*Autora: Taísa Carneiro
Não rara as vezes em que se observa, até mesmo por parte da mídia, o equívoco de compreensão gerado entre o que seria conceito de crime de racismo e crime de injúria racial. Há uma incompreensão terminológica muito grande que resulta, algumas vezes, na noção de que seriam termos sinônimos.
Apesar de ambos terem raízes na intolerância e discriminação ao ser humano, sua distinção se faz necessária em razão de serem espécies de crimes distintos e possuírem consequências penais diversas aos que os praticam.
Logo de início, pode-se atentar para a distinção topográfica desses crimes, ou melhor, esses tipos penais estão previstos em pontos distintos do ordenamento jurídico brasileiro.
Enquanto o crime de injúria racial está previsto no art. 140, §3º do Código Penal, o crime de racismo encontra-se disciplinado em Lei Especial, Lei de Racismo nº 7.716/1989.
Não obstante ambos serem formas deploráveis de intransigência para com o próximo é possível afirmar que o crime de racismo é mais grave do que o crime de injúria racial, haja vista aquele caracterizar uma forma de segregação da vítima de algum modo, abarcando, por conseguinte, toda a coletividade daquela raça.
Dessa maneira, a vítima de racismo é impedida, por motivo exclusivamente racial, de exercer determinado direito, como, por exemplo, o de frequentar determinado recinto, como um elevador ou um restaurante.
Depreende-se que o ato racista é inerente de uma visão etnocêntrica, termo da antropologia que significa o processo de julgamento da cultura de outra pessoa sob a lente da sua própria cultura. Nas palavras do autor Paulo Silvino Ribeiro:[1]
"(...)trata-se de uma visão que toma a cultura do outro (alheia ao observador) como algo menor, sem valor, errado, primitivo. Ou seja, a visão etnocêntrica desconsidera a lógica de funcionamento de outra cultura, limitando-se à visão que possui como referência cultural.
(...)
Tomar conhecimento do outro sem aceitar sua lógica de pensamento e de seus hábitos acaba por gerar uma visão etnocêntrica e preconceituosa, o que pode até mesmo se desdobrar em conflitos diretos."
Assim, no crime de racismo ocorre a discriminação a alguém por meio de embaraço a exercício de direito a todos assegurados, tão somente por crença de uma suposta afirmação de superioridade de um grupo racial sobre os demais.
Em vista disso, o ordenamento jurídico imputa ao crime de racismo pena mais severa, com reclusão de 2 a 5 anos e multa, identificando-o ainda como inafiançável e imprescritível. Isso significa que, o autor deste tipo penal não poderá recorrer ao pagamento de uma fiança para ficar em liberdade, tampouco o crime prescreverá, ou seja, não obstante a mora do Estado em agir, este poderá promover a ação a qualquer tempo.
Muito embora o crime de racismo seja disciplinado como de maior gravidade (em contraste com o de injúria racial, que prevê, unicamente, pena de reclusão de 1 a 3 anos e multa) a maior parcela dos crimes de preconceito se enquadra no tipo penal de injúria racial, conforme demonstra estudo[2] elaborado pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios com estatísticas dos crimes raciais, no qual concluiu que, só no Distrito Federal, entre os anos de 2010 e 2016, o número de denúncias subiu 1.190%, chegando a 129. "Destas, sete foram de racismo e as outras 122 de injúria racial".
O crime de injúria racial nada mais é do que uma forma qualificada do crime de injúria simples, espécie prevista no art.140 do Código Penal, in verbis:
"Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.(grifos nossos)"
O art.140 do CP prossegue e estabelece que, quando a injúria estiver revertida de certos elementos, como raça, cor (...), estará caracterizado o tipo qualificado de injúria, ou seja: a injuria racial. Nesta, a discriminação ocorre pelo discurso, ocorrendo uma lesão à honra da pessoa com palavras depreciativas referentes a cor, etnia, religião, idade, deficiência ou origem. Em contraposição ao crime de racismo (que abarca a coletividade), a injúria racial é uma ofensa direta à pessoa, in verbis:
"§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)
Pena - reclusão de um a três anos e multa.
(grifos nossos)
Não obstante a notável alteração das consequências penais entre o tipo simples e o qualificado de injúria, em ambas ocorrem a viabilidade de pagamento de fiança e possibilidade de prescrição.
Para melhor esclarecer, é possível ilustrar um caso de injúria racial com um episódio d bastante discutido na mídia brasileira, haja vista a prática do crime ter sido televisionada durante uma partida de futebol entre Grêmio x Santos. Na ocasião, câmeras de um canal de TV flagraram o momento em que uma torcedora gremista vociferava a palavra "macaco" para se referir ao goleiro Aranha, do Santos.
O lamentável episódio foi um exemplo claro de injúria racial, pois a agressora busca ofender a vítima valendo-se de elementos referentes à raça, cor, tendo como alvo, um único indivíduo: o goleiro Aranha.
Muito embora, tanto o crime de racismo quanto a injúria racial possuam o elemento intrínseco discriminatório, vale a pena ressaltar que esses tipos penais não vitimizam somente pessoas negras. Apesar de, lamentavelmente, a questão cor da pele ser ainda muito presente na sociedade brasileira, o país padece de instrução e cultura como um todo, o que resulta numa sociedade atrasada e retrógrada em vários aspectos. Desse modo, há crime de racismo e injúria racial nas mais variadas condições humanas.
Um exemplo disso foi o julgamento pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL do Habeas Corpus nº 82.424 impetrado por Siegfried Ellwanger Castan, autor e editor brasileiro condenado por racismo contra judeus por escrever e publicar obras de conteúdo antissemitista. Extratos do julgamento, in verbis:
"HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA.
1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90)constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (, artigo 5º XLII)
(...)
3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pelos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais.
4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista.
(...)
12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as consequências gravosas que o acompanham. "
Do mesmo modo, há uma multiplicidade de pessoas que podem ser vítimas do tipo injúria, a chamada “injúria etária” que seria a espécie de injúria designada à pessoa idosa, injúria em razão de deficiência, dentre outros.
O ano de 2019 marca o 30º ano da Lei de Racismo no Brasil. Mas, apesar de alguns avanços, a sociedade ainda está longe de ter algo a comemorar. O que se anseia mesmo é pelo dia em que dispositivos legais como esses possam, na realidade, ser esquecidos, pois não mais necessários. Mas, enquanto não se alcança essa posição, a intimidação, inclusive, pela maior das leis se faz primordial:
Constituição Federal/1988:
Art.3º, inciso XLI:
"Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".
(...)
Art.5º, inciso XLI:
"a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais".
REFERÊNCIAS
[1]RIBEIRO, Paulo Silvino. "Etnocentrismo"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com. br/sociologia/etnocentrismo. htm. Acesso em 27 de julho de 2019; e
- Advogada atuante nas áreas dos Direitos Administrativo e Constitucional;
- Possui Especialização em Compliance(FGV- SP).
Nota do Editor:
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