O conceito de família, no Código Civil de 1916, trazia o casamento como o pilar central das relações familiares. As normas sobre a filiação seguiam a presunção de que filho era aquele advindo do relacionamento entre marido e mulher, daí o motivo pela qual existiam regras distintas entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos.
Entretanto, com a evolução da sociedade, outras formas de organização familiar foram surgindo, distintas do casamento, a exemplo da união estável, da sociedade de fato, da família monoparental, dentre outros modelos.
Diante disso, a Constituição da República de 1988 conferiu especial proteção à família, bem como à filiação, deslocando-se para o campo do direito público constitucional as interpretações atinentes ao direito familiar que outrora pertencia unicamente ao direito civil.
O artigo 226 da Constituição diz que:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado
Corroborando que o Estado reconhece outras formas de organização familiar distintas do casamento, temos o § 3º do artigo 226 que trata da união estável:
§ 3º. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
Seguindo nesta linha, o § 4º do mesmo artigo se refere a família monoparental:
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes
No que tange à filiação, o artigo 227, § 6º da Constituição da República extinguiu qualquer forma de discriminação e hierarquia entre os filhos adotivos ou aqueles havidos ou não da relação de casamento. Vejamos:
§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Aqui repousa o enfoque central do presente artigo.
O parágrafo 6º do artigo 227 da CF/88, tratando-se de norma constitucional, deve ser interpretado sistematicamente com os demais comandos normativos da Constituição. A parentalidade, aqui, ganha especial relevância quando em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Diz o artigo 1º, III da CF/88:
Art.1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
( ...)
III - a dignidade da pessoa humana;
O indivíduo, a pessoa, o ser dotado de intelecto e moral capaz de buscar os objetivos que melhor lhe aprouver, dentro dos limites da razoabilidade, não pode ser restringido por normas ultrapassadas que impõe modelos preconcebidos e distantes do fundamento supralegal da dignidade da pessoa humana.
O § 7º do artigo 226 da CF/88, trata da paternidade responsável e da dignidade da pessoa humana, assentando que:
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
Assim, na concepção do princípio máximo da dignidade da pessoa humana, na busca do prazer e do bem-estar, os vínculos de filiação advindos da descendência biológica ou da relação afetiva entre as partes envolvidas não podem ser restringidos a uma ou outra forma se ambas espelharem o melhor interesse do descendente, podendo, desta forma, ser reconhecido juridicamente ambos os vínculos - biológico ou afetivo.
Portanto, a pluriparentalidade merece proteção jurídica para atender os interesses dos envolvidos, concedendo direitos advindos dos vínculos parentais de origem biológica e afetiva.
O tema foi objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário com Repercussão Geral n.º 898.060/SP, da relatoria do Ministro Luiz Fux, onde se discutia, naquele caso, a preponderância da filiação afetiva em detrimento da filiação biológica.
No voto do relator, encontramos o seguinte:“Estabelecida a possibilidade de surgimento da filiação por origens distintas, é de rigor estabelecer a solução jurídica para os casos de concurso entre mais de uma delas”.“O sobreprincípio da dignidade humana, na sua dimensão de tutela da felicidade e realização pessoal dos indivíduos a partir de suas próprias configurações existenciais, impõe o reconhecimento, pelo ordenamento jurídico, de modelos familiares diversos da concepção tradicional. O espectro legal deve acolher, nesse prisma, tanto vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto aqueles originados da ascendência biológica, por imposição do princípio da paternidade responsável, enunciado expressamente no art. 226, § 7º, da Constituição”." (...) Da mesma forma, nos tempos atuais, descabe pretender decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente é o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos. Do contrário, estar-se-ia transformando o ser humano em mero instrumento de aplicação dos esquadros determinados legisladores. É o direito que deve servir à pessoa, não ao contrário".
Hão há dúvidas de que as situações de pluriparentalidade não podem ser negadas, ainda que omisso o legislador pátrio, cabendo, portanto, o reconhecimento legal dos vínculos parentais de origem afetiva e biológica, concomitantemente, quando atendidos os interesses dos envolvidos.
Por fim, citando Maria Berenice Dias: “não mais se pode dizer que alguém só pode ter um pai e uma mãe. Agora é possível que pessoas tenham vários pais. Identificada a pluriparentalidade, é necessário reconhecer a existência de múltiplos vínculos de filiação. Todos os pais devem assumir os encargos decorrentes do poder familiar, sendo que o filho desfruta de direitos com relação a todos. Não só no âmbito do direito das famílias, mas também em sede sucessória. (...) Tanto é este o caminho que já há a possibilidade da inclusão do sobrenome do padrasto no registro do enteado” (Manual de Direito da Famílias. 6ª. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 370).
A tese jurídica fixada do Recurso Extraordinário com Repercussão Geral, visando a aplicação em casos semelhantes, foi a seguinte: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais”.
Assim, o reconhecimento concomitante dos vínculos de filiação afetiva e biológica, quando no melhor interesse dos envolvidos, é a medida a ser adotada, levando-se em consideração os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, devendo as partes buscarem um pronunciamento judicial para garantir os seus direitos.
POR MARCELO BACCHI CORRÊA DA COSTA
- Especialista em:
- Direito Público (2012); e
- Ciências Penais (2013);
-Membro associado do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família;
-Membro associado do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família;
-Membro da Comissão de Direito de Família e Sucessões da OAB/MS; e
- 7Advogado há 17 anos na cidade de Campo Grande/MS e região
- 7Advogado há 17 anos na cidade de Campo Grande/MS e região
Nota do Editor:
Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.
Gostei bastante. Parabéns ao autor. O artigo está excelente
ResponderExcluirÓtimo!
ResponderExcluir