Esta pergunta será certamente respondida neste estudo. A introdução da justiça penal negociada tem suscitado novas perspectivas e debates substanciais no âmbito do processo penal, o que se reflete na contínua evolução das visões doutrinárias e na construção da jurisprudência correspondente. Sobretudo em relação à mais recente modalidade de acordo negociado, o acordo de não persecução penal, têm surgido questionamentos à medida que sua aplicação se desenrola.
Por conseguinte, surge a imperiosa necessidade de fomentar discussões, como a abordada no presente trabalho, acerca da viabilidade (ou não) de interrogar o signatário de tal acordo em ações penais correlatas.
A presente pesquisa objetiva identificar a posição do firmatório do ANPP em ação penal correlatada, do mesmo modo seus respectivos direitos e deveres em tal posição. Isto por meio de levantamentos bibliográficos, jurisprudenciais e uma análise qualitativa acerca do tema escolhido.
1. JUSTIÇA PENAL NEGOCIAL: ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
A justiça Penal Negocial no Brasil não é genérica, sendo aplicada em casos específicos e a partir de critérios regulados em Lei. Nesse sentido, Vasconcellos entende a justiça penal negocial como:
modelo que se pauta pela aceitação (consenso) de ambas as partes – acusação e defesa – a um acordo de colaboração processual com o afastamento do réu de sua posição de resistência, em regra impondo encerramento antecipado, abreviação, supressão integral ou de alguma fase do processo, fundamentalmente com o objetivo de facilitar a imposição de uma sanção penal com algum percentual de redução, o que caracteriza o benefício ao imputado em razão da renúncia ao devido transcorrer do processo penal com todas as garantias a ele inerentes[1].
O Acordo de Não Persecução Penal foi inserido na legislação brasileira pela Lei 13.964/19, popularmente conhecida como pacote Lei Anticrime, que introduziu uma série de reformulações em vários diplomas legais brasileiro, essencialmente no Código Penal, no qual em seu Art. 28-A dispõe sobre o ANPP.
Em linhas gerais, o ANPP exige os seguintes requisitos para seu oferecimento: I) pena mínima inferior a 04 (quatro) anos; II) confissão formal e circunstanciada; III) crime não cometido com grave ameaça e violência; IV) necessário e suficiente para a reprovação do crime[2].
Ademais, há requisitos proibitivos do legislador: I) se for cabível transação penal; II) se o agente foi beneficiado com algum instituto da justiça penal nos últimos 05 (cinco) anos; III) ser reincidente ou conduta habitual, reiterada ou profissional; IV) agente tiver cometido o crime no contexto de violência doméstica ou familiar e ou praticados contra mulher em razão do sexo feminino[3].
A benesse do instituto do ANPP é a possibilidade, ainda na fase processual, de acordo que poderá, se cumprido todos os requisitos, extinguir a punibilidade do agente. Portanto, trata-se de simplificação da persecução penal, sem a necessidade de verificação do mérito do processo penal ou a possibilidade da utilização dos mecanismos do princípio do contraditório ou ampla defesa[4].
Nesse interim, de longe, uma das características mais discutidas e, que de certo, deve ser estudada com profundida pela defesa é o instituto da confissão no ANPP, considerando que o instituto "não acarreta a renúncia ao direito ao silencio e a obrigação de veracidade" [5]. Nesse sentido, complementa Cabral:
É importante advertir que a confissão do acordo de não persecução jamais poderá servir para acrescentar elementos idôneos a criar um juízo de certeza antes faltante. A confissão só pode servir como um reforço, uma reafirmação, enfim, uma corroboração da prova já existente.[6]
Isto é, nesse cenário negocial surgem dúvidas a partir da aplicação do instituto, entre tais dúvidas: o firmatório do ANPP pode ou não ser ouvido em ação penal correlata, considerando que quanto ao réu é assegurado o direito de ficar em silêncio e, por outro lado, a testemunha tem o dever de dizer a verdade.
2.FIRMATÓRIO DO ANPP: TESTEMUNHA OU INFORMANTE?
Em um estágio mais avançado do processo, pode ser possível que o beneficiário seja chamado em juízo para prestar esclarecimento dos fatos. O beneficiado, como testemunha do processo contra os demais agentes do fato criminoso estaria compromissado em dizer a verdade, ou seja, "comprometer-se-á a narrar a narrar, sinceramente, o que sabe sobre os fatos relevantes indagados pelo juiz"[7].
Contudo, mesmo nessa situação não é possível negar ao beneficiado o seu direito fundamental de não se autoincriminar[8]. Em contrapartida, pode ser considerado como informante, ou seja, "informa ou fornece um parecer acerca de algo, sem qualquer vínculo com a imparcialidade e com a obrigação de dizer a verdade"[9].
A vista dessa situação, o beneficiado do ANPP deverá ser considerado como testemunha ou como informante? Considerando que enquanto este não cumprir totalmente o ANPP poderá ocorrer a revogação do acordo e ser oferecida a denúncia, de modo que poderá, então, passar a ser réu na Ação Penal. É um ponto em controvérsia em jurisprudência brasileira, vejamos:
CORREIÇÃO PARCIAL. OITIVA DE TESTEMUNHA BENEFICIÁRIA DE ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. POSSIBILIDADE. Admitir que beneficiário de ANPP (não denunciado) não possa atuar como testemunha em processo judicial ou que, atuando, possua a prerrogativa da não-autoincriminação, subverte a lógica do negócio jurídico homologado judicialmente e, mais do que isto, conduz ao seu esvaziamento, quando devidamente validado pela observância dos requisitos legais e por cláusulas que contemplem sua atuação como testemunha (renúncia do direito ao silêncio). (TRF4 5044635-60.2022.4.04.0000, OITAVA TURMA, Relator MARCELO MALUCELLI, juntado aos autos em 27/01/2023) (grifou-se)
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. NULIDADE. BUSCA E APREENSÃO. QUEBRA DA CADEIA DE CUSTÓDIA. DESMEMBRAMENTO. OITIVA DE TESTEMUNHA. SUSPENSÃO. IMPOSSIBILIDADE. EXAME APROFUNDADO DE PROVAS. AGRAVO REGIMENTAL PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Esta Corte Superior, pacificou o entendimento de que inexiste ilegalidade na decisão que decreta, ou prorroga, a interceptação telefônica, desde que esteja fundamentada. 2. O deferimento do mandado de busca e apreensão, deve conter fundamentação concreta, com demonstração da existência dos requisitos necessários para a decretação, o que ocorreu no caso em apreço. 3. A despeito de um corréu não ter sido denunciado, por ter feito Acordo de Não Persecução Penal, inexiste impedimento para sua oitiva como informante, mas não como testemunha. 4. Agravo regimental parcialmente provido. (AgRg no RHC 144641/PR, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 22/11/2022 a 28/11/2023) (grifou-se)
Isto posto, embora haja julgados do STJ no sentido de que o firmatário de ANPP poderia ser ouvido na qualidade de informante, é preciso aprofundar a discussão, haja vista, inclusive, a possibilidade de que seja denunciado por descumprimento do ANPP e, consequentemente, será réu e terá o direito ao silêncio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos últimos anos discutiu-se muito sobre a Justiça Penal Negociada, mas é necessário aprofundar em questões que confrontam a prática forense e a disposição dos doutrinadores, denota-se que em alguns pontos é importante um olhar mais cauteloso, tendo em vista as dificuldades operacionais de aplicação de conceitos já firmados.
A luz do que foi apresentado, o impasse na identificação do firmatório do ANPP como testemunha ou como informante no processo penal é nítida tanto na doutrina quanto na jurisprudência.
Todavia, considerando os institutos do Direito Processual Penal, os princípios constitucionais penais e a ampla defesa, a melhor proposta é a da não inquirição como testemunha, porque ao réu é assegurado o direito constitucional ao silêncio, já a testemunha tem o compromisso legal de dizer a verdade sob pena de cometer o crime de falso testemunho.
Portanto, é necessário o aprofundamento nos estudos para que possa respeitar os princípios basilares do Direito Penal e Processo Penal e de certo buscar a melhor defesa possível ao cliente.
REFERÊNCIAS
[1] VASCONCELLOS, Vinicius G. Barganha e justiça criminal negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. 2. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018. p. 50;
[2] SOARES, Rafael Junior; BORRI, Luiz Antonio; BATTINI, Lucas Andrey. Breves considerações sobre o acordo de não persecução penal. Revista do Instinto de Ciências Penais, Belo Horizonte, v. 5, n. 1, p. 213-232, 2020. DOI:10.46274/1809-192XRICP2020:50213-231;
[3] SOARES, Rafael Junior; BORRI, Luiz Antonio; BATTINI, Lucas Andrey. Breves considerações sobre o acordo de não persecução penal. Revista do Instinto de Ciências Penais, Belo Horizonte, v. 5, n. 1, p. 213-232, 2020. DOI:10.46274/1809-192XRICP2020:50213-231;
[4] DAGUER, Beatriz. SOARES, Rafael Junior. A confissão exigida para celebração do acordo de não persecução penal, o concurso de agentes e a (im)possibilidade de incriminação de terceiros. In: Justiça Penal Negociada: teoria e prática - 1 ed. Florianópolis: Emais, 2023, p. 19;
[5] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Acordo de não persecução penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 101;
[6] CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do Acordo de Não Persecução Penal, 5 ed., São Paulo: Editora JusPodivm, 2023, p. 133;
[7] NUCCI, Guilherme de S. Manual de Processo Penal. São Paulo: Grupo GEN, 2022. E-book. ISBN 9786559643691. Acesso em: 25 abr. de 2025, p. 280.;
[8] Art. 5º, LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;e
[9] NUCCI, Guilherme de S. Manual de Processo Penal. São Paulo: Grupo GEN, 2022. E-book. ISBN 9786559643691. Acesso em: 25 abr. de 2025, p. 278.
*ISABELA LACERDA FERREIRA
-Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2024);
-Pós-graduanda em Direito Ambiental e do Agronegócio pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná ;
- Advogada atuante na área criminal e ambiental.
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