Imaginem um empresário comprando um produto e depois de quase 5 anos ser responsabilizado porque o fisco descobriu que o vendedor era inidôneo?
Pelo sentimento de injustiça deste caso verídico, foi criada em 2014 a súmula nº 509 do Superior Tribunal de Justiça[1], que permitiu ao comerciante de boa-fé aproveitar-se dos créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda.
Estipulados os critérios que afastariam o ilícito administrativo-tributário, o presente artigo propõe uma reflexão a partir da responsabilidade penal subjetiva, buscando estabelecer parâmetros para imputação penal.
Vejam que a súmula apresenta três pilares importantes para afastar a ilicitude do contribuinte: BOA-FÉ, POSTERIORMENTE e VERACIDADE.
A análise destes três pilares é indispensável para se estabelecer a responsabilidade penal do agente, pois demonstram basicamente a licitude do comportamento do contribuinte e réu.
Como a intenção deste artigo é trazer algo de concreto para os leitores, darei como exemplo dois casos concretos.
Logicamente que retirei no nome das partes porque o que importa é o conteúdo e não as partes envolvidas.
O primeiro ...
O segundo...
O que é importante nestes casos? Respondo: A diferença em que recai o ilícito.
No primeiro caso, a nota fiscal é materialmente verdadeira. Foi emitida com lastro em AIDF (autorização de impressão de documento fiscal) e efetivamente foi emitida pelo vendedor.
Veja que no primeiro caso a inidoneidade recai sobre o vendedor que não tinha em estoque o produto que foi entregue ao comprador, tendo este sido denunciado porque deveria fiscalizar a origem das mercadorias.
No segundo caso o ilícito recai sobre a emissão da nota em si. Em que o vendedor diz não ter emitido referido documento fiscal e o fisco demonstra que ela é materialmente falsa.
Vejam que a falsidade material da nota fiscal geralmente é demonstrada por indicação de AIDF diverso do autorizado pelo Fisco, que pode ser por meio de espelho de nota, como ocorria antes da nota fiscal eletrônica.
Num panorama atual, com a implementação da nota fiscal eletrônica acredito que seria difícil a existência de uma falsidade material nestes moldes, em razão do controle eletrônico que o Fisco exerce sobre sua emissão. Entretanto, é importante discutir tais questões pois muitos casos analisados na esfera criminal ainda baseiam-se em notas fiscais emitidas em papel.
Veja que a conduta do réu é a mesma em ambos os casos: deixou de fiscalizar a origem da mercadoria, entretanto a diferença existente comporta técnica defensiva também diferente e é isto que veremos neste artigo.
A declaração de inidoneidade fiscal é uma ferramenta utilizada pelas Fazendas Estaduais para evitar que o contribuinte do ICMS em situação irregular emita notas fiscais, consideradas inidôneas por algum motivo.
Como consequência, aquele que negociar com esse contribuinte faltoso, cuja situação fiscal estará disponível no SINTEGRA, responderá de alguma forma por ter agido de má-fé ou por não ter sido diligente.
Até aqui, trata-se de um procedimento de praxe, simples e justo. Entretanto, há uma série de particularidades no seu procedimento.
A começar pela origem da declaração de inidoneidade fiscal no âmbito do ICMS, o primeiro registro – tomando o Estado de São Paulo como exemplo – é de 1973, por ocasião da Portaria CAT 10, evoluindo até chegar na Portaria 95/06 e alterações.
Essa primeira portaria, de 1973, oportunizava a correção de irregularidade de contribuintes de boa-fé no que tange à escrituração dos créditos para evitar o creditamento indevido de ICMS lastreado em documentos fiscais inidôneos.
Atualmente, a declaração de inidoneidade é tão grave que o contribuinte adquirente poderá, dentre outros problemas, ver-se impedido no exercício de suas atividades empresariais e ainda ter de responder criminalmente pelos atos do emitente faltoso, como já adiantei.
Por isso é importante estabelecermos uma discussão precisa a respeito da súmula 509 do STJ e seus pilares, pois as consequências do reconhecimento da inidoneidade são gravíssimas.
A BOA-FÉ como primeiro pilar da licitude da conduta, define-se como agir legalmente; agir sem ofensa a lei; agir sem intenção dolosa; agir com lisura e honestidade; ser honesto; usar da lealdade, da franqueza, da verdade, do certo. Inclusive, defendo que a boa-fé deve ser tanto subjetiva como objetiva.
Na esfera penal, a prova da boa-fé normalmente é feita mediante apresentação ao fisco do livro de entrada, pesquisa no Google indicando e existência do estabelecimento comercial que emitiu a nota fiscal, a DECA e o Sintegra da época para demonstrar que o emissor da nota fiscal estava habilitado.
Prosseguindo ao segundo pilar da licitude da conduta, pergunta-se: Porque POSTERIORMENTE à declaração de inidoneidade e não à própria operação considerada irregular?
Por questão de justiça e até lógica, a participação na infração tem que estar vinculada com o conhecimento dos motivos que fundam a inidoneidade.
A declaração de inidoneidade tem por objetivo evitar que o contribuinte do ICMS em situação irregular emita nota fiscal, consideradas inidôneas por algum motivo.
E pelo julgamento do recurso especial nº 1.148.444 que gerou a edição da súmula, a posição do Fisco para atingir o contribuinte receptor da nota fiscal é no sentido de que a declaração dispensa a publicidade e a inidoneidade retroage à época da sua emissão.
Entretanto, é a declaração de inidoneidade que dá conhecimento a terceiros e somente neste momento é que pode-se presumir tal circunstância, sem prejuízo do fisco provar, por outros meios, o conhecimento anterior à declaração.
Por fim, o último pilar diz respeito à VERACIDADE da operação, que me parece tanto na esfera tributária como na esfera penal, recai o ônus de prová-la sobre o réu-contribuinte pois representa a essência de uma operação regular no mercado.
A forma para se provar a veracidade normalmente é pela juntada do comprovante de pagamento e do conhecimento de transporte.
A nota fiscal declarada inidônea também prova veracidade se ela, em si, não tiver sido fabricada com AIDF incorreto, fabricada por terceiro.
Mas se a nota fiscal saiu do vendedor identificado na nota fiscal e foi entregue no comprador, este documento é prova legítima da operação quando a inidoneidade decorrer de uma irregularidade do vendedor (Ex.: vendedor que tinha produtos em estoque após processo administrativo de verificação de regularidade fiscal).
Agora, provada a veracidade da operação, estaria provada a boa-fé?
Eu penso que NÃO! Uma compra e venda pode realmente ter sido realizada, mas ela foi feita mediante fraude. Por isso, o objeto da prova da boa-fé é diferente do objeto da prova da veracidade.
Veja que na boa-fé as provas voltam-se para a demonstração do desconhecimento do caráter ilícito da conduta por meio do cumprimento de normas de conduta exigidas ao mercado regulado.
Por exemplo, verificar habilitação do vendedor. Saber se o vendedor de fato existe. E se ele está cadastrado como contribuinte. Veja que o principal aqui é: o cumprimento de normas exigidas pelo mercado regulado!
Por outro lado, a prova da veracidade da operação visa demonstrar que a nota fiscal efetivamente representou transferência de propriedade sobre um bem ou uma atividade comercial prestada por uma empresa para outra.
Deve-se ter em mente, portanto, a transferência de propriedade!
Se a nota fiscal for emitida pelo vendedor declarado inidôneo e autorizada pela Secretaria da Fazenda, ela prova a veracidade da operação. Afirmo isso porque ela representa uma situação que realmente aconteceu.
Como a transferência da propriedade se faz com a tradição, a nota fiscal simplesmente demonstra uma operação que efetivamente se realizou, independentemente das razões pelas quais o vendedor foi declarado inidôneo.
Note que a declaração posterior da inidoneidade não leva à presunção absoluta de que o contribuinte ou réu agiu de boa-fé. Mas aí, caros leitores, é obvio e não requer grandes formulações teóricas que cabe à quem acusa provar o conhecimento anterior à declaração de inidoneidade.
Pelo julgamento do recurso que gerou a edição da súmula 509, imputa-se ao adquirente exigir, no momento da celebração do negócio, a documentação pertinente à regularidade do alienante.
Vejam que questões relacionadas à documentação exigível e o que caracterizaria um alienante regular não foram respondidas pelo acórdão.
Portanto, acredito que súmula é apenas o começo da discussão, pois vários aspectos referentes ao que deve o adquirente exigir do alienante e o que caracteriza um alienante regular será o verdadeiro embate futuro, que antes era relegado à discussão dos efeitos da declaração de inidoneidade e aspectos ontológicos relacionados ao dolo do agente.
Referência
[1] “É lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda.”
-Advogado;
-Pós-graduado em Direito Penal Econômico (FGV/SP);
-Coordenador do Grupo de Pesquisa em Direito Penal Econômico
da FGV/SP;
evandrocamilo@hotmail.com
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Fone: 9 9890-3235 /2673-0056
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