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Era
uma vez, na China, uma órfã chamada Ye Xian, que tinha como único amigo um
grande peixe dourado. Um dia, sua madrasta, má e invejosa, o assou e comeu, a
fim de que Ye Xian não tivesse em sua vida, nenhuma alegria.
Avisada
por um feiticeiro, de que os ossinhos do peixe eram mágicos e poderia realizar
pedidos, Ye Xian os guardou.
Quando
chegou o Festival da Primavera e sua madrasta a proibiu de participar, a menina
foi pedir ajuda aos ossinhos e “como num
passe de mágica, os restos mortais do peixe cobriram-na com um maravilhoso
vestido azul e um glamoroso manto de penas. Os minúsculos pezinhos de Ye Xian
receberam os sapatos mais lindos que ela já havia visto, feitos de ouro.”.
No
festival, com medo de ser descoberta – já que todas as atenções estavam
voltadas para ela –, Ye Xian saiu as pressas, deixando cair um dos sapatos, que
foi parar nas mãos de um “guerreiro
valoroso, que se encantou por seu tamanhinho e resolveu sair em busca de sua
dona.”.
O
desfecho é previsível, certo? Ao encontrá-la vestida em trapos o guerreiro ficou
surpreso, mas logo percebeu que se tratava da moça “mais bonita do condado”; e os dois se casaram.
Há
inúmeras variações dos contos de fadas, não é diferente com Cinderela, e Karin
Hueck nos apresenta vários deles de maneira minuciosa em seu livro ‘O lado
sombrio dos contos de fadas’, cujas histórias foram coletadas na Alemanha – sim,
Karin se mudou para lá para coletá-las –, e essa que você acaba de ler, é a
variação chinesa, anotada por volta de 850 d.C.
Karin
enfatiza que cada época e lugar molda a narrativa clássica à sua maneira, e foi
a história chinesa que provavelmente introduziu ao enredo, o sapatinho perdido
e a dona de pés pequenos. Só que o costume que levou à essa introdução, não era
nada bonito, pelo contrário, bastante violento; “isso se deve a um motivo cultural: no século 6°, a dinastia Tang
definiu que uma valorosa e nobre mulher chinesa teria os menores pés possíveis
e inventou a prática de amarrá-los. O negócio era violento. Por volta dos 3
anos, os dedos dos pés das menininhas eram quebrados e amarrados com faixas
apertadas para que jamais crescessem – um pé ideal não deveria ter mais de 8 centímetros
de comprimento –, o que as deixava aleijadas e impossibilitadas de se locomover
normalmente para o resto da vida. O costume sobreviveu até o século 20 e em
quase todas as versões de Cinderela também: na edição dos irmãos Grimm, as
irmãs malvadas mutilam os próprios pés – uma corta os dedos e a outra, o
calcanhar -, para o sapatinho encaixar em suas não tão delicadas extremidades.”.
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Sim,
essa tradição existiu e era conhecida como Pés de lótus; que se tornou um
padrão de beleza e sinônimo de status, na China; “mulheres de famílias
ricas, que não precisavam de seus pés para trabalhar, poderiam os manter
amarrados.”. (3)
E hoje? Onde estão as
Cinderelas?
Em
maio de 2016, a suspensão de uma recepcionista, em uma empresa de Londres, depois de
se recusar a usar saltos altos, gerou polêmica e debates.
Nicola Thorp, de 27 anos, foi contratada em
regime temporário na empresa PwC, e seus empregadores disseram que ela teria de
usar sapatos com salto de "5 a 10 centímetros" de altura. Nicola
afirma ter dito a eles que consideraria (a
exigência) justa se explicassem por que usar sapatos sem salto prejudicaria a
realização do seu trabalho, mas eles não explicaram; "eles queriam que eu fizesse um turno de nove horas de pé levando
clientes para salas de reuniões. Respondi que simplesmente não conseguiria
fazer isso de salto alto.". (4)
Em
outubro do mesmo ano, a foto dos pés de uma garçonete canadense sangrando ao lado do scarpin que ela era obrigada a
usar diariamente, viralizou nas redes. Segundo a amiga “a garçonete chegou a perder uma unha e ainda foi repreendida pelo
gerente porque estava usando outro tipo de calçado enquanto o pé sarava.”. (5)
Em 2017, após a denúncia de Nicola Thorp, “a
investigação de um grupo de parlamentares concluiu que algumas empresas
britânicas adotam um código sexista, obrigando as mulheres a usar salto alto no
trabalho – além de maquiagem específica e roupas que valorizam as formas do
corpo.”. (6)
Frequentemente
essas exigências estão atreladas à uma crença de que o uso de salto alto passa
mais segurança e elegância; e muitas vezes, apesar de extremamente
desconfortáveis, mulheres acabam optando pelo uso de saltos altíssimos, pelo
mesmo motivo.
Podemos
dizer que se tornou um padrão de beleza e sinônimo de status?
POR KARLA KRATSCHMER
Karla Kratschmer é psicóloga e atende adultos e adolescentes, em seu consultório localizado na cidade de São Paulo, no bairro Chácara Santo Antônio.
Site: psicologakarlak.com.br
Referências:
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