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domingo, 17 de março de 2024

Nossa cultura produz melancolia


 Autora: Fabiana Benetti(*)

Demandas da cultura contemporânea são solo fértil para a melancolia gerada pela "falta de tempo" para se vivenciar o luto necessário para a vida humaną.

Freud (1914) afirma que o narcisismo é um componente inerente ao desenvolvimento libidinal, sendo um componente da pulsão de auto-preservação. O narcisismo primário designa um estado precoce, em que a criança só pode investir toda sua libido em si mesma. A criança é em si mesma o objeto de amor. o que caracteriza o narcisismo é o EU tomar a si mesmo como objeto erótico. Quando a libido toma a si mesmo como objeto amoroso. O melancólico também se volta para si; perdeu um objeto, não sabe bem qual é. O objeto de amor perdido que ainda não foi instaurado toma o lugar do eu e passa a ser julgado pelos pais internalizados no sujeito. Se o narcisismo surge da projeção narcísica dos pais, o melancólico perdeu o que o narcisista tenta manter. Enquanto o movimento narcísico é fruto do desejo dos outros, o melancólico julga que não correspondeu a esse desejo, que fica apoiado nas leis da cultura inserida, e vive o medo de perder o amor dos pais e a todos que idealiza. Enquanto isso; o sujeito está preso no ideal de ego dos pais.

Mesmo antes do nascimento, quando um ser vivente é desejado e sonhado, ele já existe no imaginário dos pais, que lhe atribuem significante e significados que interferirão em sua constituição futura. Nos primeiros anos, esse corpo é marcado libidinalmente pelos cuidados maternos e pelo desejo parental; só aos poucos o indivíduo vai dele se apropriando. Segundo Winnicott, (1975), o bebê não tem como nomear, organizar, se apropriar dos fenômenos sensório-motores. Face à vivência do desamparo, o primeiro movimento do bebê é tentar dar um destino a esta angústia pela via alucinatória, uma descarga imagética e imediata. A falência desta tentativa o leva a buscar outras saídas psíquicas, mais elaboradas, para lidar com a angústia, sendo estas articuladas a partir da mediação de um outro. Ou seja, o movimento do sujeito para fora de sua redoma narcísica auto-suficiente rumo aos objetos do mundo é provocado pela experiência de insuficiência de seus recursos mágicos imediatistas. Com isso, esse bebê vai se apropriando do que lhe é oferecido e transformando-o em algo próprio, o sujeito gradativamente se singulariza e ganha autonomia, ao mesmo tempo em que permanece vinculado por marcas de dependência.

No processo de integração da psique haverá um progressivo adiamento de satisfação, resultante da "negociação" do sujeito com a cultura e um incremento da complexidade na busca do prazer. Gradativamente haverá a passagem do prazer imediato voltado para o auto-erotismo, lugar narcísico ou do eu ideal, para formas postergadas de prazer ou formas de prazer mediado. Ou seja, o processo de integração implica no reconhecimento, pelo sujeito, de que algo lhe falta, pelo qual deverá fazer-se trabalhar.

Entendemos que o conceito de narcisismo e de idealização em Freud são essenciais para a compreensão das formas de constituição das subjetividades contemporâneas. Considera-se, que a sociedade contemporânea é marcada por uma cultura da imagem, em que o instantâneo e a busca de satisfação imediata é contínua, são valores predominantes na rotina dos indivíduos. Uma dimensão importante deste processo é a dinâmica que se estabelece entre eu ideal e ideal de eu. Num primeiro momento, respaldado pelo desejo do eu, assume uma posição de seu próprio ideal (eu ideal). A vivência de limites e frustrações gradativamente impõe o deslocamento desse lugar de onipotência e perfeição, devendo o sujeito então se submeter a uma outra ordem, a ordem cultural. É a angústia frente à castração que levará o eu a uma reorganização da sua economia psíquica: o eu deixará de ser seu próprio ideal e procurará ter um ideal, sendo o eu ideal o manancial de referência ao qual o eu recorrerá na sua "negociação" com o ideal de eu num processo de constituição criativa que amplia e descobre a partir das experiências que não existe ideal. Como resultante desse processo, temos a constituição de uma subjetividade singular, marcada por representações afetivas valores da cultura na qual se insere o sujeito.

A satisfação narcísica imediata e automática são necessidades que permeiam vários aspectos da cultura, constituindo uma qualidade essencial a qualquer bem a ser consumido. O imediatismo vem com a obrigação de responder à todos os estímulos oferecidos, como uma descarga pulsional operacionalizada na busca do descartável ou daquilo que nunca perece. A falta de tempo de investir afeto e sentido às experiências da vida, as pessoas nos dias de hoje se apegam mais do que se encontram, voltadas a responder aos estímulos ambientais como mais uma demanda de expressão ou endereçamento ao outro. Frente às dificuldades do sentir, vincular, constroem-se relacionamentos mais idealizados, fragmentados e precários, representados mais por uma descarga do fazer e pertencer do que uma perspectiva intima do encontro que traz as diferenças e possibilidade de criação.

Ferenczi (1909) escreve uma distinção interessante entre o processo de identificação e o de fascinação. No primeiro caso, o ego enriqueceu-se com as propriedades do objeto, introjetou o objeto em si próprio. No segundo, empobreceu-se, entregou-se ao objeto, substituiu seu componente mais importante pelo objeto. É no âmbito do fascínio, da hipnose, que se encontra o eu quando capturado na trama imagética dos pais.

Essa cultura fomenta a captura da trama parental, onde a incorporação ou idealização parece se sobrepor a introjeção das experiências, daí a busca de uma descarga que traga o prazer imediato assim como um bebê precisando mamar. Posteriormente, como recusa a lidar com a angústia da castração e sim permanecendo fixado no desamparo inicial narcisico do bebê, levando às dificuldades de diferenciação e autonomia .

Parece-me que a cultura contemporânea tem favorecido a busca pelo que é o perfeito e o imediato. A cultura parece estar sempre afirmando, através de ideias condensadas, que você pode - e pode imediatamente tudo. Definitivamente, o processo de constituição do sujeito não é automático e nem imediato. É preciso um longo investimento afetivo para que se instaure o sujeito subjetivo. As demandas da cultura atual não favorecem o tempo necessário à apropriação da informação mais a experiencia, não há tempo para o processo entre a vida, a morte, o luto das coisas, assim a urgência do momento em que vivemos nos convida a idealizar as experiências vividas e não vividas. Nesse sentido, o uso de drogas, álcool, tecnologia e os recursos constantes à ação e poder, trazem sensações de vitalidade e preenchimento, que buscam restituir a onipotência constantemente ameaçada pela realidade do movimento, tempo e alteridade.

Os estados de angústia, tristeza - experiências de dor que sinalizam o modo como o homem se coloca em certas situações, preparando-o para elas, também são aplacados por medicações. Busca-se permanecer no estado de prazer e alegria, ao preço de se eliminar parte da experiência humana. No coletivo, não se reconhecem mais a dor e a frustração como constitutivos do percurso de prazer e alegria. Dor e frustração passam a ser indicadores, não de limites inerentes à experiência humana, mas da insuficiência daquele sujeito singular. Ou seja, vale a ideia de que a imagem ideal de pleno prazer está disponível para todos a todo o momento e que a não concretização desse modelo decorre de exceções daquele sujeito.

Enquanto a cultura atual foca no narcisismo onipotente do poder e do ter, o indivíduo perde a possibilidade de ser, assim distanciando-se de sua potência e capacidade de se amar e amar o outro. Quando amamos nos doamos e lidamos com as diferenças, limitações e imperfeições, podendo assim experienciar os sentimentos na alteridade dos conflitos, caso contrário vive-se num caminho fechado, automático e operacional.

Percebo que a evolução desse comportamento automático, dissociado do sentir e preso numa necessidade de investir no movimento narcísico, gera a melancolia. A predisposição patológica é dada pelo narcisismo, como este foi vivenciado e construído ao longo do processo de constituição do sujeito.

Viver o luto é viver o tempo necessário para o indivíduo funcionar até poder desinvestir do objeto perdido, renunciar a ele, levando a libido de volta ao eu para que este possa desejar um outro objeto. De fato, ao sentir a falta do objeto, o sujeito enlutado descobre que era precisamente esse objeto desejado e perdido que não pode ser substituído por outro. Essa percepção faz com que a libido se volte para o objeto ausente, através de lembranças e expectativas que o sujeito se recusa a abandonar.

Alguns traços permitem pensar na cultura contemporânea como narcisista e propulsora de narcisismo: o gosto pelo efêmero, a perda de referência temporal ao passado e ao futuro; as rápidas qualificações para o trabalho, os valores e as normas de vida regidas pelo paradigma da estética; a competição como forma de constituição da identidade pessoal; o medo, gerado pela insegurança e pela competição; a perda da autonomia individual sob o poderio das falas dos especialistas; a incapacidade para simbolização e o consequente fascínio pelas imagens que constituem um falso self protegido nas demandas automáticas e aceitas em nossas micro-culturas.

Porém, a ordem humana surge exatamente como capacidade para simbolizar, isto é, para lidar com o ausente, o vazio, e a primeira relação com a ausência é dada pela relação com a mãe, e depois com o outro sob a forma do tempo, seja da relação com o que se tornou ausente - seja como relação com a natureza por meio do trabalho, que torna presente o que estava ausente. A temporalidade, relação com a ausência, é, assim, decisiva para a realização do indivíduo, e a impossibilidade dessa relação temporal é o que opera na melancolia e dificulta e impede o trabalho de sua superação.

A cultura do fugaz, do tempo reduzido ao instante presente, abandonou a intimidade e profundidade do tempo, desencadeando a impossibilidade de simbolizar a ausência e, portanto, gerando indivíduos carentes de si mesmos, impossibilitados de sentir a presença, impedidos de desenvolver um funcionamento psíquico, um potencial, portanto presos num objeto perdido - muitas vezes expressados por atuações, sintomas e doenças em detrimento da própria potência singular de criação.

*FABIANA BENETTI




















-Psicóloga, psicanalista, especialista em psicossomática e esquizoanalista;
-Psicóloga graduada pela Universidade Paulista(1997);
-Aprimoramento em Analises do comportamento aplicado(ABA) United Response ,Londres,2001; 
-Pós Graduada em Cross Cultural Psychology pela Brunel University em  Londres, 2002;
-Atendimento em consultório particular em São Paulo-Tel/what´s 11 985363035.
-Membro do Departamento de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae;e
-Agenciamento  em Filosofia e Esquizoanálise com Peter Pál Pelbart e Luiz Fuganti.

Nota do Editor:

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