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sábado, 5 de maio de 2018

O Poder da Leitura em Voz Alta


A leitura é um ato com múltiplos benefícios para a formação do ser humano. Através da leitura de uma maneira geral, seja técnica, científica, filosófica ou literária, ampliamos nossa visão da realidade, de modo a nos tornarmos mais experientes, sensíveis e críticos. Podemos viver várias vidas através da leitura de romances. Podemos sentir várias sensações e emoções a partir da leitura de poemas. Podemos obter conhecimentos variados, a partir da leitura das páginas de um livro em papel ou de páginas da internet. Para o leitor, não há limites. Hoje, pode-se ler o que se desejar, pois a web significou uma abertura para os textos até então nunca vista. 

No entanto, essa abertura nem sempre garante uma leitura qualificada e significativa para a transformação do sujeito que lê e de seu entorno, pois pode ocorrer de modo apressado e sem entrega. Entre os modos de ler, destaco a importância da leitura em voz alta, nem sempre experimentada, mesmo entre leitores mais experientes. Trata-se de dar voz ao texto. Trata-se de escutar o texto na própria voz. Trata-se de uma entrega corpórea ao momento da leitura. Trata-se de uma prática que remete à oralidade dos primeiros textos literários, quando era necessário guardá-los na memória, a fim de poder reproduzi-los pela voz para ouvintes, que deles aprendiam modos de agir em sociedade. A recitação dos poemas épicos, como a Odisseia e a Ilíada, exercia grande influência sobre o comportamento social. Embora tenham se diluído bastante com o advento da escrita, as práticas de oralidade resistiram em comunidades e culturas que preservaram o hábito de contar de histórias, como as africanas ou as indígenas, por exemplo. 

No discurso social das sociedades ocidentais, Paul Zumthor observa que houve, no século XX, uma espécie de ressurgência das energias vocais da humanidade, energias que foram reprimidas durante séculos pelo curso hegemônico da escrita (2000, p. 18). A leitura em voz alta, que se dá através do corpo, é uma espécie de resgate dessas energias vocais silenciadas pela escrita. Se o corpo é a materialidade através da qual existimos e interagimos socialmente, usar a voz na leitura significa dar vida ao texto em nós. Ler em voz alta, nessa perspectiva, é uma forma de sentir e viver a literatura na própria pele. Portanto, mesmo em um mundo globalizado e dominado pelo automatismo da informação, existe em nós uma necessidade da experiência da oralidade como uma forma autêntica de interação com a vida. 

Atualmente, participo de algumas atividades de leitura em voz alta que me levaram a pensar na força dos grupos formados em torno do prazer advindo dessa prática. Entre elas, está a leitura do Livro do desassossego, que ocorre em Porto Alegre, sob a coordenação da Professora Luiza Milano, da UFRGS. Em geral, reúnem-se em torno de 20 pessoas em um bar para ler e escutar o texto de Fernando Pessoa. A atividade é hipnótica. Ler e ouvir é irresistível. Somente a força da literatura sentida e vivida no corpo pode explicar a atração que se sente pela prática. Participo também, como leitora e coordenadora, do Grupo de leitura de poesia de autoria feminina, no Instituto de Letras da UFRGS. Nesse grupo, propomo-nos a ler e a ouvir vozes poéticas femininas, brincando com as possibilidades de leitura em voz alta. Experimentamos diferentes entonações, tentando desvelar a respiração que o poema pede. Nesse processo, acima de tudo, lemos imprimindo a nossa respiração ao poema.

Em um mundo acelerado e saturado de informações como o nosso, ler em voz alta pode ser uma forma de respirar. Ler em voz alta pode ser uma forma de permitir que o texto deixe suas ressonâncias no corpo, instaurando a ressignificação de nosso estar no mundo e o refinamento da percepção de nossa potência enquanto sujeitos capazes de transformar a realidade. 

Referência: 

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC, 2000. 

POR CINARA FERREIRA



















- Doutora em Letras, área de Literatura Comparada, UFRGS e
-Docente do Instituto de Letras, da UFRGS.

Nota do Editor:

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Um comentário:

  1. Prefiro uma Leitura silenciosa no início e em seguida uma Leitura em Voz Alta para evitar erros no futuro.

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