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quarta-feira, 17 de julho de 2019

O Dever do Estado em Fornecer Medicamento Não registrado pela ANVISA: Breves Reflexões


Autora: Stella Cerny(*)



"Quem comete uma injustiça é sempre mais infeliz que o injustiçado" (Platão)


Há cerca de dois meses vimos uma calorosa discussão sobre o tema envolvendo a obrigatoriedade do Estado em fornecer medicamento não registrado. Tal discussão vem sendo enfrentada há anos por nossos Tribunais de Justiça, espalhados por toda a federação, sendo que muitas associações de pessoas portadoras de moléstias raras e ultrarraras, ajuizaram ações no intuito de buscar uma opção frente a um tratamento médico ineficaz, e com a possibilidade de uma alternativa médica e farmacológica nova, terem a chance de buscar um novo tratamento e co isso uma maior sobrevida. 

É certo que a Medicina evolui a passos largos, sendo que a cada dia, um novo tratamento médico, novos medicamentos, são pesquisados e lançados no mercado mundial. 

Porém, devemos analisar alguns pontos de extrema relevância antes de lançar uma conclusão sobre a justiça ou injustiça da decisão do STF. 

Inicialmente devemos ter em mente que nossa Constituição Federal, estabeleceu no artigo 196 que "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Não iremos adentrar ao mérito da obrigatoriedade, em analogia, aos planos de saúde, porque aqui se discutiu a obrigação do Estado em fornecer os meios para a manutenção da vida e saúde da população, que é atendida via SUS. Porque se traçarmos o mesmo paralelo aos planos de saúde, a mesma tese poderia ser usada para esses, vez que os segurados pagam para ter acesso à saúde, e com isso garantirem o maior bem de todos, a vida. 

A tese de repercussão geral fixada pelo STF foi a seguinte: 
"Decisão: O Tribunal, apreciando o tema 500 da repercussão geral, deu parcial provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do Ministro Roberto Barroso, Redator para o acórdão, vencidos os Ministros Marco Aurélio (Relator) e Dias Toffoli (Presidente). Em seguida, por maioria, fixou-se a seguinte tese: “1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);(ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União”, vencido o Ministro Marco Aurélio. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Plenário, 22.05.2019." 
Bem, então vejamos alguns pontos que merecem ser bem elucidados para que não pairem dúvidas acerca do entendimento, quiçá da obrigatoriedade dos Estados em cumprirem o mandamento constitucional, finalmente.

Ressalto que aqui somente tratarei das questões afetas às doenças raras e ultrarraras, para não se tornar demasiadamente extenso este artigo. 

Para começar, vamos um pouco mais a fundo na questão. Primeiramente precisamos buscar no Código de Ética Médica (Resolução CFM n. 2.217 de 27 de setembro de 2018, modificado pelas Resoluções CFM n. 2.222/2018 e 2.226/2019), algumas regras que norteiam os médicos em suas abnegadas vidas cotidianas. 

No Capítulo I – dos Princípios Fundamentais, estão dispostos os seguintes itens, os quais ressalto: 

Item II – "O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional."; 

Item XVI - Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para estabelecer o diagnóstico e executar o tratamento, salvo quando em benefício do paciente; 

Item XXI - No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas;

Feitas essas primeiras observações, é de conhecimento notório que o trabalho médico é desenvolvido em cima de pesquisas científicas comprovadas, documentadas e aprovadas pelos órgãos farmacêuticos e pelos órgãos científicos, que acompanham e orientam todo o procedimento para liberação e registro de medicamentos.

Por outro lado temos a ANVISA. Mas por que temos um órgão – ANVISA – que trata de medicamentos, dentre outras matérias afetas a ela? A criação da Anvisa, se deu através da Lei 9.782/99, vinculada diretamente ao Ministério da Saúde, trouxe alguns mecanismos de controle da área sanitária e diversos outros produtos e serviços, tal como os medicamentos, cosméticos, etc. 

Dentre tantas atribuições temos que a liberação da comercialização de medicamentos está entre uma das mais importantes para a população. Observe-se que existe um protocolo rígido a ser mantido, tanto para o registro como para a comercialização dos medicamentos. Esses passos devem ser seguidos à risca, os quais, mencionaremos, sem detalhar exaustivamente, para que esse artigo seja de fácil entendimento. Segundo a ANVISA, as etapas necessárias para fazer o pedido de registro de medicamento, deverá ser: cadastramento, porte da empresa, peticionamento, taxas, protocolo e acompanhamento. 

Para anuência de ensaios clínicos para essas doenças, segundo informação da ANVISA, quais sejam: 

1º PASSOREUNIÃO DE PRÉ-SUBMISSÃO

Deve ser solicitada reunião de pré-submissão para apresentação da proposta de ensaio clínico (ou modificação). A reunião deve ocorrer até 60 dias após o pedido da empresa;

2º PASSO – SUBMISSÃO DA DOCUMENTAÇÃO PARA AVALIAÇÃO DA ANVISA 

Após a reunião, a solicitante deve formalizar a submissão de DDCM, Dossiê Específico de Ensaio Clínico ou Modificação Substancial por Inclusão de Protocolo, para avaliação da Anvisa. Em até 30 dias após a submissão, a Anvisa deve se manifestar, com emissão de exigência ou conclusão. O cumprimento das exigências pelo interessado deve ocorrer até 30 dias após leitura da notificação. E a avaliação do cumprimento deve ser realizada pela Anvisa até 30 dias após o protocolo. 

Ainda segundo a ANVISA, os ensaios clínicos com medicamentos para doenças raras a serem realizados no Brasil deve ser realizada conforme RDC nº 9/2015, acrescida de documentação específica disposta na RDC nº 205/2017. (www.portal.anvisa.gov.br). 

Mas o que seria a RDC 205/2017? Explica a ANVISA. A RDC 205/2017 estabeleceu mecanismos para encurtar os prazos de análise. Antes dela, não existia nenhuma regulamentação específica para anuência de ensaios clínicos, certificação de boas práticas, fabricação e registro de novos medicamentos para doenças raras. Alguns requisitos foram flexibilizados, sem, no entanto, comprometer a qualidade, a segurança e a eficácia dos medicamentos. 

Passou a ser admitida ainda a assinatura de termo de compromisso entre a ANVISA e a empresa solicitante do registro. Também seria permitida, para medicamentos importados, a supressão da realização de controle de qualidade no Brasil, desde que seja realizado pelo fabricante do medicamento e que seja apresentada comprovação da manutenção de condições adequadas durante o transporte do medicamento. 

Segundo a ANVISA, a RDC nº 204/2017, que trata de enquadramento de petições na categoria prioritária, prevê a priorização de análise de solicitações de alteração pós-registro (como nova indicação terapêutica ou ampliação de uso) de medicamentos destinados a doenças raras nas situações em que não houver alternativa terapêutica disponível ou quando apresentar uma melhora significativa de segurança ou eficácia. 

Sanadas essas duas questões, quais sejam: o que o médico poderia fazer sem que esbarrasse no Código de Ética Médica e quais seriam as etapas a serem seguidas segundo os ditames da Anvisa. Percebemos, portanto, que o enfrentamento de todas essas questões foi feita no julgamento do RE 657718. 

Diante de tal decisão, o que devemos efetivamente ponderar sobre o julgamento? 

1. O primeiro ponto interessante é a questão de remédios experimentais. Pesquisando sobre o tema, localizei algumas decisões bem interessantes pontuadas no CRM/SP, dentre as quais trago importantes ponderações à tona vejamos: 

Assunto: Autorização para executar procedimentos médicos experimentais ou de tratamentos não reconhecidos pelo Ministério da Saúde/ANVISA e Conselho Regional de Medicina. Ementa: Do ponto de vista ético e moral, mesmo que um paciente exija um tratamento experimental, sem base científica, o médico não deve realizá-lo (...)Conforme exaustivamente repetido, não se pode "tratar" pessoas de forma experimental sem projeto sistematizado e devidamente aprovado; Os tratamentos e procedimentos precisam estar registrados na ANVISA e reconhecidos pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) como práticas válidas no país. Do ponto de vista ético e moral, mesmo que um paciente exija um tratamento experimental, sem base científica, o médico não deve realizá-lo antes sim, orientar, demonstrar e auxiliá-lo a concluir pela impropriedade de determinadas atitudes, obviamente, sem jamais se opor a ritos religiosos, desde que não signifiquem riscos para a integridade física do paciente e da comunidade. (www.cremesp.org.br
Ou seja, tratamento experimental não amparado por protocolos de pesquisas, sem acompanhamento de conselhos médicos e de bioética, não poderiam ser liberados de forma indiscriminada. Aliás, o próprio protocolo de pesquisas em humanos requer uma infinidade de procedimentos e regras, informações, anos de pesquisa, dentre tantos requisitos; 

2. O segundo ponto curial deste julgamento é a ausência de registro junto à ANVISA. Ora, como esclarecemos acima, o registro é um mecanismo, quiçá um freio que impõe regras, estudos, comprovação científica de eficácia do fármaco, estudos clínicos em cobaias, em humanos e só então, finalmente temos a liberação do medicamento junto à Anvisa. Portanto, aqui se impõe uma ressalva, posto que se o medicamento não tem esse requisito, não pode ser prescrito, vez que no Brasil não foi reconhecida a eficácia do mesmo;

3. A questão da mora da ANVISA em analisar o pedido de registro, é um grande entrave para quem busca a vida, no sentido amplo do termo. Para os casos das doenças raras e ultrarraras, a ANVISA editou a RDC 204/2017 que conforme acima mencionado, encurtou os prazos para análise de registro de medicamentos. Ou seja, mesmo que a RDC 204/2017 não seja respeitada, foi fixado o entendimento jurisprudencial sobre o tema, desde que preenchidos os requisitos dos subitens i, ii e iii acima transcritos;

4. E por derradeiro, foi fixado também que as ações que requeiram o fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA devem ser propostas obrigatoriamente contra a União, por uma questão de competência absoluta, vez que o órgão regulador – ANVISA – faz parte de uma autarquia especial adstrita ao Ministério da Saúde. 

Portanto, o que podemos concluir é que apesar do Tema 500 do STF ter sido analisado com tantos anos de defasagem, a matéria está em perfeita consonância com os princípios que norteiam a ética médica e os regramentos adotados para protocolos nacionais e internacionais de registro de medicamentos. E mesmo que o paciente esteja sem qualquer esperança em seu tratamento, o judiciário não poderia impor uma obrigação ao Estado, sem qualquer prova plena de eficácia do tratamento médico buscado. Lembramos ainda a questão da fosfoetalonamina que a cerca de um ano também esteve presente nos noticiários como um "medicamento" que era plenamente eficaz no tratamento de alguns tipos de câncer. Mas o que restou provado foi que não haveria nenhum pedido de registro efetuado junto à ANVISA, quiçá, estudos comprovando a eficácia do medicamento.

*STELLA SYDOW CERNY


Advogada graduada pela FMU(1997);
Especialização em Direito Imobiliário;
Pós-graduanda em Direito Previdenciário;e

Atuando na Cerny Advocacia nas áreas de planos de saúde, cível, consumidor e previdenciário.
Nota do Editor:


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