Autor: Batuira Meneghesso Lino(*)
EXTRATO
E é aí que reside a grande questão: como separar o homem (sujeito a paixões e emoções) do Juiz (representante do Estado ministrador da Justiça), que tem o dever da agir com total e absoluta imparcialidade, sob pena de se transformar num mero justiceiro, escudando-se no poder que lhe confere a sociedade?
Um artigo do código de processo civil obriga as partes e seus defensores a se comportarem com "lealdade". Do juiz, a lei não fala; mas a obrigação de lealdade está implícita em sua função, especialmente na fase em que ele se põe a redigir a fundamentação da sua sentença.
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Mas a deslealdade começaria quando a escolha dos fundamentos lhe fosse sugerida não pelo interesse geral da justiça, mas pelo interesse pessoal da sua carreira.... (Calamandrei, Piero – Eles, os Juízes, Vistos por um Advogado – Martins Fontes -1997)
Na última cena do filme Julgamento de Nuremberg[1], que retrata o julgamento de alguns magistrados do III Reich por crimes de guerra, o Réu Ernst Janning (Burt Lancaster) - ex-ministro da Justiça Alemão (1935) e depois magistrado da Suprema Corte, professor de Direito e jurista de respeitabilidade internacional - que desde o princípio do processo rebela-se contra a legitimidade daquele Tribunal[2], é condenado à pena de prisão perpétua.
Pede, então, a seu advogado, que procure o juiz Dan Haywood (Spencer Tracy), magistrado aposentado do Estado do Maine (!), EUA, nomeado para presidir o julgamento e por quem fora condenado, porque gostaria de trocar algumas palavras. É atendido. Em resumo, o condenado fala das dificuldades do exercício da magistratura, das pressões que sofrem os juízes e cumprimenta seu julgador por entender, afinal, que a sentença que recebeu foi justa.
Mas, justificando-se em tom de arrependimento e quase súplica, pede ao magistrado que o condenara que acreditasse que ele nunca tinha imaginado que o massacre de perseguidos pelo regime atingiria milhões de pessoas, ao que o Juiz retruca: Herr Janning, as coisas chegaram aí na primeira vez que o senhor condenou alguém que sabia inocente.
Juízes são seres humanos e, como tal, têm opiniões próprias sobre política, ideologia, religião e tudo o mais, são sujeitos a paixões, além de serem, em maior ou menor grau, sujeitos a pressões de toda ordem, de familiares a políticas.
E é aí que reside a grande questão: como separar o homem (sujeito a paixões e emoções) do Juiz (representante do Estado ministrador da Justiça), que tem o dever da agir com total e absoluta imparcialidade, sob pena de se transformar num mero justiceiro, escudando-se no poder que lhe confere a sociedade?
Por outro lado parece certo, embora paradoxal, que a aplicação da Lei também não prescinde de uma certa dose de humanidade, capaz de com muita parcimônia sopesar circunstâncias e detalhes de cada caso em julgamento, sem o que a aplicação da justiça poderia ser feita por máquinas, mormente nessa época de avanço tecnológico e inteligência artificial.
Fosse um computador no lugar do Doge de Veneza a julgar Shylock x Antonio, em o "Mercador de Veneza", certamente não teria se deixado levar pela interpretação do contrato, feita à undécima hora por Pórcia (disfarçada de "Doutor em Direito"), no sentido de que Shylock poderia cobrar seu crédito cortando uma libra da carne de Antonio, desde que o fizesse sem derramar uma gota de sangue, porque o contrato só falava em carne e não em sangue. Obviamente uma condição impossível, porque intrínseca a presença de sangue na carne. E é aí que a temperança e a parcimônia são atributos humanos saudáveis na aplicação da justiça, desde que não extrapolem para o terreno da paixão.
No caso, as circunstâncias – e não a letra fria da lei - levam o Duque de Veneza a aceitar a interpretação do contrato sustentada por Pórcia, porque Shylock se recusara a receber seu crédito por outras maneiras mais satisfatórias. Queria vingança, não justiça!
Da Lei de Talião, passando pela lei de Lynch, foi-se construindo todo um arcabouço legal ao longo dos séculos, para coibir a vingança pura e simples, travestida de justiça, não como resposta ao ilícito, mas como puro exercício de arbítrio.
Praticamente em todos os sistemas legais existem regras jurídicas que balizam os poderes e atividades dos juízes para que nessa difícil tarefa de julgar, não se deixem eles desviar por paixões, opiniões ou interesses pessoais que inevitavelmente conduzem ao arbítrio e, no mínimo, à duvidosa aplicação da justiça.
O juiz, por mais bem-intencionado que seja, mas que se desvia da lei no ato de julgar, é tão infrator quanto qualquer cidadão que pratique um ilícito, civil ou penal. O magistrado que se inclina pela defesa ou pela acusação, não pelo que está no processo, mas em razão de suas crenças políticas, ideológicas, religiosas, ou por pressão de qualquer ordem, não tem condições de exercer a magistratura.
Causa um mal à sociedade, ao processo, ao sistema legal, a si mesmo.
Pode causar o "efeito borboleta" consagrado na Teoria do Caos, que popularmente explicado afirma que o bater das asas uma borboleta no Japão é capaz, teoricamente, de transformar-se em um tufão do outro lado do mundo. Ou seja, como observou o magistrado do Maine: "Herr Janning, as coisas chegaram aí na primeira vez que o senhor condenou alguém que sabia inocente".
REFERÊNCIAS
[1] Judgment at Nuremberg (O Julgamento de Nuremberg) 1961 direção Stanley Kramer, roteiro de Abby Mann. Baseado em fatos reais, principalmente no caso Katzenberger, o último julgamento dos Processos de Guerra de Nuremberg que ocorreram depois da Segunda Guerra Mundial para julgar os criminosos nazistas. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Judgment_at_Nuremberg)
[2] A propósito, o grande Nelson Hungria sustentava a tese de que o Tribunal de Nuremberg fora um tribunal de exceção e, portanto, sem legitimidade “Comentários ao Código Penal” – Ed. Forense, 1953
*BATUIRA ROGÉRIO MENEGHESSO LINO
-Advogado em São Paulo;
-Graduado em 1972 pela USP;
-Atuando na área de consultivo e contencioso cível;
-É sócio do escritório Lino, Beraldi e Belluzzo Advogados.
E-mail: lino@lbba.com.br
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