Autora: Cinara Ferreira(*)
Em 10 de dezembro deste ano, comemora-se o centenário de nascimento de Clarice Lispector (1920-2020), uma das escritoras mais importantes da Literatura Brasileira. A autora de mais de 30 obras, como as memoráveis A paixão segundo G. H. (1964) e A hora da estrela (1977), tem como uma de suas marcas inconfundíveis o desvelamento do sensível em sua escrita. Seus romances, contos, crônicas, cartas e entrevistas mostram o mundo a partir de uma lente apurada e voltada para tudo o que se esconde e escapa nas situações cotidianas. Neste artigo, apresentarei uma breve biografia da autora e comentarei algumas de suas crônicas publicadas no Jornal do Brasil, entre 1967 e 1973, reunidas posteriormente no livro A descoberta do mundo (1984), organizado pelo filho Paulo Gurgel Valente.
Clarice Lispector nasceu na Ucrânia e chegou ao Brasil em 1922 com os pais e duas
irmãs. A família judia morou inicialmente em Maceió (AL), onde havia alguns
parentes, mudando-se três anos depois para Recife (PE). Segundo Nadia Gotlib, "Clarice,
cujo nome de nascença era Haia, viveu uma infância muito pobre" e “no Recife,
aprendeu a ler e se apaixonou pela literatura". Após a morte da esposa na
década de 1930, o pai de Clarice Lispector mudou-se com as filhas para o Rio de
Janeiro. Em 1939, Clarice ingressou no curso de Direito na antiga Universidade
do Brasil, hoje UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Nesse período, iniciou-se
na imprensa como jornalista, publicando contos em periódicos.
Sua estreia na literatura foi com Perto do coração selvagem (1943), livro bem acolhido crítica literária da época. No mesmo ano, casou-se com Maury Gurgel Valente (1921-1994), com quem teve dois filhos, Pedro e Paulo. Para acompanhar o marido diplomata, Clarice morou em diferentes lugares do mundo. De volta ao Rio de Janeiro e separada em 1959, a escritora passou a dedicar-se à escrita de forma integral, publicando seus livros e textos avulsos na imprensa como uma forma de sobreviver e inserindo-se novamente no circuito literário carioca. A autora faleceu de câncer em 1977, ano de publicação de seu último livro, A hora da estrela. Desde lá, seus livros tem sido reeditados e estudados incansavelmente.
Na crônica, "Lição de filho", a cronista relata uma história aparentemente trivial sobre uma conhecida sua que faria uma apresentação ao piano na televisão:
Lição de filho
"Recebi uma lição de um de meus filhos, antes dele fazer 14 anos. Haviam me telefonado avisando que uma moça que eu conhecia ia tocar na televisão, transmitido pelo Ministério da Educação. Liguei a televisão, mas em grande dúvida. Eu conhecera essa moça pessoalmente e ela era extremamente suave, com voz de criança e de um feminino-infantil. E eu me perguntava: terá ela força no piano? (...)
Começou. E, Deus, ela possuía a força. Seu rosto era um outro, irreconhecível. Nos momentos de violência apertava violentamente os lábios. Nos instantes de doçura entreabria a boca, dando-se inteira. E suava, da testa escorria para o rosto o suor. De surpresa de descobrir uma alma insuspeita, fiquei com os olhos cheios de água, na verdade eu chorava. Percebi que meu filho, quase uma criança, notara, expliquei: estou emocionada, vou tomar um calmante. E ele:
- Você não sabe diferenciar emoção de nervosismo? Você está tendo uma emoção.
Entendi, aceitei, e disse-lhe:
- Não vou tomar nenhum calmante.
E vivi o que era para ser vivido. (1999, p. 138-139)"
A crônica começa anunciando uma lição recebida, criando expectativas no leitor, especialmente por se tratar da lição de um filho muito jovem. Depois disso, a narradora expõe a situação vivida que lhe causa grande comoção. O fato de não esperar muito da moça ao piano e se deparar com sua força a emociona, a ponto de a levar às lágrimas. Clarice mostra o quanto a arte pode ser transfiguradora tanto em quem a realiza quanto em quem a contempla. A moça, transfigurada pela música, provocou uma transfiguração em sua expectadora, que inicialmente não suportou admitir sua sensibilidade diante do filho e anunciou que tomaria um calmante, pois está nervosa. A lição se revela quando a criança a alerta que não se tratava de nervosismo, mas de emoção. Nesse sentido, a personagem mais uma vez se transfigura, ao aceitar o que diz o filho e afirmar que viveria o que era para ser vivido.
Ainda no campo do sensível revelado em acontecimentos comuns, nas pequenas crônicas "Dor de museu" e "Comer", Clarice nos chama a atenção para a sensibilidade sentida de forma inusitada:
"Dor de museu
Só posso chamar assim porque essa dor só aparece quando percorro museus. Mal começo a caminhar e a parar diante dos quadros vem a dor no ombro esquerdo – é sempre a mesma. Gostaria de saber do que se trata. É dor de emoção? (1999, p. 153)"" ComerA comida estava ruim, mas que bom: ela me renovará toda para uma futura comida boa que nem ao menos sei quando virá. (1999, p. 418)"
O não esperado de uma "dor de museu" ou de achar bom que "a comida estava ruim" é que promove o deslocamento de sentido nos textos. Tal deslocamento instaurado pela linguagem nos fazer ver o mundo de forma nova. Em sua literatura, Clarice Lispector nos transporta para aquilo que não percebemos habitualmente, nos mostrando que a realidade pode ser percebida de maneira sensível e poética. Nesse sentido, na crônica "Abstrato é o figurativo", a escritora mostra-se consciente do papel da literatura e das artes enquanto formas de revelação:
"Abstrato é o figurativo
Tanto em pintura como em música e literatura, tantas vezes o que chamam de abstrato me parece apenas o figurativo de uma realidade mais delicada e mais difícil, menos visível a olho nu. (1999, p. 316)"
No ano do centenário de seu nascimento, estão sendo lançados filmes, peças teatrais, exposições, edições especiais de seus livros e eventos acadêmicos em todo o país, reafirmando o quanto até hoje a escrita e a figura enigmáticas de Clarice Lispector encantam e surpreendem seus leitores com sua forma de desvelar o mundo. Para finalizar, convido a todos que visitem ou revisitem a obra da autora, pois só a partir da leitura de seus textos é possível experimentar o mistério de Clarice Lispector e, assim, "viver o que tem que ser vivido."
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice - Uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.
* CINARA FERREIRA
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