Era assim que ela nos chamava. Sempre fomos um trio: minha mãe - que faria 83 anos neste 09 de novembro, se não tivesse morrido de um infarto fulminante aos 60, na manhã do dia em que lançaria “Cadeia”, pela editora José Olympio -, minha irmã mais velha e eu.
Vinte e três anos depois ainda sinto sua falta e me flagro tentando imaginar o que ela acharia sobre o #AgoraÉQueSãoElas. Pergunta difícil, acho que jamais saberei.
Clara, que nasceu para ser Clarita, jamais teorizou sobre o feminismo, pelo menos que eu me lembre. Viveu-o, sem maiores questionamentos, e passou sua visão do mundo para mim. Para minha mãe, pedir à sociedade que abrisse espaço para ela seria reconhecer fraqueza, acho eu, ela ia lá e conquistava.
Criada por pais à frente de seu tempo, Clarita tinha uma mãe que trabalhava fora e um pai escritor, que não podia ver uma de suas filhas empenhada em tarefas “de menina”, como bordado, costura ou culinária que vinha logo perguntar:
– Você não tem nada melhor para fazer, minha filha? Vá ler um livro.
Minha mãe devia ter uma agenda lotada, porque nunca soube fritar um ovo ou pregar um botão. Tenho uma vaga lembrança de algumas tentativas no crochê, mas como não sobrou nenhuma peça para contar história, deduzo que não tenha ido em frente.
Os talentos de Clarita eram outros: além de bonita, inteligente e corajosa, começou a trabalhar muito cedo e sempre se recusou a ser coadjuvante na própria vida. Trabalhou como radioatriz, escreveu telenovelas na Rádio Nacional e lá conheceu e ficou amiga de Janete Clair e Dias Gomes.
Foi jornalista do Correio da Manhã, onde começou aos 16 anos, levada pelo pai. Depois cometeu o erro tão comum às mulheres daquela época: casou e mudou. Como se o casamento a transformasse em outra pessoa. Um continente muito menor que o conteúdo.
Não podia dar certo e um dia o cristal quebrou. Deve ter sido bastante difícil para ela. Em plena década de 60, ser multifacetada e complexa, tão original, cobrou um alto preço.
Clara rompeu um casamento quando ninguém ainda o fazia - a não ser que fosse abandonada pelo marido -, por vontade própria, com duas filhas pequenas. Foi trabalhar como relações-públicas da MPM-Propaganda, uma das maiores agências da época e nunca mais dependeu de homem algum.
Casou de novo, separou 16 anos depois, namorou muito, não fosse ela uma nativa de escorpião, escreveu e publicou vários livros e sempre enfrentou a vida, da maneira como se apresentasse.
E foi assim, de peito aberto e vontade de ferro, que minha mãe abriu caminho sozinha, durante a maior parte de sua vida. Se tinha medo, não dizia, se achava o mundo dos homens injusto, também não. Clara era forte e às mulheres fortes não se pergunta nada, confia-se que sempre estarão ali. Arrependo-me, hoje, de ter sido tão pouco curiosa.
Minha mãe morreu cedo demais, se é que há hora certa para ir embora. Eu tinha 35 anos e fico pensando em quantas conversas não tivemos, em minha própria separação, que não pude dividir com ela; em tanta vida que não compartilhamos.
Hoje ela faria 83 anos, com o mesmo humor afiado e o mesmo olhar profundo, estou certa. Sobre o #AgoraÉQueSãoElas, não tenho tanta certeza, terei que consultar minhas tias, da mesma idade. Clara, que nasceu para ser Clarita, já veio ao mundo livre.
Talvez não entendesse o que ainda sofrem tantas mulheres por esse mundo afora, que não tiveram a mesma sorte que ela.
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