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quinta-feira, 29 de junho de 2023

As novas ações de filiação


 Autora: Melissa Burufi (*)


Na medida em que, no século passado, a família patriarcal, o direito patrimonializado e a consanguinidade reinavam sob as estruturas familiares, a presunção de filiação provinha da origem sanguínea e, acima disso, do matrimônio, haja vista a máxima de que os filhos nascidos na constância do casamento tem por pai o marido de sua mãe.
A maternidade do filho gerado por meio de relação sexual entre marido e mulher era certa, vez que ela se manifesta por sinais físicos inequívocos. A paternidade era incerta e a presunção se atribuía diante do fundamento da fidelidade conjugal por parte da mulher[1].
Porém, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, e a ocorrência das maiores e mais profundas mudanças no direito de família, excluindo a família baseada exclusivamente pelo vínculo matrimonial e priorizando a organização familiar baseada no afeto, com a busca da realização plena de todos os membros que a integram, surge o conceito de família eudemonista. Desta forma, o instituto da filiação também sofreu bruscas alterações, visto que o afeto é de extrema relevância nas relações paterno-filiais.

A par disso, sobrevieram as mudanças no Direito de Filiação e, até mesmo, nas ações de filiação.

Vale apontar as formas nas quais são realizados os Registros de Nascimentos de recém-nascidos. Quando os pais são casados, deverão comparecer ao cartório de Registro de Pessoas Naturais levando os documentos de identificação original do declarante (mãe ou pai), Certidão de Casamento, Declaração de Nascido vivo (DNV), sendo desnecessária a presença do pai e da mãe de forma conjunta no cartório.

Entretanto, quando os pais da criança não são casados, o nome do pai da criança somente poderá constar do registro se este reconhecer a paternidade.

Assim, ou ambos os genitores comparecem ao cartório ou, então, a mãe comparece sozinha levando uma escritura pública ou instrumento particular com firma reconhecida, no qual o homem reconheça que é pai da criança. É possível, de igual sorte, que a mãe leve uma procuração específica do pai da criança na qual ele faça o reconhecimento.

Todavia, não sobrevindo o reconhecimento por parte do genitor, a mãe deverá registrar sozinha o filho, a fim de que a criança não seja prejudicada, garantindo identificação para o exercício de seus direitos enquanto pessoa.

No entanto, deverá entregar ao Oficial do Registro Civil o nome e demais dados do suposto pai, quando será instaurado procedimento para averiguar se a alegação da mãe está correta ou não, ou seja, se o suposto pai referido é realmente o pai da criança.

Este procedimento somente foi possível com o advento da Lei 8560/1992, restando denominado de "averiguação oficiosa de paternidade", previsto no art. 2º da referida Lei[2]. Tal procedimento, de cunho administrativo, viabilizou caminhos mais céleres para o reconhecimento de paternidade, garantindo direito de filiação e hereditariedade à criança, somando à ascendência genética - todos abrangidos pelo princípio magno da dignidade da pessoa humana.

Vale observar, nesse aspecto, o direito à busca da ascendência e descendência viabilizadas pelas ações investigatórias de paternidade e maternidade, sejam elas biológicas ou socioafetivas. Nesse aspecto, é importante referir a legitimidade ao pedido post mortem[3], ocorrido após o falecimento do(a) suposto(a) pai/mãe, bem como a viabilidade do agrupamento de parentalidade, hoje denominado de multiparentalidade, na qual é a forma de reconhecer, no campo jurídico, o que ocorre no mundo dos fatos.

Embora nem todas as inclinações afetivas gerem o vínculo socioafetivo de filiação, esta forma de exercício da parentalidade passou a ser recebida pela doutrina e pela jurisprudência, gerando, inclusive, todos os efeitos decorrentes da relação paterno-filial (ou materno-filial), ainda que não haja lei específica a regulamentando.

Primeiramente, com o reconhecimento das famílias homoafetivas (formada por pessoas do mesmo gênero – feminino/ masculino), abriu-se um precedente para a inclusão de mais de um pai ou mais de uma mãe no registro de nascimento dos filhos, já que, nesses casos, aconteceria sempre uma ‘dupla maternidade’ ou ‘dupla paternidade’.

De igual modo, embora os padrastos e madrastas não tenham, por lei, determinadas obrigações em relação aos seus enteados, com o aumento das famílias reconstituídas ampliaram as chances de aparecimento de laços afetivos que geram efetivamente uma relação de filiação socioafetiva. Assim, nas famílias reconstituídas e nas demais modalidades familiares que possam surgir, algumas situações passaram a merecer ponderação, nas quais se cria uma relação de socioafetividade sem que se desconsidere o valor e o contato com a origem biológica. Nesses casos, a multiparentalidade apresenta-se como solução aos novos formatos trazidos pelas contemporâneas relações familiares, somando vínculos, ao invés de excluir.

Vale deixar claro que a multiparentalidade gera todos os efeitos da filiação para os envolvidos e, dessa forma, somente deve ser estabelecida quando, de fato, estiver pulsante, pois o principal vetor observado na resolução dos conflitos acerca de causas dessa natureza é o do melhor interesse da criança. Fora isso, a ausência de legislação específica sobre a multiparentalidade não impede que seja aplicada, no intuito de proteger as entidades familiares, nos termos propostos pela Constituição - com proteção do indivíduo, da sociedade e do Estado.

Somado a isso, dentro dessa onda revolucionária no direito de filiação, dando um salto à temática, pode-se apontar a ruptura da presunção relativa da paternidade e absoluta da maternidade, ante a existência das técnicas de reproduções assistidas que, sendo utilizado material genético de terceiro anônimo, denominadas de reprodução assistida heteróloga[4], a paternidade/maternidade biológica do nascituro será distinta da verdadeira paternidade/maternidade, essa considerada como socioafetiva, provinda do projeto parental almejado pelas partes.

Portanto, o estado de filiação é gênero do qual são espécies a filiação biológica e a filiação não biológica. A filiação socioafetiva, portanto, é bastante abrangente e, na reprodução medicamente assistida, heteróloga, ao considerar pai/mãe jurídicos aqueles que não forneceram o material genético para a concepção de seu filho, traz a tona a origem não genética, construída pelo afeto, pela convivência, pelo nascimento emocional e psicológico do filho que enxerga naqueles com quem convive e recebe afeto seus verdadeiros pais.[5]

O art. 1.597, V, CC[6], apresenta a regra jurídica sobre a presunção de paternidade dos filhos advindos de inseminação artificial heteróloga. Neste tipo de inseminação, o material genético envolvido é de um terceiro, mas com a concordância e autorização prévia do marido, aqui compreendendo também o companheiro. Esta é juridicamente necessária para viabilizar a presunção da paternidade. Esta situação decorre do fato de o Código Civil não ser taxativo e explícito em relação à autorização ou regulamentação da reprodução assistida. Segundo Venosa, o código "apenas constata lacunosamente a existência da problemática e procura dar solução ao aspecto da paternidade".[7] Por sua vez, há divergência na doutrina quanto à necessidade de autorização expressa e escrita, para que possa evitar qualquer tipo de impugnação da paternidade que vier a ocorrer posteriormente.

Diante desta questão, o Conselho de Justiça Federal, por iniciativa do Superior Tribunal de Justiça, elaborou um enunciado tratando do assunto. A saber:

No âmbito das técnicas de reprodução assistida envolvendo o emprego de material fecundante de terceiros, o pressuposto fático da relação sexual é substituído pela vontade (ou eventualmente pelo risco da situação jurídica matrimonial) juridicamente qualificada, gerando presunção absoluta ou relativa de paternidade no que tange ao marido da mãe da criança concebida, dependendo da manifestação expressa (ou implícita) de vontade no curso do casamento (Conselho de Justiça Federal, Enunciado nº 104).
Ainda, na reprodução assistida heteróloga, havendo o consentimento, depois de realizado o procedimento, não poderá sobrevir a contestação da paternidade. A partir do momento que assumiu a paternidade de filho, com que sabidamente não tinha consanguinidade, não lhe é permitido negar sua responsabilidade, salvo se provar vício de vontade por meio de coação, erro ou lesão. Seguindo essa linha, há que se fazer referência ao direito sucessório, de filhos provindos de reprodução assistida post mortem, ante a igualdade na filiação, não sendo possível haver distinção em relação aos herdeiros já nascidos há época da abertura da sucessão.

Aqui, vale observar que, ante a ausência de legislação sobre o tema, existe divergência em relação aos prazos para realização da concepção, bem como para busca do quinhão hereditário, cabendo ponderação entre os princípios da dignidade da pessoa humana, da autonomia da vontade, do livre planejamento familiar, da igualdade entre os filhos, da segurança jurídica e o princípio da saisine [8].

Na tentativa de eliminar as controvérsias a III Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal aprovou o Enunciado 267, segundo o qual:
Enunciado n. 267, da III Jornada de Direito Civil: a regra do art. 1.798 do Código Civil deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso de técnicas de reprodução assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras previstas para a petição da herança.
Há, todavia, necessidade de se estabelecer limites temporais para a utilização do material genético e a concretização da inseminação, em razão de que a decisão pode ocorrer bem além do falecimento do pai ou da mãe, concretizando-se depois da finalização do inventário.

A primeira solução consistiria em, havendo a concepção posteriormente ao encerramento da partilha, esta haveria de ser revista por ação de petição de herança, que poderá desaguar na restituição dos bens do acervo e sua consequente redistribuição, com todas as implicações cartorárias e fiscais. Fortalecendo esta opinião, resta o dispositivo legal do direito sucessório o qual assegura, através da ação de petição de herança (art. 1.824, CC), que o herdeiro reserve ou mesmo solicite a restituição de seu quinhão hereditário, uma vez que se comprove sua qualidade de herdeiro do de cujus.

Em razão da súmula 149 do STF, a prescrição do direito de ação de petição de herança é de 10 anos. Tal entendimento, de se utilizar o dispositivo da petição de herança ao caso, nasce a partir da observação do princípio da igualdade entre os filhos, o qual proíbe distinção na filiação. Não se tem respostas prontas sobre a temática, assim como as novas questões que surgem no direito de filiação.

Cabe, desse modo, aos operadores do direito qualificarem-se considerando que as relações familiares são complexas e dinâmicas, exigindo dos profissionais que se debruçam sobre a temática buscar constante aprimoramento na nova área denominada Direito de Filiação.

REFERÊNCIAS

[1] ZENI, Bruna Schlindwein. A evolução histórico-legal da filiação no Brasil. Direito em Debate, 2009. p.63.Disponível <https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/viewFile/641/363>. Acesso em: 30.12.2019;

[2] Lei 8560/92, art. 2º: Em registro de nascimento de menor apenas com a maternidade estabelecida, o oficial remeterá ao juiz certidão integral do registro e o nome e prenome, profissão, identidade e residência do suposto pai, a fim de ser averiguada oficiosamente a procedência da alegação. Desse modo, é dever do Oficial enviar para o juiz uma certidão dizendo: foi registrada a criança, apenas no nome da mãe e esta declarou que os dados do suposto pai. O juiz mandará notificar o suposto pai, independente de seu estado civil, para que se manifeste sobre a paternidade que lhe é atribuída; o magistrado poderá, ainda, quando entender necessário, determinar a realização de diligências, em segredo de justiça; o juiz, sempre que possível, ouvirá a mãe sobre a paternidade alegada; no caso do suposto pai confirmar expressamente a paternidade, será lavrado termo de reconhecimento e remetida certidão ao oficial do registro, para a devida averbação. Se o suposto pai não atender, no prazo de trinta dias, a notificação judicial, ou negar a alegada paternidade, o juiz remeterá os autos ao representante do Ministério Público ou da Defensoria Pública para que ajuíze, havendo elementos suficientes, a ação de investigação de paternidade. Vale ressaltar que na averiguação oficiosa, se o suposto pai não concordar, o juiz não pode determinar compulsoriamente que ele seja declarado como genitor da criança. Desse modo, a “averiguação oficiosa de paternidade” não se confunde com um processo judicial de investigação de paternidade. Ainda, cabe esclarecer que o Oficial deverá adotar a providência do art. 2 da Lei nº 8560/92 mesmo que a mãe não queira ou não informe os dados do suposto pai. Diante disso, se o juiz concluir que não há possibilidade de que sejam trazidos elementos para a definição da verdadeira paternidade, ele poderá extinguir o procedimento administrativo, encaminhando os autos ao representante do Ministério Público para que intente a ação competente, se cabível. Assim, o STJ entende que: "O juiz tem a discricionariedade de extinguir, por falta de provas, o procedimento de averiguação oficiosa, que tem a natureza de jurisdição voluntária, quando reputar inviável a continuidade do feito. Neste caso, será ainda possível a propositura de ação de investigação da paternidade".(STJ. 3ª Turma. REsp 1376753/SC, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 01/12/2016). Sobre o tema, vale referir o Provimento 16/2012 CNJ que fixou regras e procedimentos para facilitar o reconhecimento de paternidade de mães cujos filhos não possuem o nome do pai na certidão de nascimento, dos filhos maiores de 18 anos que também não possuem o nome do genitor no registro de nascimento e dos pais (genitores) que desejam reconhecer sua paternidade;

[3] Superior Tribunal de Justiça garante que é possível o reconhecimento da paternidade socioafetiva post mortem, ou seja, mesmo após a morte do suposto pai socioafetivo. STJ. 3ª Turma. REsp 1.500.999-RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 12/4/2016;

[4] Em se tratando de inseminação artificial, é importante fazer a distinção quanto aos agentes que efetivamente participação com a doação das células reprodutivas. Costuma-se chamar de reprodução assistida homóloga aquela em que o sêmen inoculado na mulher for do próprio marido ou companheiro), e heteróloga quando o material fecundante for de terceiro (doador);

[5] CÂNDIDO, Nathalie Carvalho. Filiação na reprodução assistida heteróloga. 
Disponível: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3670/Filiacao-na-reproducao-assistida-heterologa>. Acesso em: 01.01.2020;

[6] Já no momento da entrada em vigor do CC de 2002 este artigo 1597 sofreu severas críticas, pois tratava-se de um texto aberto, indeterminado e genérico. Naquela oportunidade o prof. Miguel Reale, coordenador da Comissão elaboradora do CC 2002 já explicava: "A experiência jurídica está sujeita a imprevistas alterações que exigem desde logo a atenção do legislador, mas não no sistema de um código, mas sim graças a leis especiais, sobretudo quando estão envolvidas tanto questões de direito quanto de ciência médica, de engenharia genética, etc.";

[7] VENOSA, Sílvio. Direito de Família. São Paulo: Atlas, 2007. p.268; e

[8] No Direito Brasileiro a sucessão está consubstanciada no princípio da saisine, o qual esta disposto no art. 1784 do Código Civil. Por este princípio, há a transferência automática e instantânea da posse e da propriedade daquele que é autor da herança aos seus sucessores. Em razão disto, nossa legislação assegura os direitos do nascituro, inclusive quanto aos direitos sucessórios. Assim, em caso de falecimento do genitor durante o período gestacional de um filho, restaria assegurado o quinhão hereditário do mesmo. Ainda, em razão de sucessão testamentária, é legítima a possibilidade do testador beneficiar filho ainda não concebido, de pessoas indicadas por ele, desde que vivas estas no momento da abertura da sucessão. Todavia, com relação aos efeitos sucessórios dos filhos havidos por inseminação homóloga post mortem não há consenso na doutrina. Pois, segundo o próprio princípio da saisine, o filho gerado através de técnica artificial póstuma não poderia ser considerado como herdeiro pela doutrina positivista, em razão de ao momento da abertura da sucessão  do filho, mas tão somente, uma futura expectativa. A Autora Giselda Maria Fernandes Hironaka, defende que os direitos sucessórios são estendidos àqueles concebidos através de reprodução assistida homóloga após a morte do genitor desde que cumpridos todos os requisitos previstos no Enunciado 106, do Conselho da Justiça Federal, "[..]a inseminação post mortem, operar-se-á o vinculo parental de filiação, com todas as consequências daí resultantes, conforme a regra basilar da Constituição Federal, pelo seu art. 226, § 6º, incluindo os direitos sucessórios relativamente à herança do pai falecido". Também com esse entendimento, o professor Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho.

* MELISSA TELES BARUFI
























-Advogada graduada pela Faculdade Luterana do Brasil - (Canoas/RS) - 2005;

- É fundadora do Escritório que leva seu nome, tem sua matriz no Centro Histórico de Porto Alegre (RS)e é  especializado em demandas relacionadas com à advocacia Familiarista, incluindo o Direito Internacional, com parceiros nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Tocantins e Distrito Federal;

- Melissa entende que trabalhar com os diversos núcleos Familiares, principalmente com o Parental é, sem dúvida, lidar com a parte mais sensível do ser humano – o afeto.

Nota do Editor:

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