou claro, somos capazes de através das nossas tradições e comportamentos mudar o ambiente em que vivemos, e essas mudanças implicam em alterações e seleções comportamentais diferenciadas ao longo das gerações. O aprimoramento dessas capacidades inatas é modulável. A história nos mostra claramente isso, os valores morais se alteram de acordo com o zeitgeist de cada época. Valores e regras sociais podem ser modificadas e aprendidas através de processos instrução formal, é claro. Não defendo o reducionismo comportamental humano, nem determinismo quanto aos nossos valores, pois olho a nossa espécie composta por um quadro de imensas idiossincrasias. Ignorar os aspectos culturais é ignorar parte de nossa própria natureza. O que as descobertas científicas nos mostram é que, mesmo em uma época de crise de valores éticos e morais, podemos resgatar, do íntimo de nossa própria natureza, valores básicos e primordiais de respeito à vida e ao ambiente onde vivemos e do qual dependemos.
Bibliografia
[1] MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO,2000. 2º edição.
[2] Pinker, S. (1998). Como a mente funciona. São Paulo: Companhia das Letras.
[3] Hare, B., & Kwetuenda, S. (2010). Bonobos voluntarily share their own food with others Current Biology, 20 (5) DOI: 10.1016/j.cub.2009.12.038 - http://www.cell.com/current-biology/retrieve/pii/S0960982209022015
[4] Tanaka, M., & Yamamoto, S. (2009). Token transfer between mother and offspring chimpanzees (Pan troglodytes): mother–offspring interaction in a competitive situation Animal Cognition, 12 (S1), 19-26 DOI: 10.1007/s10071-009-0270-8 - http://www.springerlink.com/content/x41v017545162wun/
[5] Sollars, V., Lu, X., Xiao, L., Wang, X., Garfinkel, M.D., Ruden, D.M. (2003). Evidence for an epigenetic mechanism by which Hsp90 acts as a capacitor for morphological evolution. - http://www.nature.com/ng/journal/v33/n1/full/ng1067.html
[6] Scharloo, W 1991. Canalization: genetic and developmental aspects. Annual Review of Ecology and Systhematics, vol.22, pp. 65-93 –http://wwworm.biology.uh.edu/evodevo/lecture3/scharloo91.pdf
[7] Jablonka, Eva. Evolução em quarto dimensões: DNA, comportamento e a história da vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
[8] Hamlin, J., Wynn, K., & Bloom, P. (2007). Social evaluation by preverbal infants. Nature, 450 (7169), 557-559 DOI: 10.1038/nature06288http://www.nature.com/nature/journal/v450/n7169/full/nature06288.html
[9] Dawkins, Richard. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
[10] DURKHEIM, E. Ética e sociologia da moral. Trad. Paulo Castanheira. São Paulo: Landy, 2003.
Postado no dia 12.03.2012 no Blog Biólogo em cena http://biologoemcena.blogspot.com.br/2012/03/principios-eticos-e-comportamento-um.html
Por GILBERTO CAVALHEIRO
Postado no dia 12.03.2012 no Blog Biólogo em cena http://biologoemcena.blogspot.com.br/2012/03/principios-eticos-e-comportamento-um.html
Por GILBERTO CAVALHEIRO
-Graduado em Ciências Biológicas (Licenciatura) e mestre em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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