Autora: Fabiana Benetti(*)
A possibilidade de poder desenhar um contorno para si mesmo traz o desafio de constituir o que é um homem livre. O exercício da liberdade é poder pensar o modo de existência que se deseja potencializar? E também, pensar em qual será a prática do cuidado de si ?
Cuidar de si é ter autonomia ante uma lei ideal e universal, é quebrar crenças podendo dar vazão à invenção de como se relacionar com o mundo que começa no próprio corpo e se estende ao outro como composição dentro de uma zona de variação.
Cuidar de si é cuidar do coletivo como indivíduo, com varias escalas de individuação onde a aliança é apoiada na força e não na fraqueza que leva a submissão, dependência, compaixão, hierarquia. Algo que gera movimento e ocupação do que se cria na relação como convivência que modifica, altera e expande.
Desmontar a relação de forças que podem entrar em combate e competição. Produzir nessa força uma dobra nela mesma, ganhando capacidade e autonomia sobre si mesmo; uma inflexão criando uma espessura interna com manobras como espaços que podem moldar, esculpir a maneira de acontecer sobre tal relação. Quando uma força, ao invés de enfrentar, ela se dobra produzindo uma força que pode se apresentar como resistência que cria espessura própria para enfrentar os poderes tiranos, produzindo outros modos de existência, possibilitando as diferenças e, assim, uma curvatura da existência por conta própria, dificilmente capturável.
Podemos pensar em monólogos que temos como fabricação de um certo mundo autônomo. Quando passamos a olhar para as próprias convicções como o que resiste na envergadura das diferenças, ao invés de tentar colonizar ou se deixar ser colonizado, desertando o campo do outro. Ter a prática de vergar-se sobre si para reinventar a existência de um outro tempo, outras possibilidades, outros espaços na relação dentro e fora. Praticar uma liberdade entra como pratica concreta cotidiana de construção de tempos e espaços que não existiam antes.
O processo de analise é uma possibilidade do ser se envergar sobre si, abrir espaços e tempos, amparando e desconstruindo regras que nós seres humanos viemos nos colocando, submetidos a hábitos e automatismos, onde há dominação e um servidão. Isso implica em que aquele que vive a tirania dos seus próprios impulsos não pode lidar com o outro. Um processo ético de cuidado molda uma conduta que não é uma preocupação de se salvar contra todos os outros de forma egocêntrica e individual; mas sim uma prática que contorna um meio de acontecer através da prática de si na relação com os outros, no respeitado encontro do outro como outro. Assim, são práticas que produzem singularidades.
Curvar-se sobre si é olhar e ver o que tem lá dentro, ver as forças que estão em jogo, olhar para caixa preta do que é individual. Conhecer, não no sentido de descobrir no que se é, mas sim no que se pode, no que pode esse corpo, essa conjugação, composição: um jeito de circunscrever uma certa região, vários modos de entender o que é conhecer-te a ti mesmo. "Conheça a ti mesmo" (grego): em si mesmo a verdade. Esta consigna ofuscou outra que é: "cuide-se a si mesmo", pois essa não desemboca num prazer teórico ou operação intelectual. É mais uma prática-uma arte da existência- do que conhecimento da verdade.
A ética vem da arte de poder produzir uma existência potente, digna como criação de si mesmo. Não passa por um modelo já dado, mas sim por uma expressão da existência, uma construção da existência, chance de inventar, maneira de existir com a posse da força. Força esta que é uma arte de existir e produz uma relação consigo que se estende ao outro. A liberdade está no criar mais do que no reproduzir e desamarrar o corpete da cultura e, assim, livrar-se do próprio poder da cultura em que se habita.
O cuidado de si não depende de elaboração intelectual. Quando a cultura faz uma aliança com a ética fomentamos o cuidado, podemos pensar que algumas populações de grande vulnerabilidade sabem muito bem sobre o cuidado, trazendo a arte de um cuidado coletivo . A arte de viver não é prerrogativa de elite, mas está nos valores para o exercício das relações.
O que é uma vida que vale a pena? O que é um certo desprendimento e postura que traz o cuidado de si com ética que se apresenta quase como uma sabedoria? Um misto de felicidade e autonomia ante os infortúnios, dissabores da existência, onde o sujeito não é abalado o tempo todo pelo que acontece na sociedade que ocupa. Desconfiança sobre o sucesso, a gloria, o contentamento, o lugar, o poder.
Tem coisas que acontecem que dependem do meu movimento e outras não. Só posso manobrar o que depende de mim, campo de atuação que me ocupa. Depende de mim a relação que eu tenho com as coisas e como eu as represento. Se consigo ter um certo recuo, a alma é mantida, assim como minha dignidade. Não é que os códigos de condutas me obriguem a ser mais rígido, há uma intensificação de uma vigilância interior, onde o sujeito torna se sujeito de seus atos.
Foucault acredita que a cultura de si- que não é o individualismo, narcisismo, culto da interioridade psíquica- tem a ver com a arte da existência, a arte de viver. Esse cuidado consigo é algo mais que a preservação do corpo e da alma, é elemento a se aperfeiçoar, se formar, exercer sobre si mesmo uma atitude que investe na estética da existência, para assim: "chegar numa altura de si mesmo"(Nietzsche). Envergadura, vergar, curvatura sem fechamento, uma espiral do que ele pode e vai se criando, não é uma racionalidade socrática, mas sim um modo de vida. Não significa solidão, mas sim uma conexão com o mundo de outra forma (Deleuze).
Ninguém faz isso sozinho: há um interlocutor para essa transmutação. Um dispositivo através do qual nos treinamos para olhar a nós mesmo, interiorizando esse saber passado, como uma antropofagia da minha experiencia com esse outro. Transmissão da arte de existir (estoicos). Priorizar mais a vida do que a teoria. Para os estoicos, toda questão da liberdade era não ser escravo. Como entender o escravo dentro da liberdade na vida contemporânea? Somos escravos de modos não autônomos, pois dependemos de um consumo de lugares de poderes para estar na vida? Difícil é o desapego aos modos de pensamento, crenças de uma cultura esculpida na alma.
Estoicos faziam estágios de pobreza para mostrar que não eram escravos da riqueza. Provar autonomia em relação ao que nos acontece. Descobrir o que está ao meu alcance e o que é independente de mim. O sofrimento assim como o prazer são acessórios que não definem minha dignidade.
O núcleo da historia é consentir ou não com o que acontece.
O que é essa ideia do que está fora do meu alcance e sobre o que não posso intervir?No meu alcance, como posso acontecer?
Transformação no modo de pensar o que nos afeta? Liberdade maior em relação ao destino. Amor fati liberdade é dizer sim para o destino. A vida é entregue a quê? Uma prática dos estoicos era fazer o balanço da jornada...sentar para pensar o que vem e o que foi.... inquérito interior, sem julgamentos. Não sob os olhos de Deus, mas como exercício de averiguação, ponderação sobre os acontecimentos. Não há compensação, salvação da alma, mas sim o cuidar da alma e corpo. Aqui não há culpa, pecado ou punição; sem castigo a ser espiado. Mudar o modo de relação com o poder que apoia os cuidados da vida abre para uma menor dependência de segurança , controle e normas?
*FABIANA BENETTI
-Psicóloga, psicanalista, especialista em psicossomática e esquizoanalista;
-Psicóloga graduada pela Universidade Paulista(1997);
-Aprimoramento em Analises do comportamento aplicado(ABA) United Response ,Londres,2001;
-Pós Graduada em Cross Cultural Psychology pela Brunel University em Londres, 2002;
-Atendimento em consultório particular em São Paulo-Tel/what´s 11 985363035.
-Atendimento em consultório particular em São Paulo-Tel/what´s 11 985363035.
-Membro do Departamento de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae;e
-Agenciamento em Filosofia e Esquizoanálise com Peter Pál Pelbart e Luiz Fuganti.
Nota do Editor:
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Muito bom ler um texto com tantas referências filosóficas! Obrigada doutora Fabiana! Enriquecedor!!
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