Com o crescimento monumental da quantidade de veículos em circulação, não raro nos deparamos com acidentes de trânsito envolvendo dois ou mais carros. Graves ou não, os prejuízos refletem na esfera jurídica com pedidos de indenizações por danos morais, materiais e, em alguns casos, danos estéticos.
Quando falamos em culpa por acidente de trânsito estamos tratando da responsabilidade civil subjetiva e para configurar o dever de indenizar é indispensável à presença de requisitos específicos: conduta (ação ou omissão), dano e o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso, tudo em conformidade com os artigos 186 e 927 do Código Civil.
Em breves palavras, a infração administrativa é a conduta contrária às normas jurídicas, como por exemplo, conduzir veículo sem portar a CNH, com a CNH vencida, licenciamento em atraso etc.
Culpa concorrente ocorre, nos termos do art. 945 do Código Civil, quando a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso e, por tal razão, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.
A infração administrativa para ser considerada concausa do acidente de trânsito e atrair a culpa concorrente para a vítima deve ser determinante para o evento danoso, do contrário, não é argumento suficiente para afastar a culpa exclusiva do causador do dano.
Embora a questão pareça lógica, ainda hoje as infrações administrativas são apontadas como concausa em acidentes de trânsito, mesmo quando não existe prova de que a infração tenha contribuído de forma efetiva para o dano. Vejamos recente decisão:
"Nesse passo, discorro pela existência, em verdade, de culpa concorrente.Conforme se depreende dos documentos juntados a fls. 86/87, o veículo da requerente possuía documentação vencida, com aptidão até o ano de 2019. Referida circunstância não foi refutada pela requerente, que não apresentou documentação contrária para comprovar a regularização do veículo à época do acidente.Assim, emerge a ilegalidade do trânsito durante o período em que ocorreu o acidente, ensejando a impossibilidade de circulação, o que, por decorrência lógica, afastaria a configuração do dano alegado.Por outro lado, o vídeo anexado à fl. 54 evidencia que o requerido realizou manobra irregular e ilegal, culminando no acidente em questão. Ao deslocar-se de maneira inadequada, o requerido foi o causador do evento danoso. Vale ressaltar que, mesmo na ausência do veículo da requerente, tal manobra incorreta poderia ter colocado outros veículos em risco. Dessa forma, o embate sobre a regularidade da documentação do veículo da requerente e a análise da manobra imprudente do requerido delineiam-se como aspectos cruciais para a correta apuração de responsabilidades no caso em análise."[1] (grifei)
No caso destacado acima, a irregularidade na documentação do veículo não deu causa ao acidente. A manobra do condutor do veículo contrária às regras basilares de trânsito foi única causadora do dano, mas, mesmo assim, a culpa concorrente foi reconhecida pelo juízo de primeiro grau.
Decisões tal como a proferida causam insegurança jurídica, contrariam a jurisprudência atual e dominante conforme comprovado a seguir:
RECURSO INOMINADO. REPARAÇÃO DE DANOS. ACIDENTE DE TRÂNSITO. MANOBRA EM MARCHA A RÉ. Sentença de improcedência dos pedidos primitivo e contraposto. Recurso da autora. Colisão entre veículos durante manobra de marcha a ré realizada pelo réu com oobjetivo de ingressar em outra via. A manobra de marcha a ré é arriscada e deve ser praticada com cautela emsituações indispensáveis, tais como ajustar a posição doveículo, a fim de estacionar ou sair da vaga. Ausência decomprovação de culpa concorrente. Circulação irregular de veículo com licenciamento vencido e ausência de CNH válida da condutora constituem meras infrações administrativas e não compensam nem afastam a responsabilidade civil decorrente da culpa exclusiva do causador do acidente. Presunção de culpa pela colisão traseira elidida pela manobra imprudente do réu. Conjunto probatório que evidencia culpa exclusiva do réu pelo acidente, em razão de manobra arriscada e imprudente. Responsabilidade do réu de ressarcimento dos danos materiais, relativos ao reparo do veículo da autora. Danos morais não configurados. Sentença reformada. Recurso parcialmente provido[2].(grifei)ACIDENTE DE TRÂNSITO - Colisão em rodovia - Motocicleta e automóvel - Falecimento da condutora da motocicleta - Ação de indenização por danos morais e materiais proposta pela filha menor da vítima contra a condutora e o proprietário do automóvel - Sentença de procedência parcial - Apelos dos réus - Culpa exclusiva da condutora do automóvel - Culpa concorrente não caracterizada - Falta de licenciamento da motocicleta que se trata de mera irregularidade administrativa - Responsabilidade solidária do proprietário do automóvel - Presunção de dependência econômica da autora em razão da incapacidade civil absoluta - Direito ao recebimento de pensão mensal - Valor da indenização por danos morais estabelecido em harmonia com o artigo 944 do Código Civil - Sentença mantida - Apelações desprovida.[3] (grifei)As irregularidades na documentação do autor, da motocicleta ou a simples alegação de ausência de acessórios obrigatórios configuram mera infração administrativa e não devem ser entendidas como causas eficientes ou concorrentes do acidente."[4] (grifei)"Acrescente-se que a alegação de atraso no licenciamento da motocicleta configura irregularidade administrativa e que não guarda nexo algum com a dinâmica do acidente"[5]. (grifei)
A infração administrativa não deve ser ignorada, deve, sim, ser apenada, mas pelo órgão de trânsito, contudo, se ela não tiver contribuído para o evento danoso, não pode atrair a culpa concorrente em desfavor da vítima.
Fato é que "a simples existência de comportamento antijurídico da vítima em determinado evento não basta para a configuração da concorrência de culpas; é imprescindível que essa conduta tenha funcionado como nexo de causalidade em relação a alguma fração do episódio lesivo".[6]
REFERÊNCIAS
[1]Sentença
Processo nº:1002330-51.2023.8.26.0323 - publicação em 05/02/2024;
[2] Recurso
Inominado nº: 1002330-51.2023.8.26.0323;
[3]Recurso
Apelação processo Nº 1000124-97.2020.8.26.0637;
[4]Recurso
Apelação processo nº: 1004932-60.2019.8.26.0127
[5] Recurso
Apelação nº 1000498-91.2017.8.26.0549 e
[6] (MATIELLO, Fabrício Zamprogna. Código civil comentado: Lei n. 10.406, de 10.01.2002. 8. ed. São Paulo: LTr, 2019, p. 491).
*LIEGE KARINA DE SOUSA RIBEIRO SANTOS
-Advogada graduada pela Universidade Salesiana de Lorena – UNISAL (2004);
- Pós-Graduação em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Salesiana de Lorena – UNISAL (2010) ;
- Pós-Graduação em Direito Previdenciário pela Universidade Salesiana de Lorena – UNISAL (2010) ;
-Sócia proprietária do escritório Sousa Santos Advocacia e Consultoria Jurídica; e
-Sócia da AS² Consultoria em Propriedade intelectual
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Nota do Editor:
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Objetivo e esclarecedor, parabéns!
ResponderExcluirObrigada!
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