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terça-feira, 3 de março de 2020

Transporte Público e Seu Dilema Sem os Cobradores


Autora: Josiane Batista(*)

Recentemente, ao aguardar o ônibus para ir ao trabalho, logo que entrei percebi que o humor do motorista estava um pouco alterado.

Vários passageiros assim como eu pagavam a passagem com dinheiro, o que fazia o motorista dar troco e liberar a catraca quase que simultaneamente.

Na verdade ele não conseguia fazê-lo com a mesma velocidade com que as pessoas se enfileiravam na catraca e quase um a um o solicitava a liberação da entrada no veículo.
Este fato agravou mais seu estado emocional. Em certo momento ele respondeu: "Calma, eu só um só!"

Não quero aqui de forma alguma denegrir a imagem do motorista de ônibus, pois todos enfrentamos dias em que não estamos bem; poderia também ter ocorrido algum fato em sua via pessoal que o fez estar naquele estado emocional. Enfim, é completamente compreensível que haja dias em que estejamos com raiva ou irritados por algum fato.
Mas o que me chamou a atenção foi o fato dele exclamar: "Eu sou um só!"
Realmente é, e está cumulando funções que a meu ver não trazem benefícios a ninguém.

Em minha cidade, Belo Horizonte no Estado de Minas Gerais isso se tornou possível com as alterações trazidas pela Lei Municipal nº 10.526 de 2012, que modificou dois artigos da Lei nº 8.224 de 2001.

O § 1º do art. 3º da Lei nº 8.224, de 28 de setembro de 2001, passou a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 3º ...
§ 1º Cada veículo destinado aos serviços de transporte público coletivo e convencional de passageiros por ônibus do Município de Belo Horizonte será operado por um motorista e um agente de bordo, à exceção dos veículos das linhas troncais do sistema de Bus Rapid Transit - BRT, dos veículos em operação em horário noturno e nos domingos e feriados, e dos veículos dos serviços especiais caracterizados como executivos, turísticos ou miniônibus.". (NR) (grifos nossos)
Com a simples leitura do parágrafo primeiro do artigo 3º da Lei nº 8.224 percebe-se que a regra é que cada veículo destinado ao transporte público coletivo e convencional de passageiros seja operado por um motorista e um agente de bordo (cobrador). A exceção ocorreria nos veículos das linhas troncais do BRT – Bus Rapid Transit (no caso de Belo Horizonte, o Move) e veículos e operação no horário noturno e nos domingos e feriados e de serviços especiais. Somente nessas situações as empresas poderiam operar com presença facultativa de cobradores.

A discussão é sobre a interpretação que tem se dado a Lei uma vez que a modificação seria apenas para as especificidades do BRT que tem características de metrô, pois a tarifa é cobrada nos terminais e não dentro dos veículos; o que viabilizaria a ausência dos cobradores.

Contudo, na prática, a retirada dos agentes de bordo ocorreu em todas as linhas do transporte público e em todos os horários, inclusive, nos horários de maior concentração de passageiros e atualmente é uma realidade que parece não ter mais volta.

A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT em seu artigo 468, caput, estatui que:
"Art. 468 - Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia. (grifos nossos)."
A conclusão lógica é que nenhuma alteração pode ser lesiva ao trabalhador, e depende do seu consentimento, entretanto, a meu ver essa alteração trouxe malefícios para os motoristas, aos agentes de bordo (aos que não tiveram sua mão de obra aproveitada em outra função e foram demitidos) e a população que utiliza o transporte público.

Nem mesmo após a aplicação de multa diária, pela Justiça, pelo descumprimento da Lei, fez com que as empresas concessionárias retornassem com os agentes de bordo sobrecarregando os motoristas.

Quando um trabalhador exerce, além da sua função, atividades de um cargo diferente, este está acumulando funções e é o caso dos motoristas que estão dirigindo os veículos e cobrando as passagens.

Sabemos que a direção de um veículo é algo que exige muita atenção e disciplina, mas ao contrário do que os defensores dessa modificação dizem, a prática é que às vezes os motoristas cobram as passagens enquanto deveriam estar prestando a atenção somente no trânsito.

Portanto, na prática, os motoristas estão na condução do veículo e preocupados se cobraram a passagem de todos os passageiros, bem como fazendo o controle da liberação da catraca.

Outro ponto negativo é que do banco do condutor, o motorista precisa (não significa que consegue) ainda ver todo o carro, o que pode ocasionar acidentalmente dele arrancar o veículo antes de todos os passageiros terem desembargado.

As viagens, inevitavelmente ficaram mais longas, quando não se tem o profissional correto para se realizar a função de cobrar a passagem.

Outro aspecto interessante é que houve acordos para aumento de um percentual na remuneração dos motoristas devido a dupla função. Entretanto, esse "aumento" pecuniário não é capaz de reparar o estresse com que esses profissionais estão trabalhando atualmente, sem mencionar na outra categoria de trabalhadores que perdeu seu posto: os agentes de bordo.

Mesmo que o aumento pecuniário fosse maior, ainda assim, não compensa o risco em que todos nós estamos sendo expostos.

Na verdade essa discussão só existe pela má aplicação da Lei, pelas empresas concessionárias, pois fizeram da exceção à regra a fim de desonerar sua folha de pagamento.

A realidade se distancia da teoria neste caso. A ideia de se ter um trabalhador multitarefa dentro do transporte público não me parece ser uma escolha genial, ao contrário, demonstra total falta de respeito ao trabalhador.

Certo é que os motoristas estão "dando conta", pois precisam trabalhar; é assim que o sistema capitalista funciona; Mas até quando esperaremos para consertar uma situação periclitante como esta? Esperaremos alguma coisa ruim acontecer?

Aceitaremos a extinção da profissão dos agentes de bordo?

Evidente que não. Este artigo não tem a pretensão de esgotar um tema tão complexo, mas de levá-lo a reflexão que esta situação pode atingir a todos, mesmo que nem seja usuário do transporte público. E provocar a empatia dos usuários para a condição dos motoristas e agentes de bordo afetados por essas mudanças, e fazê-los refletir na maneira em que podemos ajudar quando da utilização do transporte público.

Não sei se o motorista daquele dia fatídico estava sob o estresse da dupla função, mas fato é que me despertou para reivindicarmos em prol deles, não só porque seremos prejudicados ou beneficiados, mas porque o avanço da tecnologia tem causado a coisificação humana, que por infelicidade pode atingir a toda e qualquer categoria de trabalhador.

REFERÊNCIAS

BELO HORIZONTE. Lei Municipal nº 8.224, de 28 de Setembro de 2001. Autoriza implementar bilhetagem  eletrônica nos coletivos, proíbe a substituição das catracas e garante emprego dos operadores na forma que menciona. Belo Horizonte, 2001
Disponível:
https://leismunicipais.com.br/a/mg/b/belo-horizonte/lei-ordinaria/2001/822/8224/lei-ordinaria-n-8224-2001-autoriza-implantar-bilhetagem-eletronicanos-coletivos-proibe-a-substituicao-das-catracas-e-garante-emprego-dos-operadores-na- Acesso em 26 fev.2020; 

BELO HORIZONTE. Lei Municipal nº. 10.526, de 03 de Setembro de 2012. Altera a Lei Nº. 8224/01 e dá outras providências. Belo Horizonte, 2012. 
Disponível em
https://leismunicipais.com.br/a/mg/b/belo-horizonte/lei-ordinaria/2012/1052/10526/leiordinaria-n-10526-2012-altera-a-lei-n-8224-01-e-da-
Acesso em 26 fev. 2020; e

BRASIL, Consolidação das Leis do Trabalho, Decreto-Lei Nº 5.452, de 1º de Maio de 1943
Disponível em:
http://http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm
Acesso em: 27 fev.2020.

*JOSIANE RODRIGUES JALES BATISTA















 -Advogada;
-Graduação pela Escola Superior de Negócios (2010);
-Pós-graduanda em Docência com Ênfase Jurídica pela Faculdade Arnaldo Jansen;
-Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Dom Helder Câmara (2016);
Membra  do Projeto Direito na Escola(https://direitonaescola.com)


Nota do Editor:
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