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quinta-feira, 23 de maio de 2024

A Alienação Parental Autoinfligida


 

Vitória  Luiza  El Murr(*)

A ruptura da vida conjugal tem como consequência a manutenção da vida solo de um casal que viveu a dois. Principalmente por motivos de cunho emocional, um dos cônjuges não consegue viver o luto da separação: os sentimentos de rejeição, traição, insegurança, inconformismo acabam por fomentar um sentimento de vingança naquele que não aceita o fim. E adivinhem quem vira objeto de despique? Os filhos.

O genitor alienador promove uma campanha de desqualificação do outro, dificultando o contato físico e criando barreiras emocionais entre pais e filhos. Inicia-se um processo de lavagem cerebral na criança, e até, muito comumente visto, implantação de falsas memórias. A criança é inserida em um contexto malicioso, convencida pelo genitor guardião de situações que não ocorreram, ou não aconteceram da forma descrita.

Essa é a forma infelizmente "comum" de alienação parental. Em determinados casos, no entanto, o próprio genitor que se diz alienado é o responsável pelo afastamento da prole, em razão de seu próprio comportamento de desunião. Ele se utiliza, inclusive, do instituto da alienação parental como instrumento de desqualificação do genitor guardião. Esse tipo de prática configura a chamada alienação parental autoinfligida ou autoalienação parental.

É a alienação parental de forma inversa: na ânsia de atingir o genitor que detém a guarda, o autoalienador parental forja situações para se colocar no papel de vítima. Mostra, com esse comportamento, que tem um olhar apenas para os seus interesses e sentimentos, que não conseguiu elaborar o luto da separação e usa os filhos para atingir o outro genitor.

Mary Lund aponta que uma das maiores dificuldades no processo terapêutico que visa à reabilitação de famílias em conflito é que o genitor repudiado pela criança geralmente contribui diretamente para a alienação e para a perpetuação da situação de conflito com o outro genitor. É muito comum que um dos genitores, normalmente o pai, adote uma postura distante, rígida e autoritária.[1]

E de fato, assim como Mary Lund aponta, por ser uma atitude predominantemente masculina, entende-se que a autoalienação parental pode ser reflexo do desejo pela manutenção da supremacia da autoridade patriarcal que vigora no âmbito familiar.

Rolf Madaleno foi o pioneiro no reconhecimento dessa prática como uma forma de violação aos direitos das crianças e adolescentes. Para ele, a autoalienação pode ser causada "pelo progenitor destituído da guarda dos filhos, gerada pelo comportamento disfuncional de um pai que pode muito bem não ter conseguido superar a ruptura do seu casamento". No caso da alienação parental autoinfligida, um dos pais está tão obstinado pelo fato de as coisas não estarem funcionando como desejado, que atribui a responsabilidade dessa constatação a um suposto ato de deslealdade do outro genitor, sendo incapaz de observar que os filhos, bombardeados por uma série de agressões psicológicas, estão sofrendo com as situações que ele mesmo ocasiona[2].

A alienação parental autoinfligida pode se desenvolver de diferentes formas, observando-se comportamentos como a ausência prolongada e imotivada do genitor não guardião, e posterior descumprimento dos deveres de guarda, sustento e educação inerentes ao poder familiar, ou até mesmo a perpetração de agressividade, violência física e/ou verbal, desprezo com os filhos e, posteriormente aos atos alienadores, vem a tentativa de buscar o restabelecimento ou o desenvolvimento de vínculos com os filhos.

Diante de dificuldades na tentativa de retomada dos vínculos afetivos em decorrência do comportamento desmazelado com a prole, o genitor não-guardião promove a transferência da culpa ao genitor detentor da guarda, com a desqualificação de sua conduta ao tentar resguardar os filhos. Ao manifestar esse tipo de comportamento, o genitor não guardião se coloca, na realidade, no papel de alienador, e não de alienado (como tenta manipular), como uma forma perversa de vingança.

Sob a ótica de Ana Carolina Carpes Madaleno e Rolf Madaleno, na obra "Síndrome da Alienação Parental", a autoalienação apresenta-se como um desejo de manter a relação por meio do conflito:

A alienação parental também pode ser causada pelo progenitor destituído da guarda dos filhos, gerada pelo comportamento disfuncional de um pai que pode muito bem não ter conseguido superar a ruptura do seu casamento, pretendendo, por exemplo, manter a relação por meio do conflito ou simplesmente porque mantém desejos de vingança e considera a ex-mulher culpada pela separação, ou simplesmente porque tem medo de perder seus filhos[3].

Vejam que o genitor autoalienador, ao se coloca no papel de alienado, forjando uma situação, acaba por prejudicar a si mesmo, afastando a prole de si. Podem ser dadas, de forma mais detalhada, diversas atitudes que caracterizam a alienação parental autoinfligida, como, por exemplo, o pai que não tira fotos com o filho e culpabiliza a genitora guardiã, que impede a aproximação entre eles, o que não é verdade; o pai que fica meses sem contatar os filhos, e o faz intencionalmente para responsabilizar o outro, fazendo-se de vítima; entre outras.

Dois são os reflexos mais preocupantes deste tipo de atitude: o psicológico do menor, que claramente carregará traumas por tornar-se instrumento de disputa, e a judicialização do problema. Muitos autoalienadores ajuízam ações contra os genitores alienados, posicionando-se como vítimas. E, como supramencionado, quem mais sofre nessa competição é o menor, inserido no contexto judicial de disputa, passando por diversas avaliações psicológicas, além do desgaste emocional em ver os pais nesta situação de conflito.

Os traços psicológicos das crianças ajudam a diferenciar um caso real de alienação parental de uma autoalienação parental. Por meio de estudos da equipe interdisciplinar, são analisados os sentimentos que a criança e adolescente manifestam e suas respectivas origens, sendo esse o ponto-chave para identificação dos problemas no seio familiar.

No que tange a alienação parental comum, pode-se identificar em alguns casos a falta de espontaneidade com relação à manifestação de determinadas histórias, vontades e pensamentos, como se observa no relatório de uma assistente social que acompanha uma criança vítima de alienação parental:

A pedido de Luíza, brincamos de "mãe e filha"; onde ela era "minha mãe" e eu a "filha dela", durante a brincadeira ela me dizia que eu (a filha) teria que ser uma filha boazinha, se não ela (a mãe) iria morrer e "eu iria morar com uma família muito ruim. Seria a família do meu pai e que meu pai ia colocar o dedinho na minha bundinha e no meu xixi". Após falar isto, ela me beijou e disse: "Não é verdade! É minha mãe Gislaine que me diz isto quando eu não obedeço". E mudamos a brincadeira. ” (...) Quando a Luiza viaja comigo ela chega mais tranquila, ela conversa o tempo todo, conta da escolinha, das coleguinhas, da mãe, etc., pede para que eu não conte que ela "ama o pai" porque sua mãe fica ‘muito braba’. " (...) "A menina brinca, corre, abraça e beija o pai, quando lembra pede que eu "não comente com a fada" pois sua mãe diz que ela "só é amada pela mãe e só pode amar a mãe. A menina disse: "eu amo meu pai mas digo para minha mãe que não gosto, para ela não me bater"[4].

Vê-se claramente no relato acima, a tentativa de implantação de falsas memórias e atitudes agressivas por parte da genitora alienadora, que tenta impedir o surgimento de bons sentimentos da filha com o pai. Essa é a alienação parental na sua forma mais comum.

Todavia, nos casos de alienação parental autoinfligida, os sentimentos de rejeição ou de estranhamento por parte da prole surgem de forma espontânea, em decorrência de fatores diversos, como a ausência prolongada do genitor, autoritarismo extremo e desrespeito ao espaço, vontades e aos sentimentos dos filhos. Nota-se, portanto, que os elementos essenciais deste instituto, consistem na contribuição do alienado para sua própria alienação, com o exercício abusivo das responsabilidades parentais e o afastamento ou repúdio da prole em virtude deste comportamento.

A falta de previsão legal e a insegurança jurídica decorrente do desconhecimento da prática de autoalienação parental fazem com que muitos casos sejam conduzidos de maneira equivocada, atribuindo-se a um dos genitores a prática de alienação parental, quando, na verdade, se tem a situação inversa, que pode culminar em atos de autoalienação parental. Sem dúvida, apesar de a alienação parental não ter sido reconhecida como verdadeira síndrome, não se pode negar sua existência na vida prática e a importância de sua compreensão para a garantia do direito à convivência familiar dos infantes[5].

Infelizmente, não há decisões judiciais em larga escala que confirmam a existência e relevância da prática de autoalienação parental, limitando-se apenas a analisar, diante do caso concreto, a inexistência de alienação parental, sem atenção para a prática invertida. O fato de se trazer, ainda que para afastá-la, a possibilidade de autoalienação parental por uma das partes, indica o início de um reconhecimento do instituto pelos agentes atuantes no Poder Judiciário. No entanto, o desconhecimento desse outro lado ainda é notório e capaz de gerar muitas injustiças na análise dos casos que chegam em Juízo e que devem ser lidos à luz do melhor interesse da criança e do adolescente[6].

BIBLIOGRAFIA 

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 7ª Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 70014814479. Relatora Desembargadora Maria Berenice Dias. 
Julgado em: 07 jun. 06. 

MADALENO, Ana Carolina Carpes, MADALENO, Rolf. Síndrome da alienação parental. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 143;

LEAL, Livia Teixeira. A Importância do Reconhecimento da Autoalienação Parental para a Tutela do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente nos Conflitos Parentais. Rio de Janeiro: Escola da Magistratura do Estado do Rio De Janeiro. 2017. p. 62. 

REFERÊNCIAS

[1] LEAL, Livia Teixeira. A Importância do Reconhecimento da Autoalienação Parental para a Tutela do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente nos Conflitos Parentais. Rio de Janeiro: Escola da Magistratura do Estado do Rio De Janeiro. 2017. p. 50. APUD LUND, Mary. A therapist´s view of parental alienation syndrome, 1995;

[2] LEAL, Livia Teixeira. A Importância do Reconhecimento da Autoalienação Parental para a Tutela do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente nos Conflitos Parentais. Rio de Janeiro: Escola da Magistratura do Estado do Rio De Janeiro. 2017. p. 50. APUD MADALENO, Rolf. Autoalienação parental. In: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de; COLTRO, Antônio Carlos Mathias (Org.). Cuidado e afetividade. São Paulo: Atlas, 2016, p. 558;

[3] MADALENO, Ana Carolina Carpes, MADALENO, Rolf. Síndrome da alienação parental. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 143

[4] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 7ª Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 70014814479. Relatora Desembargadora Maria Berenice Dias. Julgado em: 07 jun. 06. Disponível em: www.mariaberenice.com.br/manager/arq/70014814479.doc.

[5] LEAL, Livia Teixeira. A Importância do Reconhecimento da Autoalienação Parental para a Tutela do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente nos Conflitos Parentais. Rio de Janeiro: Escola da Magistratura do Estado do Rio De Janeiro. 2017. p. 62;

[6] Ibidem.

* VITÓRIA LUIZA EL MURR

-Graduada pela Faculdades Metropolitanas Unidas – UniFMU (2018);


-Pós graduada em Direito de família e sucessões pela Escola Paulista de Direito - EPD (2020); e


- Áreas de Atuação: Direito de Família e Sucessões, Direito Imobiliário, Direito do Consumidor.




Nota do Editor:


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