A desaceleração no ritmo de vida foi inevitável durante a pandemia. Por um tempo, resistimos à essa desaceleração que nos foi imposta por um vírus. No entanto, nós, seres humanos, somos capazes de nos adaptarmos à novas realidades e propostas com certa facilidade. E, durante o período mais crítico da pandemia, não sem resistir, nos adaptamos às modalidades de atividades à distância e... descobrimos a beleza de possuir mais tempo útil. O tempo que antes era utilizado no trânsito, passou a ser utilizado como mais tempo de sono, mais tempo em família, mais tempo em lazer, por exemplo.
Entretanto, conforme se aproximou o tão esperado e anunciado "fim da pandemia", sofremos com o doloroso, necessário e progressivo retorno às atividades presenciais. A volta à "normalidade" colocou a todos, novamente, em uma rotina de constantes urgências e emergências. Desde então, o nosso cotidiano está em ritmo acelerado, e uma boa administração e gerenciamento do tempo se tornou uma habilidade essencial para conciliar o esperado retorno à "normalidade" com a recém descoberta do poder de possuir autonomia e vontade para direcionar o uso do seu tempo para o que, de fato, considera ser sua prioridade.
O tempo, mais do que nunca, tornou-se o bem mais valioso. E, diante desta valorização do tempo, a percepção da necessidade de se priorizar atividades cotidianas, implicou, necessariamente, em uma rejeição massiva pelos momentos de estresse, aflições e angústias.
Mas, o leitor deve estar a se perguntar o que isso tem a ver com o Direito do Consumidor, não é?Por exemplo, é comum ir ao mercado e ao dirigir-se ao caixa, descobrir que o valor do produto na gôndola estava anunciado em valor menor, enquanto que no caixa estão cobrando para além daquele que foi anunciado. Em muitos estabelecimentos, ainda não se respeita o Código de Defesa do Consumidor que prevê, justamente, que, prevalecerá a venda pelo valor mais baixo – desde que não se trate de erro grosseiro. Quando os fornecedores rejeitam a vigência da lei de consumo, inicia-se um ciclo – muitas vezes sem fim – de embates e discussões. E este tempo, o qual exige do consumidor priorizar um debate em virtude da negativa de vigência de um direito que o fornecedor se recusa a cumprir, é que embasa a TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO.
Na notória e valiosa lição do advogado e criador da Teoria do Desvio Produtivo, Marcos Dessaune, em artigo publicado na Revista do Direito do Consumidor em 2018, intitulado Teoria Aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: Um Panorama[1], o autor nos conduz, em linhas gerais, sobre o conceito desta Teoria, quando ensina que:
"É notório que inúmeros fornecedores, cotidianamente, empregam práticas abusivas e colocam produtos e serviços com vício ou defeito no mercado de consumo. Além disso, muitos desses fornecedores, diante da reclamação do consumidor, ainda resistem à rápida e efetiva resolução desses problemas de consumo que eles próprios criam. Tal comportamento induz o consumidor em estado de carência e condição de vulnerabilidade a despender seu tempo vital, a adiar ou suprimir algumas de suas atividades existenciais e a desviar suas competências dessas atividades, seja para satisfazer certa carência, seja para evitar um prejuízo, seja para reparar algum dano. Tal série de condutas caracteriza o "desvio produtivo do consumidor", que é o evento danoso que acarreta lesão ao tempo existencial e à vida digna da pessoa consumidora, que sofre necessariamente um dano extrapatrimonial de natureza existencial, que é indenizável in re ipsa."
Em outras palavras, a Teoria do Desvio defende que todo tempo desperdiçado pelo consumidor para a solução de problemas gerados por maus fornecedores constitui dano indenizável[2].
A Teoria do Desvio Produtivo, vem, ao longo dos últimos anos, conquistando seu espaço e ganhou impulso quando houve a compreensão, pelos consumidores e seus advogados, quanto à percepção do tempo como bem mais valioso do ser humano.
A partir desta compreensão, e das recorrentes ações judiciais sustentando esta tese, coube ao Poder Judiciário, processar e julgar cada uma das situações apresentadas.
A uniformização jurisprudencial, apesar de desejada, não é ainda uma realidade em nosso país; e, observou-se, então, decisões antagônicas e diversas quanto a mensuração do valor do tempo do consumidor. E, como todo progresso vem a partir do primeiro passo, e da continuidade e desejo de persistir nos próximos, observamos que o Poder Judiciário brasileiro, em sua maioria, compreendeu a necessidade de restituir o consumidor pelo tempo que precisou abrir mão de outras atividades na sua rotina, para "brigar" por seus direitos – os quais tiveram a sua vigência negada por “maus fornecedores”.
Neste âmbito, inclusive, o Superior Tribunal de Justiça, já se posicionou e consolidou a aplicação da Teoria do Desvio Produtivo, como no mais recente julgado sobre o tema:
PROCESSO CIVIL E DIREITO DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. AUSÊNCIA. JUNTADA DE DOCUMENTOS COM A APELAÇÃO. POSSIBILIDADE VÍCIO DO PRODUTO. REPARAÇÃO EM 30 DIAS. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO COMERCIANTE.
(...)
5. À frustração do consumidor de adquirir o bem com vício, não é razoável que se acrescente o desgaste para tentar resolver o problema ao quao ele não deu causa, o que, por certo, pode ser evitado – ou, ao menos, atenuado – se o próprio comerciante participar ativamente do processo de reparo, intermediando a relação entre consumidor e fabricante, inclusive porque, juntamente com este, tem o dever legal de garantir a adequação do produto oferecido ao consumo.[3]
A pacificação desta compreensão acerca da preciosidade do tempo das pessoas, e dos consumidores, em geral, "deu" o próximo passo quando inspirou a redação do Projeto de Lei 1954/2022 de autoria do deputado Carlos Veras. Este Projeto prevê a indenização pela perda de tempo do consumidor, ainda que não haja dano moral ou material.
O Projeto busca estabelecer prazos gerais máximos para que fornecedores – como prestadores e fornecedores de água, luz, telefone, agências bancárias, escolas, hospitais entre outros, realizem serviços de atendimento ao público bem como serviços mais complexos.
Sem nos adentrarmos ao debate jurídico quanto à criação ou não de mais uma e nova modalidade de dano, ou uma subespécie do dano moral, é preciso reconhecer que a tendência é reconhecer a valiosidade do tempo do consumidor, bem como impor aos maus fornecedores a obrigatoriedade do cumprimento das normas consumeristas que já estão em vigência no Brasil há mais de 30 anos.
O Poder Judiciário e o legislador brasileiro já reconhecem sinalizaram com suas ações próprias de sua competência a relevância do valor do tempo do consumidor, resta agora, aos prestadores de serviços e fornecedores reconhecerem esta importância, adotando estratégias de resolução de conflitos extrajudiciais dentro do próprio estabelecimento com o treinamento de sua equipe de colaboradores, educando-se quanto às normas consumeristas em vigor.
REFERÊNCIAS
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