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segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Informação Potencialmente Relevante e o Crime de Insider Trading: Limites para Interpretação do Tipo Penal



Desde a edição da Instrução CVM nº 31/84, relevante é o fato ou ato, decidido em assembleia, nos órgãos da companhia aberta ou em seus negócios que possam influir de modo ponderável na cotação dos valores mobiliários, na decisão dos investidores em negociá-los ou exercer quaisquer direitos inerentes à condição de titular de valores mobiliários emitidos pela companhia. 

Neste rumo, o órgão regulador entende que há dever informar atos ou fatos que tenham a potencialidade de influenciar[1] na cotação de valores mobiliários, pois a dinâmica do mercado tornaria impossível de se provar a efetiva e concreta influência, perdendo a essência do objetivo da vedação ao uso da informação privilegiada: a assimetria informacional[2], que traria ao mercado distorções de precificação[3], crises de rentabilidade e liquidez das ações, além de privilégios indevidos àqueles que se utilizam da informação privilegiada de dentro da companhia em detrimento daqueles que obtêm informações públicas[4]. A ideia, portanto, de um mercado público livre e aberto é construída por um preço justo refletido a partir do fomento do mercado de capitais de maneira eficiente e competitiva, mantendo a dinâmica de oferta e compra longe de práticas desonestas.

O full disclosure, como princípio da ampla divulgação de informações, é o pressuposto fundamental do mercado de capitais, orientando todas as normas que regulamentam este setor do mercado financeiro[5]. O sistema normativo americano, que influenciou o sistema brasileiro, a partir do caso SEC v. Texas Gulf Sulphur Co.[6], produziu a teoria Disclose or Abstein Rule consistente na responsabilização por insider trading do sujeito que negociar valor mobiliário – violando um dever fiduciário – ao divulgar informação relevante a que tiver acesso anteriormente à operação. Neste caso, após encontrado um valioso depósito de minerais no Canadá, insiders transacionaram quantias vultuosas em valores mobiliários de sua emissão, antes da divulgação pública deste fato relevante, dando ensejo a sua punição. 

Atualmente, considera-se relevante[7] para a CVM, qualquer decisão de acionista controlador, deliberação da assembleia geral ou dos órgãos de administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato de caráter político-administrativo, técnico, negocial ou econômico-financeiro ocorrido ou relacionado aos seus negócios que possa influir de modo ponderável: I - na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia aberta ou a eles referenciados; II - na decisão dos investidores de comprar, vender ou manter aqueles valores mobiliários; III - na decisão dos investidores de exercer quaisquer direitos inerentes à condição de titular de valores mobiliários emitidos pela companhia ou a eles referenciados[8].

O Superior Tribunal de Justiça decidiu recentemente questão relacionada ao alcance do elemento normativo “informação relevante” previsto no artigo 27-D da Lei 6385/76, entendendo que “compete ao aplicador da lei a valoração em concreto da relevância da informação, conforme o momento e a realidade em que ocorreram, até porque o rol mencionado não é taxativo, mas exemplificativo”[9].

Como se vê, por mais que o julgado tenha admitido a índole normativa do elemento “informação relevante” constante no tipo penal, o equívoco foi considerar, para fins penais, apenas exemplificativo o rol de informações relevantes previstos na Instrução CVM nº 358/02 que complementaria a norma penal em branco.

Desta forma, considerar referido rol como exemplificativo implica numa interpretação que considere “informação relevante” qualquer ato ou fato que possa influir de modo ponderável nas conseqüências previstas nos incisos I ao III do artigo 2º, da Instrução CVM 358/02, tornando o tipo penal altamente abstrato e de difícil delimitação.

Como se não bastasse, pode-se permitir a punição de uma ação em momentos que esta sequer se torna concreta, factível e específica, ampliando exponencialmente o espectro punitivo da norma penal e causando incerteza sobre o atuar proibido[10]. Por isso, indaga-se: o direito penal admitiria interpretar um elemento normativo com tanta subjetividade? É permitido ao juiz valorar o momento em que uma informação torna-se relevante? 

TIEDEMANN, denunciando a figura da “ambivalência normativa” caracterizada pelo uso, no direito penal econômico, de cláusulas gerais, aduz que estes devem ser entendidos como elementos normativos indeterminados, adquirindo conteúdo normativo de amplitude variável com o fim de possibilitar a adaptação para mudança de concepções e contextos, sem a necessidade de alterações legislativas; entretanto, propõe a obrigatoriedade do uso do sentido técnico da palavra, que em observância ao princípio da taxatividade dirigido ao juiz, impõe uma interpretação restritiva da norma jurídica indeterminada como forma de garantir um juízo seguro e previsível da conduta punível, inclusive para que “la interpretación penal no deb[a] ir más allá del ámbito de aplicación de la regulación del Derecho económico (o civil)”[11].

PRADO sustenta a necessidade de “evitar o arbitrium judicis através da certeza da lei, com a proibição da utilização excessiva e incorreta de elementos normativos, de casuísmos, cláusulas gerais e de conceitos indeterminados ou vagos”[12]

A par disto, uma tradição liberal – especialmente no mercado de valores mobiliários – exige que as proibições dirigidas aos agentes econômicos sejam claras o suficiente para que seus destinatários possam transitar, sem aflições e inseguranças, entre o atuar permitido e proibido[13]. Entretanto, como critica RIOS[14], o princípio da legalidade vem sofrendo uma insatisfatória realização com a tendência de política criminal voltada ao excesso de elementos normativos na descrição típica da tutela penal dos interesses difusos. CLAUS ROXIN[15], no mesmo rumo, não desconsidera os tipos penais abertos ou o uso de cláusulas gerais valorativas no direito penal, apenas restringindo a criação de um tipo tão aberto que deixasse ao intérprete a verdadeira delimitação do proibido.

Por isso, importante ponderar que para parte da doutrina, a diferença entre o tipo administrativo e o tipo penal é justamente porque “ao contrário do Direito Penal, em que a tipicidade é um dos princípios fundamentais, decorrente do postulado segundo o qual não há crime sem lei que o preveja, no Direito Administrativo prevalece a atipicidade; são muito poucas as infrações descritas na lei, como ocorre com o abandono de cargo: A maior parte delas fica sujeita à discricionariedade administrativa diante de cada caso concreto; é a autoridade julgadora que vai enquadrar o ilícito como ‘falta grave’, ‘procedimento irregular’, ‘ineficiência do serviço’, ‘incontinência pública’, ou outras infrações previstas no modo indefinido na legislação estatutária. Para esse fim deve ser levado em consideração a gravidade do ilícito e as conseqüências para o serviço público”[16].

Portanto, o tipo administrativo pode ser expresso “através de comandos normativos proibitivos ou impositivos que trazem ora minudentes descrições, ora padrões vagos, para a definição do ilícito administrativo e do ilícito disciplinar, constituindo tipificações fluidas, abertas, flexíveis”[17], e o tipo penal deve ser taxativo e estar previsto em lei[18].

Evidente que os tipos infracionais administrativos são diferentes dos tipos penais, sendo possível que a CVM, em seus julgados, amplie a extensão do que se refere “informação relevante” para além das hipóteses especificadas no artigo 2º, parágrafo único, da Instrução CVM 358/02.

Com efeito, o STJ admite que a informação relevante não se submete à efetiva realização da OPA (Oferta Pública de Ações), mas na possível realização, aliás, é este o posicionamento da CVM representado pelo voto do Diretor Pedro Oliva Marcílio de Souza no âmbito do Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2006/5928, julgado em 17/04/2007: “não se exige que a informação seja definitiva ou esteja formalizada para que se considere um fato relevante e, portanto, sujeito ao dever de divulgação. Basta que a informação não seja meramente especulativa, mera intenção, não baseada em fatos concretos. Informações sobre atos bilaterais (contratos, reestruturações societárias, etc.) podem ser divulgáveis, independentemente de consenso entre as partes, desde que uma delas já tenha tomado a decisão de realizar o negócio, fazer uma oferta de compra ou tenha a intenção de prosseguir uma negociação ou concluir uma negociação em andamento. Nesses casos, divulga-se a intenção, mas não a conclusão do negócio”.

Contudo, não obedece ao princípio da taxatividade, o juízo valorativo sobre uma norma que não apresenta um conteúdo claro e objetivo quanto ao que se quer proibir, como é o caso da expressão “influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários” para justificar a vedação ao uso de informação relevante (art. 155, §1º e 4º da Lei 6.404/76) e incidência da norma penal incriminadora. Ou seja, proíbe-se o resultado (influir de modo ponderável[19] na cotação de valores mobiliários), sem saber, abstratamente, qual a conduta que efetivamente está proibida, necessitanto que o défice de legitimidade do crime de perigo abstrato em relação ao princípio da taxatividade seja “contrabalanciado pela extraordinária minúcia que o legislador o põe, deve pôr, na descrição das condutas proibidas”[20]

Isto porque, o direito penal pune condutas, os resultados podem ser significativos a depender do tipo, mas ainda assim é preciso haver uma conduta proibida sem expressões ambíguas, diante da dificuldade dos “administradores preverem eventuais reflexos, no mercado, de certos atos ou fatos da sociedade, sabendo-se que as reações daquele nem sempre são ditadas pela lógica e pelo bom senso”[21].

Em outras palavras, o resultado pode ser alcançado ex post (influência de modo ponderável na cotação de valores mobiliários) mas os insiders não puderam prever tal conseqüência, numa perspectiva ex ante, em razão da falta de lógica e bom senso que muitas vezes conduzem referido mercado, ou então, pelo efeito cumulativo de vários fatos ou atos que juntos liberaram o curso causal do tipo penal, mas que isoladamente não poderiam obter o resultado vedado pela norma penal incriminadora.

Como aponta COSTA, os ilícitos penais e administrativos diferenciam-se apenas normativamente não havendo razão para discutir diferenças ontológicas, ou seja, os ilícitos seriam diferenciados por imposições normativas ao legislador para criação e estrutura jurídica[22]. A mesma autora ainda indica que a estrutura jurídica para a criminalização de condutas, impõe-se a observância de afetação a bem jurídico-penal, com respeito a fragmentariedade e subsidiariedade do direito penal, e ainda, respeito a regras de proporcionalidade e legalidade. Já os ilícitos administrativos que ostentam requisitos menos rígidos, deve-se observar o núcleo dos direitos fundamentais, a legalidade e a proporcionalidade[23].

Por isso, a interpretação que deve ser dada à expressão “informação relevante” contida no tipo penal é no sentido de que o uso indevido de informação privilegiada somente ocorreria para aqueles que tiveram contato com esta após determinado ato ou fato adquirir viabilidade concreta[24] apresentando-se como uma informação específica, precisa[25], determinada e com potencialidade de ser executada, bem como, a incidência do tipo penal somente se justificaria se a conduta adequar-se ao rol dos fatos relevantes previstos no artigo 2º, parágrafo único, da Instrução CVM 358/02.

Não se pode aceitar que as normas penais em branco possam arbitrariamente dispor de suas próprias competências[26], permitindo que o aplicador do direito, no caso o juiz, interpretar um complemento extrapenal que não respeite a clara descrição da conduta proibida ao sujeito, tendo o juiz criminal que realizar juízo de valor e oportunidade sobre determinada informação ao afirmar sua relevância a partir de seu efeito (resultado) e não da conduta que é proibida.

Portanto, inobstante a necessidade da informação ter viabilidade concreta[27], para a solução da amplitude e a imprecisão do conteúdo do termo “informação relevante”, propõe-se que para a subsunção ao tipo penal previsto no artigo 27-D da Lei 6385/79, não basta ser informação que tenha a potencialidade de ser relevante ou produzir efeitos no mercado de capitais segundo o intérprete ou perito, esta informação deve ser concretizada por meio das ações inequívocas que a CVM regulamenta como imposição do dever de divulgar, guardar segredo ou não se aproveitar, que em observância ao princípio da taxatividade, somente se aperfeiçoa nas condutas descritas no rol enumerado no artigo 2º, parágrafo único, da Instrução CVM 358/02, que permitem caracterizar-se como complemento do elemento normativo “informação relevante”.

REFERÊNCIAS

[1] A CVM emitiu nota explicativa nº 28/84 indicando sua posição a respeito da divulgação e uso de informações relevantes. Disponível em: http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/legislacao/anexos/nota/nota028.pdf . Acesso em 22/04/16;
[2] BARROS, Benedicto Ferri de. O Mercado de Capitais dos Estados Unidos. 2.ed. São Paulo: Bolsa de Valores de São Paulo, 1970, p. 333;
[3] PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading – regime jurídico do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 140;
[4] GIRÃO, Luiz Felipe de Araújo Pontes. Assimetria informacional, insider trading e avaliação de empresas: evidências no mercado de capitais brasileiro. (Mestrado em Ciências Contábeis) – Programa Multiinstitucional e Inter-Regional de Pós-Graduação em Ciências Contábeis da Universidade de Brasília (UnB), da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), João Pessoa, 2012; 
[5] CALABRÓ, Luiz Felipe Amaral. Regulação e Autorregulação do Mercado de Bolsa. São Paulo: Almedina, 2011, p. 147;
[7] A CVM entendeu no processo administrativo nº 2002/1822, que a relevância da informação avalia-se por sua repercussão no valor da companhia, independentemente do rol exemplificativo da Instrução CVM nº 358/02;
[8] BRASIL. CVM. Instrução n. 358, de 3 de janeiro de 2002. Artigo 2º;
[9] STJ, REsp 1.569.171-SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 16/02/2016; 
[10] TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 2ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p.173;
[11] TIEDEMANN, Klaus. Manual de derecho penal económico: parte general y especial. Valência: Tirant lo Blanch, 2010, p. 107-115; 
[12] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 6ª Ed. São Paulo: RT, 2006, p. 133;
[13] STF, RE 583523, Relator Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 03/10/2013;
[14] RIOS, Rodrigo Sanchez. Reflexões sobre o Princípio da Legalidade no Direito Penal e o Estado Democrático de Direito. In: Fascículos Penais, Ano 95, v. 847. São Paulo: RT, 2006, p. 414/415;
[15] Apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal I – Parte geral. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 16;
[16] DI PIETRO, Maria Sylvia Zannela. Direito administrativo. 8ª edição, São Paulo: Atlas, 1999, p. 492);
[17] DEZAN, Sandro Lúcio. O princípio da atipicidade do ilícito disciplinar. Efeitos jurídicos produzidos pelos princípios da culpabilidade e da imputação subjetiva. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 55, 2005;
[18] PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. São Paulo: RT, 1987, p. 52; 
[19] Uma análise mais profunda da subjetividade do conceito de “informação relevante” e o sentido do termo “ponderável” foi feita por Nora Rachman (O princípio do Full Disclosure no mercado de capitais. Dissertação (Mestrado em Direito Comercial) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999);
[20] COSTA, José Francisco de Faria. O perigo em direito penal: contributo para a sua fundamentação e compreensão dogmática. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 645;
[21] TEIXEIRA, Egberto Lacerda; GERREIRO, José Alexandre Tavares. Das sociedades anônimas no direito brasileiro. V. 2. São Paulo: Bushatsky, 1979, p. 477; 
[22] COSTA, Helena Regina Lobo da. Proteção penal ambiental: viabilidade, efetividade, tutela por outros ramos do direito. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 192 e ss;
[23] COSTA, Helena Regina Lobo da. Direito penal econômico e direito administrativo sancionador: ne bis in idem como medida de política sancionadora integrada. Tese (Livre Docência) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2013, p. 146;
[24] PUGA, Arturo Prado. Acerca del concepto de información privilegiada en el mercado de valores chileno: su alcance, contenido y limítes. In: Revista Chilena de Derecho, v. 30, nº 2, 2003, p. 241;
[25] COSTA, José de Faria; RAMOS, Maria Elisabete. O crime de abuso de informação privilegiada – A informação enquanto problema jurídico-penal. Coimbra: Coimbra, 2006, 49;
[26] ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 2ª Ed. São Paulo: RT. 1999, p. 450; e
[27] COSTA|RAMOS, O crime..., p. 50.

POR CAMILO EVANDRO VIEIRA










-Advogado;
-Pós-graduado em Direito Penal Econômico (FGV/SP);
-Coordenador do Grupo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da FGV/SP;
evandrocamilo@hotmail.com
Rua General Calado, 115 – Tatuapé – São Paulo
Fone: 9 9890-3235 /2673-0056

Um comentário:

  1. Sou leigo no assunto, mas esse conteúdo e essa interpretação não deveriam serem utilizadas nas LICITAÇÕES por este país afora, onde as INFORMAÇÕES PRIVILEGIADAS nos provocam perdas imensuráveis?

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