Karolyne Toscano Vasconcelos (*)
A canção "Fio Maravilha", posteriormente intitulada de "Filho Maravilha", de Jorge Ben Jor, permanece até hoje como um clássico da música brasileira, com uma melodia envolvente que transcende décadas. Entretanto, a história por trás dessa obra revela uma interessante disputa judicial que perpassa a propriedade intelectual, direito autoral, direito marcário e desportivo, ilustrando bem como a cultura popular pode se entrelaçar com a esfera jurídica.
O artigo explora esse ícone musical da cultura brasileira sob o prisma jurídico, analisando as implicações e os desdobramentos do caso no contexto remoto e atual.
O contexto da obra: Fio Maravilha e o gol que virou música
A música "Fio Maravilha" foi lançada em 1972, em homenagem a um momento marcante da carreira de João Batista de Sales, mais conhecido como Fio Maravilha, quando o jogador marcou um gol histórico no Maracanã pelo Flamengo. No mesmo ano, a canção foi interpretada por Maria Alcina no Festival Internacional da Canção, alcançando grande popularidade e estabelecendo-se como um marco cultural da música brasileira.Apesar do sucesso imediato, o uso do nome "Fio Maravilha" acabou gerando um conflito jurídico entre o jogador e o compositor Jorge Ben Jor. Fio Maravilha, sentindo-se lesado por não receber royalties pelo uso de seu nome, decidiu processar o cantor, pleiteando uma parte dos lucros oriundos da música que carregava seu apelido.
Os Direitos Autorais e a proteção da obra criativa
Para compreender melhor o caso, é necessário entender a base jurídica que sustenta os direitos autorais. No Brasil, a Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 (Lei de Direitos Autorais) protege a criação intelectual em suas mais diversas formas – músicas, textos, pinturas, entre outras manifestações artísticas. Por essa legislação, o direito autoral é exclusivo do criador da obra, que detém o controle sobre sua utilização, divulgação, reprodução e distribuição.
No caso de Jorge Ben Jor, a faixa "Fio Maravilha" foi inteiramente composta pelo músico. A composição, letra, e melodia foram criações originais do artista. Para o advogado Rodrigo Couto, embora a figura de Fio tenha sido a inspiração para a música, o jogador não teve participação direta na sua criação, razão pela qual ele não poderia, juridicamente, reivindicar participação nos direitos autorais da obra.
A decisão judicial, nesse sentido, foi clara: a justiça brasileira negou a pretensão de Fio Maravilha de receber parte dos royalties da música, uma vez que não havia elementos que justificassem o reconhecimento de sua contribuição na criação artística em si.
Inspiração e o Direito Autoral
Um dos aspectos mais interessantes desse caso é a discussão sobre a linha tênue entre a inspiração e a coautoria. Em muitas obras artísticas, figuras públicas ou fatos servem como inspiração para a criação de personagens, músicas ou filmes. No entanto, a inspiração por si só não confere direitos sobre a obra. Para que haja qualquer participação nos direitos autorais, é necessário haver contribuição efetiva para a criação da obra.
Um caso emblemático e análogo ocorreu nos Estados Unidos com o filme "Citizen Kane" (1941), de Orson Welles. O filme foi fortemente inspirado na vida do magnata da imprensa William Randolph Hearst, o que gerou grande controvérsia na época. No entanto, como Hearst não teve nenhuma participação na criação do roteiro ou na produção do filme, ele não poderia reivindicar direitos autorais sobre a obra, mesmo que sua vida pessoal tenha servido de inspiração direta.
Assim, "Fio Maravilha" seguiu a mesma lógica: a canção foi inspirada no gol icônico de João Batista, mas a criação da obra foi totalmente de Jorge Ben Jor. Dessa forma, o jogador não tinha nenhum direito autoral sobre a música.
Direito de imagem e Direito Marcário: O que mudaria com a Lei Pelé?
Embora o processo inicial tenha sido decidido com base nos direitos autorais, o caso Fio Maravilha traz à tona uma questão que, atualmente, seria tratada de forma diferente: o uso do nome e imagem de atletas profissionais. Com a entrada em vigor da Lei Pelé (Lei 9.615/98), houve uma ampliação da proteção dos direitos de imagem de atletas, que passaram a ter maior controle sobre o uso de seus nomes e apelidos para fins comerciais.
A legislação tornou-se um marco importante na proteção do direito de imagem no Brasil, particularmente no que diz respeito aos atletas. Sob a égide da Lei Pelé, nomes, apelidos e pseudônimos desportivos são considerados ativos intangíveis, sujeitos à proteção jurídica. Dessa forma, se a canção "Fio Maravilha" fosse lançada nos dias de hoje, o jogador João Batista teria a possibilidade de impedir o uso de seu apelido ou, pelo menos, exigir uma compensação financeira pelo uso comercial da marca "Fio Maravilha".
O Direito Marcário na proteção de nomes de artistas e atletas
O uso de marcas e nomes no contexto esportivo tem ganhado relevância com o crescimento do mercado de marketing desportivo. Os atletas, assim como artistas e celebridades, passaram a registrar seus nomes e apelidos como marcas, garantindo a exclusividade de seu uso em produtos e campanhas publicitárias.
No caso de Fio Maravilha, se ele tivesse registrado o nome "Fio Maravilha" como uma marca, ele teria mais chances de obter uma compensação financeira pelo uso do apelido na música de Jorge Ben Jor, ainda que os direitos autorais sobre a obra musical fossem inteiramente do cantor. Este seria um cenário possível na era moderna, em que nomes como "Pelé" e "Neymar" são ativos valiosos no mercado global.
Um exemplo claro dessa prática é o jogador Michael Jordan, que garantiu a proteção de seu nome e imagem em diversas jurisdições. Em um processo de 2012, Jordan processou a rede de supermercados Dominick's, que utilizou sua imagem sem autorização em um anúncio. O tribunal decidiu em favor de Jordan, condenando a rede a pagar uma indenização milionária.
Considerações Finais
O caso Fio Maravilha é emblemático, pois ilustra como a cultura, o direito e os interesses comerciais se entrelaçam em disputas sobre propriedade intelectual. No cenário atual, marcado pela Lei Pelé e pela crescente conscientização dos direitos de imagem, é possível que Fio tivesse uma posição mais forte para negociar o uso de seu nome. No entanto, no contexto da época, o direito autoral prevaleceu, garantindo a Jorge Ben Jor a exclusividade sobre sua criação artística.
Hoje, com a evolução das leis que protegem a imagem de atletas e figuras públicas, casos como este exigem uma análise mais cuidadosa, que leve em consideração tanto os direitos autorais quanto os direitos de imagem e marcas.
O legado do caso Fio Maravilha serve como um exemplo de como o direito pode acompanhar as transformações culturais e econômicas, e como essas transformações exigem uma interpretação jurídica mais ampla, que contemple os direitos das diversas partes envolvidas em uma obra cultural.
*KAROLINE TOSCANO VASCONCELOS
-Advogada inscrita na OAB/PB sob o nº 30.201;
-Bacharela em Direito pela Unifacisa Centro Universitário (2020);
-Pós-graduanda e em Direito Digital, LGPD e Proteção de Dados,Direitos Humanos,Direito Constitucional Aplicado e Direito das Mulheres pela i9 Educação ; e
-Membro da Comissão de Direito Digital, Internet, Tecnologia e Inovação da OAB/PB, Subseção Campina Grande.
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Dra Karoline
ResponderExcluirExcelente artigo
Para minha área , uma contribuição muito inteligente e oportuna