Autora :Marilsa Prescinoti (*)
A democracia não morre apenas com solavancos, tanques de guerra e continências.
Ela também pode morrer por descuido, radicalização, discurso de ódio, intolerância, medo do comunismo, do fascismo; morre pelas mentiras contadas como forma de governar, pela desinformação e manipulação dos fatos.
Ela morre com a negação da ciência e com o desrespeito à propriedade privada.
Ela morre em votações obscuras no Congresso Nacional.7
Morre pela aceitação e impunidade de seus detratores.
Anistia? Não mesmo!
As democracias ao redor do mundo têm enfrentado desafios significativos nos últimos anos, com muitas delas entrando em colapso, apesar do voto popular. Esse fenômeno é conhecido como "recessão democrática".
A expressão sugere um estado de cansaço, desânimo ou até mesmo frustração com o processo político, com a falta de mudanças significativas, a decepção em relação a promessas não cumpridas e a corrupção. Estado perigoso, é neste momento que líderes populistas e autoritários ganham espaço.
Basta um único homem com discurso populista, más intenções e votos suficientes para alcançar a Presidência da República e, então, desencadear um processo lento, sorrateiro e perigoso.
De acordo com os especialistas Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, autores do livro Como as democracias morrem, a ascensão de líderes autoritários eleitos democraticamente é um dos principais fatores que contribuem para a erosão das democracias. Eles argumentam que, em muitos casos, o declínio da democracia ocorre não por golpes militares ou por imposições autoritárias externas, mas por um processo interno gradual, em que líderes políticos e movimentos ganham apoio popular para subverter ou enfraquecer as instituições democráticas.
Esses líderes frequentemente usam táticas populistas, sem compromisso com a verdade, com a ética, sem compromisso com o país e a nação, apelando para a família e a religiosidade. Colocam-se como garantidores da lei e da ordem, que, segundo eles, estaria ameaçada. Sem pudor, o discurso é fácil e atraente para uma população ansiosa por um salvador. Sob esse discurso, o apoio popular é consequência.
Eleitos, implementam medidas que concentram poder em nome da liberdade.
Fatores que contribuem para a morte das democracias:
Populismo: Líderes que usam discursos simplistas e emocionais para ganhar apoio popular, muitas vezes à custa da institucionalidade democrática;
Extremismo: Ideologias que rejeitam o pluralismo e a tolerância, promovendo a violência e a intolerância;
Autoritarismo: Concentração de poder em torno de um líder ou partido. As instituições são subservientes ao poder central, muitas vezes usando a força e a repressão para manter o controle;
Erosão das Normas Democráticas: A democracia não se sustenta apenas por regras formais (como constituições e leis), mas também por normas informais que garantem o funcionamento estável do sistema. A deterioração dessas normas pode ser um fator crucial. Líderes que ganham popularidade podem começar a atacar as instituições democráticas e desafiar limites constitucionais, sob o pretexto de atender à "vontade do povo" e às "4 linhas da Constituição";
Isso pode ser apoiado por setores da população que, em sua maioria, se sentem insatisfeitos com a política tradicional e acreditam que mudanças radicais são necessárias;
Apelo à "Vontade do Povo": Em muitos casos, se aproveitam de um contexto de insatisfação popular para ganhar apoio em nome de um suposto "interesse geral" da população. Prometem resolver problemas complexos e se apresentam como figuras fora do sistema, distantes das elites políticas tradicionais. Eles podem minar instituições democráticas, como o judiciário, realizar ataques sistemáticos contra a mídia independente e o sistema eleitoral, frequentemente com o apoio de uma parte significativa da população, que vê essas instituições como parte do problema;
Uso da Maioria para Legitimação: Em uma democracia, a maioria tem o poder de eleger seus representantes, mas a verdadeira democracia depende da proteção dos direitos das minorias e do respeito à pluralidade de opiniões. Quando um líder ou movimento se apoia na "maioria" para justificar ações autoritárias (por exemplo, modificando a constituição ou enfraquecendo os mecanismos de controle e equilíbrio), isso pode ser uma forma de usar o apoio popular para enfraquecer o próprio sistema democrático;
Deslegitimação das Instituições Democráticas: Atacam instituições que limitam seu poder, como o judiciário, os meios de comunicação independentes e os organismos de controle eleitoral. Esse ataque pode ser disfarçado como um "respeito à vontade do povo" ou como um "desafio à elite corrupta". Quando as instituições democráticas são deslegitimadas, fica mais fácil para líderes autoritários centralizarem o poder, muitas vezes com o apoio da maioria;
Polarização e Radicalização: Outro fator que pode contribuir para a morte de uma democracia com apoio popular é a crescente polarização da sociedade. Quando a sociedade se divide em facções extremas, as soluções democráticas para o conflito político podem ser vistas como ineficazes. Populistas podem explorar essas divisões, prometendo o "reconhecimento da vontade do povo", mas também incentivando a intolerância, a repressão de opositores e a perseguição política; e
Caminho Gradual para o Autoritarismo: As democracias podem começar a "morrer" de forma gradual. Isso não significa uma queda repentina, mas sim a transformação lenta das instituições democráticas em algo mais autoritário. O enfraquecimento dos controles sobre o poder executivo, a eliminação de contrapesos institucionais e a centralização do poder são exemplos de processos que podem ocorrer com o apoio popular, caso a população acredite que isso é necessário para melhorar a governança ou resolver crises.
Exemplos históricos de países que vivenciaram movimentos políticos que ganharam apoio popular e, gradualmente, minaram o sistema democrático, enfraquecendo o judiciário, atacando a mídia livre e controlando eleições.
Vou apenas pontuar as principais medidas adotadas que transformaram ou consolidaram o autoritarismo em alguns países.
Alemanha na década de 1930: O partido nazista, liderado por Adolf Hitler, chegou ao poder legalmente através de eleições. Depois de ganhar apoio popular, Hitler e seus aliados usaram a crise econômica e o medo do comunismo para enfraquecer o sistema democrático e estabelecer um regime autoritário;
Venezuela de Hugo Chávez: Chávez foi eleito presidente em 1998, apresentando-se como um defensor dos pobres e um crítico da elite corrupta;
Chávez começou a consolidar seu poder através de estratégias políticas e manipulações institucionais:
- Reformou a Constituição: Em 1999, convocou uma Assembleia Constituinte para redigir uma nova Constituição, que foi aprovada com mais de 70% dos votos;
- Controlou o Judiciário: Reformou a Suprema Corte, aumentando o número de juízes de 20 para 32, com suas indicações políticas;
- Dominou os Meios de Comunicação: Fechou a principal emissora e controlou a imprensa;
- Culto à Personalidade: Típico de regimes autoritários. Ele se retratava como o salvador da pátria. Seu governo foi marcado por grandes demonstrações de apoio popular;
- Militarização do Estado: Promoveu a "militarização" do governo, colocando militares em posições-chave no governo e em empresas estatais. Incentivou a formação de "milícias bolivarianas", uma força paralela composta por civis armados, leais ao regime. Esse estreito vínculo com os militares deu a Chávez uma base de apoio crucial, que continuou a ser usada por seu sucessor, Nicolás Maduro, para se manter no poder; e
- Reformas Eleitorais e Manipulação Eleitoral: Foram instituídas mudanças que deram maior controle do processo eleitoral ao governo, incluindo restrições à atuação de partidos de oposição;
Hungria: Em 2010, sob uma jovem democracia, o populista Viktor Orbán retornou ao cargo de primeiro-ministro e iniciou uma série de medidas para consolidar seu poder:
- Mudanças Constitucionais e Reformas Jurídicas;
- Reformas no Judiciário;
- Reforma Eleitoral; e
- Erosão da Liberdade de Imprensa
- Ataques à Sociedade Civil e ONGs:
- Lei contra Organizações Não-Governamentais (ONGs)
- Ataques ao Sistema Eleitoral e Manipulação das Regras
- Limitação das Liberdades Civis e Direitos Humanos e
- Promoção do Culto à Personalidade.
Em 2022, o Parlamento Europeu emitiu um relatório afirmando que a Hungria "não pode mais ser considerada uma democracia plena", lamentando que um de seus Estados tenha se transformado no que chamou de "regime híbrido de autocracia eleitoral".
Polônia: Em 1989, a Polônia inaugurava o primeiro governo democrático do antigo bloco soviético, o que, por fim, levou à queda do comunismo.
Em 2015, com a chegada do partido de ultradireita Lei e Justiça (PiS) ao governo, de orientação conservadora e nacionalista, o partido tem promovido uma série de reformas que têm sido amplamente vistas como uma ameaça ao sistema judicial independente, à separação dos poderes e à democracia.
Embora continue a realizar eleições regulares e tenha um sistema multipartidário, as medidas implementadas provocaram:
- Enfraquecimento da Independência Judicial;
- Erosão da Separação dos Poderes, um dos pilares da democracia;
- Repressão e deslegitimação da oposição;
- Alterações nas leis eleitorais;
- Ataques à liberdade de imprensa;
- Exploração do nacionalismo;
- Polarização política; e
- Enfraquecimento do Estado de Direito.
A Polônia, que transitou de um regime comunista para uma democracia parlamentar em 1989, está enfrentando um momento crítico em sua trajetória democrática com a ultradireita no poder. O Parlamento Europeu tem expressado preocupações crescentes;
EUA e a Invasão do Capitólio: A invasão do Capitólio, ocorrida em 6 de janeiro de 2021, foi um dos momentos mais dramáticos e alarmantes da história recente dos Estados Unidos e representou uma ameaça direta à democracia americana. A ação de milhares de apoiadores do então presidente Donald Trump, incitados por ele e seus aliados políticos, visava interromper o processo formal de certificação dos resultados da eleição presidencial de 2020, que havia sido vencida por Joe Biden.
Embora Trump tenha sido eleito de forma legítima em 2016, o ataque ao Capitólio em 2021 foi um episódio de extrema gravidade, marcado por tentativas de minar a confiança nas instituições democráticas, especialmente por parte de um setor de sua base eleitoral. Apesar das alegações de fraude eleitoral, as eleições de 2020 foram amplamente auditadas e verificadas, com todos os tribunais e autoridades eleitorais rejeitando as acusações. O ataque, portanto, representou uma afronta ao processo democrático, embora o resultado da eleição tenha sido finalmente respeitado pela oposição democrática e pelo sistema eleitoral dos EUA.
O ocorrido levanta questões sobre os limites da democracia e os perigos de um líder populista e autocrático eleito em uma das democracias mais influentes do mundo. Resta acompanhar as consequências políticas e sociais desse evento e como a democracia americana reagirá;
Brasil e o 8 de Janeiro: O ataque à democracia que culminou com a invasão dos Três Poderes em 8 de janeiro foi um teste crítico. O evento mostrou que, quando uma parte significativa da população adota a ideia de lideranças autoritárias que não aceitam os resultados eleitorais e recorre à violência e conspiração para alcançar seus objetivos, as bases democráticas são colocadas em xeque.
Embora o governo atual e as instituições democráticas tenham respondido de forma firme, o episódio deixou claro que a democracia brasileira continua a enfrentar ameaças reais.
Independentemente da ideologia, é fundamental separar os fatos dos anseios. Hoje, podemos afirmar que quem atentou contra a democracia foi Jair Bolsonaro e seus apoiadores; eram eles políticos, integrantes das Forças Armadas, do poder econômico e da sociedade em geral que se identificaram com o discurso do líder autocrata. São pessoas que não têm apreço pela democracia, pelas minorias, pelas liberdades individuais e não respeitam o Estado Democrático de Direito. Os radicais lideraram o movimento, mas muitos foram influenciados por discursos fáceis, maléficos, mentirosos e conspiracionistas. Pessoas comuns foram sendo gradualmente radicalizadas pelo bombardeio de mensagens nas redes sociais.
Um parêntese: vamos falar claramente, sem rodeios ou ilações. A ameaça à democracia foi um ato de apenas um espectro político: o da extrema direita. Independentemente de qualquer crítica que se faça ao outro lado, a esquerda nunca ameaçou nossa democracia. Os contos que aterrorizavam a população mais distraída sobre o Foro de São Paulo, George Soros, urnas eletrônicas fraudadas e a ameaça do comunismo já eram o ovo da serpente sendo chocado. Foi um método que eu vi nascer e crescer nas ruas da cidade de São Paulo, tomar forma e amedrontar o Brasil afora.
O leitor que chegou até aqui já deve ter percebido que o risco de o Brasil virar Venezuela só foi real sob o governo anterior, que seguia os caminhos percorridos por Hugo Chávez, a quem confessou admiração. Mas as mentes já estavam tomadas pelo contrário, acreditando que o risco partira da esquerda.
Do começo ao fim, quem tinha olhos para ver já identificava o governo Bolsonaro com viés autoritário e golpista. O método de governar, os discursos, a negação da pandemia, o flerte com a necropolítica e com a política higienista, o desrespeito ao meio ambiente e às minorias, a militarização do Estado. As medidas implementadas, o controle das polícias, da ABIN, os projetos para o controle do Judiciário, a repressão ostensiva ao contraditório, o desmantelamento de órgãos de controle, já davam sinais de alerta. Com a possível reeleição em 2022 e a eleição expressiva de aliados para o Congresso Nacional e nos Estados, ficou claro que tudo estava sendo direcionado para o enfraquecimento das instituições democráticas e para uma maior concentração de poder nas mãos do Executivo. Mais quatro anos de extrema direita no poder e não reconheceríamos a democracia como ela é. Por essa e todas as razões: obrigada, Nordeste!
Não acabou. Hoje, a extrema direita e tudo o que ela representa ainda ameaça nossa jovem democracia, seja por projetos obscuros e outros muito claros de controle do judiciário que tramitam no Congresso Nacional, seja pela falta de observância por parte da sociedade, seja pela desinformação e mentiras espalhadas de forma sistemática, pelo ódio político, pela polarização ou pela tentativa de anistiar os golpistas.
A invasão marcou um ponto em que a violência política se tornou aceitável, o que é um fato extremamente perigoso, podendo abrir caminho para outras tentativas de golpe de Estado ou para o uso da força para alterar o poder de forma antidemocrática. Por isso, é fundamental a punição exemplar. Quando a democracia é um valor fundamental de um país, não existe anistia para os detratores. A radicalização precisa ser inibida.
Os ataques sistêmicos ao STF que vêm acontecendo no Brasil e o estímulo ao ódio direcionado contra ministros não são simples manifestações de vontade popular, são métodos! É fundamental que a sociedade perceba a diferença entre críticas a decisões pontuais da Suprema Corte e ataques. São fatos distintos: um faz parte da democracia, é saudável e aceitável; o outro atua para enfraquecer o sistema judiciário.
Espero que o eleitor tenha se dado conta de que, em todas as democracias que morreram ou que correm sério risco, o enfraquecimento, a reformulação e os ataques ao Poder Judiciário são pontos comuns e determinantes.
O Judiciário forte e independente é decisivo contra os autoritários.
A independência do STF e do TSE foi determinante para garantir a manutenção da democracia brasileira contra os ataques sofrido após a derrota de Bolsonaro nas eleições de 2022. Alexandre de Moraes, brilhante constitucionalista, foi o homem certo no lugar certo, no momento certo.
A democracia brasileira sobreviveu, mas ainda corre riscos. É preciso vigilância e comprometimento de toda a sociedade democrática. Lembrem-se: basta um homem, autocrata, personalista, que não tem respeito pelo Estado Democrático de Direito, para desencadear o processo.
Não é razoável que o ódio político se sobreponha aos interesses democráticos, ao caráter pessoal dos candidatos ao Poder Legislativo e Executivo, nem que a ideologia se sobreponha a boas ou más políticas públicas.
Em resumo, as democracias podem morrer com o apoio popular quando líderes políticos usam sua popularidade para enfraquecer ou destruir as instituições democráticas, muitas vezes sob a justificativa de que estão atendendo à vontade da maioria. Isso é uma ameaça real em muitos contextos políticos contemporâneos, onde o descontentamento popular é explorado para justificar medidas autoritárias que, embora inicialmente populares, acabam corroendo os pilares da democracia.
A responsabilidade de preservar a democracia é toda nossa, enquanto sociedade.
Não é prudente estar distraído.
Não é atitude cidadã lavar as mãos; a vida não é generosa com os omissos.
Conhecimento é poder de decisão! Conheça.
Informação é antídoto contra a manipulação! Se informe!
Razão além da paixão. Pense.
Senso crítico acima da ideologia. Apure o seu.
Brasil em construção: 2026 está logo ali.
Democracia sempre!
*MARILSA PRESCINOTI com revisão de MARESSA FERNANDES
De acordo com suas próprias palavras:
-Empresária;
-Paulista;
- Gosto de filosofia; política; do Estado de SP e de gente bem resolvida.
Nota do Editor:
Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.
Texto oportuno. Parabéns!
ResponderExcluirObrigada
ExcluirParabéns Marilsa! Seu texto nos trás uma importante reflexão sobre o autoritarismo político. Não importa em que lado político ele brote, consegue arrastar multidões em seu apoio. Enquanto não tivermos homens (e mulheres) fortes, que tenham domínio e responsabilidade pela sua vida e respeito pela vida dos outros, ficaremos sujeitos à vontade de uma maioria fraca e sem direção própria.
ResponderExcluirAdorei a finalização do seu texto:
"Conhecimento é poder de decisão! Conheça.
Informação é antídoto contra a manipulação! Se informe!
Razão além da paixão. Pense.
Senso crítico acima da ideologia. Apure o seu."
Parabéns, minha Amiga!
Muito obrigada
ExcluirMuito obrigada
ExcluirUm povo que não aprende com os seus erros, está fadado ao fracasso!
ResponderExcluirSuas breves linhas nos remetem ao pensamento, infelizmente, uma parcela, mais precisamente a classe média, se recusa a pensar.
Asim como nos anos 30 do século passado, se deixaram cooptar por idéias e ideais de supremacia, escanteando tudo e todos que ousarem pensar fora da caixinha. Vimos o surgimento do genocida Hitler.
Estamos flertando com a hipocrisia. Estamos desinteressados do ato tenebroso que foi "pensado" não concretizado por obra de outrem.
T nós um genocida! O nosso genocida que acha graça em ver nossos avós morrendo sem ar.
Todos os sinais estão aí.
Nossa frágil democracia está morta.
Sensacional; Parabéns.
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