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sábado, 3 de agosto de 2019

E Quando Não se Gosta de Ler Poesia?


Autora: Cinara Ferreira(*)
(...)
Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...

Manuel Bandeira

É comum ouvir pessoas afirmando que não gostam de ler poesia. Muitas são categóricas. Questionadas sobre o motivo, em geral, respondem que acham um tipo de leitura difícil. Diante dessa resposta, quando posso, faço um convite para a escuta de alguns poemas, uma vez que a característica principal do gênero é a sonoridade. As rimas, a repetição de letras e palavras e o uso de onomatopeias são poderosos recursos que conferem musicalidade ao texto e reforçam o sentido. Exemplo marcante de uso da sonoridade a favor do sentido é "Trem de Ferro", de Manuel Bandeira, que imita um trem pela repetição de versos e sons, sendo tão ritmado que foi musicado por Tom Jobim. A leitura expressiva e a sensibilização para a musicalidade pode contribuir com a formação do gosto pela leitura de poemas. Pessoalmente, já ouvi vários depoimentos de leitores que dizem terem sido despertados para a poético dessa forma.

No entanto, não é qualquer tipo de leitura que sensibiliza alguém que não gosta de poesia. Uma leitura monótona pode, inclusive, reforçar a aversão, afastando ainda mais o leitor potencial, pois não é adequada para a expressão. Para dar expressividade ao texto, é preciso fazer modulações na voz, gestos, expressão facial, interpretação e movimentos, que deem corpo ao poema. Aliás, o poema é sentido no corpo de quem lê e de quem ouve. A expressão deve ser composta a partir do conteúdo e do ritmo sugerido pelos versos. Isso significa que cada poema pede um tipo de leitura. Uma boa entonação pode ser alcançada ao se dar destaque maior a algumas palavras em relação a outras, fazendo pausas ou enfatizando-as. O silêncio é tão importante quanto o som, pois permite sentir o poema. Nesse sentido, é importante que tenhamos familiaridade com o texto, para que saibamos quais palavras merecem destaque, por seu significado ou pelo sentimento que expressam.

O sentimento é um dos principais motivos que nos levam a gostar de ler. Quando nos identificamos com o eu que se expressa no texto, passamos a gostar do gênero. Isso acontece porque o escritor é um tipo de sujeito que consegue dizer de um modo especial coisas que todos sentem. Através de recursos como a sonoridade, as imagens e as metáforas, o texto poético, em especial, dá forma concreta a sentimentos. Por isso, chama-se o eu que se expressa no poema de "eu lírico", "eu poético" ou "sujeito lírico". Este "eu" não corresponde exatamente ou somente à pessoa do autor, pois é porta voz de conteúdos coletivos. Então, a escolha de poemas com os quais o leitor possa se identificar é um caminho bastante promissor para criar o gosto pela leitura de poesia.

Além da identificação, a leitura possibilita o desenvolvimento da capacidade de leitura de mundo. Quando lemos um poema, exercitamos a interpretação, habilidade fundamental em um mundo regido por signos. A linguagem poética, muitas vezes, exigirá um esforço maior de decifração por usar os signos de forma ambivalente. A poesia não é linear como o discurso cotidiano, pois estabelece relações inusitadas, justamente para expressar aquilo que a linguagem comum não dá conta. Logo, a leitura de poesia pode trazer muitos benefícios ao indivíduo, na medida em que aprimora sua leitura da vida, conforme muito bem expressa Ricardo Azevedo no poema "Aula de leitura":

A leitura é muito mais
do que decifrar palavras.
Quem quiser parar pra ver
pode até se surpreender:
vai ler nas folhas do chão,
se é outono ou se é verão;
nas ondas soltas do mar,
se é hora de navegar;
e no jeito da pessoa,
se trabalha ou se é à-toa;
na cara do lutador,
quando está sentindo dor;
vai ler na casa de alguém
o gosto que o dono tem;
e no pelo do cachorro,
se é melhor gritar socorro;
e na cinza da fumaça,
o tamanho da desgraça;
e no tom que sopra o vento,
se corre o barco ou vai lento;
também na cor da fruta,
e no cheiro da comida,
e no ronco do motor,
e nos dentes do cavalo,
e na pele da pessoa,
e no brilho do sorriso,
vai ler nas nuvens do céu,
vai ler na palma da mão,
vai ler até nas estrelas
e no som do coração.
Uma arte que dá medo
é a de ler um olhar,
pois os olhos têm segredos
difíceis de decifrar.

Poema extraído do livro: AZEVEDO, Ricardo. Dezenove poemas desengonçados. São Paulo: Ática,1999.

* CINARA FERREIRA

- Doutora em Letras, área de Literatura Comparada, UFRGS e
-Docente do Instituto de Letras, da UFRGS.














Nota do Editor:

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