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quinta-feira, 9 de abril de 2020

(Im)possibilidade Jurídica do Adiamento da Eleição de 2020


Autor: Caio Vitor Barbosa(*)


Tão logo a Organização Mundial da Saúde reconheceu a situação de pandemia no mundo da doença causada pelo corona vírus (COVID-19) e os Estados e Poderes da República, especialmente o Judiciário e o Congresso, passaram a adotar no país políticas de isolamento social para evitar ou retardar a propagação da enfermidade no Brasil, começou-se a discutir quais seriam seus efeitos no calendário das eleições municipais de 2020. Gravei um vídeo falando sobre esse assunto em 17 de março[1], no qual expus o entendimento de que seria improvável o adiamento do pleito, pelos aspectos jurídicos da questão e também pelo que os cientistas estavam divulgando sobre a evolução da doença.

Porém, passados cerca de um mês dessa manifestação, emendas à Constituição foram apresentadas, uma eleição aprazada para ocorrer nesse período foi adiada, uma Ação Declaratória de Inconstitucionalidade foi ajuizada no STF e a presidente atual do TSE, Ministra Rosa Weber[2], assim como o futuro, Ministro Roberto Barroso, emitiram declarações sobre o assunto. Todo esse cenário, exige o aprofundamento das reflexões para se avaliar a possibilidade ou impossibilidade de adiamento da eleição de 2020.

Também no dia 17 de março, o TSE decidiu pelo adiamento da eleição suplementar para o cargo de senador do Estado do Mato Grosso, a qual estava marcada para ocorrer em 26 de março[3]. Esse fato gerou um alvoroço: se o TSE adiou esse pleito por que não faria o mesmo em relação à eleição de outubro de 2020? 

POR QUE É UM PROBLEMA JURÍDICO O ADIAMENTO DAS ELEIÇÕES?

No Brasil, o último adiamento das eleições ocorreu antes da redemocratização, em 1980, por uma imposição do regime militar[4]. Nos Estados Unidos, onde as eleições estão aprazadas para 3 de novembro, os analistas políticos classificam como improvável o adiamento do pleito[5]. Nem mesmo com a pandemia da gripe espanhola em 1918 ou na guerra civil de 1860, os americanos deixaram de realizar eleições[6]


E isso tem um motivo, um valor importante que justifica a estrita a observância dessas datas, com rigor, qual seja, o da estabilidade do processo eleitoral e consequentemente da democracia. Segundo Roberta Maia Gresta[7]


"o voto periódico não é uma formalidade ritual. É um compromisso com a normalidade eleitoral democrática, assumido em três direções: para os eleitos, resguarda o mandato contra reduções indevidas; para os não eleitos, assegura a renovação da oportunidade de concorrerem; para o eleitorado, reafirma que a legitimidade dos mandatos somente subsiste nos termos estritos, inclusive temporais, da decisão eleitoral."

            
Nesse sentido também tem sido as manifestações do presidente da Câmara Federal Rodrigo Maia, tão logo o ministro da saúde sugeriu para a pauta de discussão do Congresso o adiamento da eleição municipal[8].

JURIDICAMENTE, É POSSÍVEL O ADIAMENTO DAS ELEIÇÕES?
          

A data da realização das eleições municipais está prevista no art. 29, II, da Constituição Federal:

"Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:
(...)
II - eleição do Prefeito e do Vice-Prefeito realizada no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos que devam suceder, aplicadas as regras do art. 77, no caso de Municípios com mais de duzentos mil eleitores;   
(...)"

       
Por isso, diferentemente do que ocorreu com a eleição suplementar que estava aprazada no estado do Mato Grosso, o adiamento do pleito municipal desse ano não dependeria exclusivamente de decisão do TSE. Nas eleições suplementares – que são aquelas marcadas quando acontece a anulação de uma votação regular, ordinária, a data do pleito é definida pela própria Justiça Eleitoral – nas eleições municipais e gerais, não. Como visto, tais datas (primeiro domingo de outubro) são definidas pela própria Constituição.
          
Além disso, prescreve o art. 16 da Constituição Federal:

"Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência."

        
Tal dispositivo constitucional positiva os princípios da estabilidade do processo eleitoral e da democracia, da segurança jurídica, da igualdade, da anterioridade eleitoral. Ele foi colocado a prova na eleição de 2010, quando se pretendeu aplicar a Lei da Ficha Limpa naquele ano, sendo que tal ato normativo tinha sido sancionado a menos de um ano da data da respectiva votação. O STF afastou essa pretensão e garantiu a autoridade do art. 16 da Constituição, por meio de decisão que contou com a seguinte ementa:

LEI COMPLEMENTAR 135/2010, DENOMINADA LEI DA FICHA LIMPA. INAPLICABILIDADE ÀS ELEIÇÕES GERAIS 2010. PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL (ART. 16 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA). I. O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL COMO GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL ELEITORAL. O pleno exercício de direitos políticos por seus titulares (eleitores, candidatos e partidos) é assegurado pela Constituição por meio de um sistema de normas que conformam o que se poderia denominar de devido processo legal eleitoral. Na medida em que estabelecem as garantias fundamentais para a efetividade dos direitos políticos, essas regras também compõem o rol das normas denominadas cláusulas pétreas e, por isso, estão imunes a qualquer reforma que vise a aboli-las. O art. 16 da Constituição, ao submeter a alteração legal do processo eleitoral à regra da anualidade, constitui uma garantia fundamental para o pleno exercício de direitos políticos. Precedente: ADI 3.685, Rel. Min. Ellen Gracie, julg. em 22.3.2006. A LC 135/2010 interferiu numa fase específica do processo eleitoral, qualificada na jurisprudência como a fase pré-eleitoral, que se inicia com a escolha e a apresentação das candidaturas pelos partidos políticos e vai até o registro das candidaturas na Justiça Eleitoral. Essa fase não pode ser delimitada temporalmente entre os dias 10 e 30 de junho, no qual ocorrem as convenções partidárias, pois o processo político de escolha de candidaturas é muito mais complexo e tem início com a própria filiação partidária do candidato, em outubro do ano anterior. A fase pré-eleitoral de que trata a jurisprudência desta Corte não coincide com as datas de realização das convenções partidárias. Ela começa muito antes, com a própria filiação partidária e a fixação de domicílio eleitoral dos candidatos, assim como o registro dos partidos no Tribunal Superior Eleitoral. A competição eleitoral se inicia exatamente um ano antes da data das eleições e, nesse interregno, o art. 16 da Constituição exige que qualquer modificação nas regras do jogo não terá eficácia imediata para o pleito em curso. II. O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE DE CHANCES. Toda limitação legal ao direito de sufrágio passivo, isto é, qualquer restrição legal à elegibilidade do cidadão constitui uma limitação da igualdade de oportunidades na competição eleitoral. Não há como conceber causa de inelegibilidade que não restrinja a liberdade de acesso aos cargos públicos, por parte dos candidatos, assim como a liberdade para escolher e apresentar candidaturas por parte dos partidos políticos. E um dos fundamentos teleológicos do art. 16 da Constituição é impedir alterações no sistema eleitoral que venham a atingir a igualdade de participação no prélio eleitoral. III. O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL DAS MINORIAS E O PAPEL DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NA DEMOCRACIA. O princípio da anterioridade eleitoral constitui uma garantia fundamental também destinada a assegurar o próprio exercício do direito de minoria parlamentar em situações nas quais, por razões de conveniência da maioria, o Poder Legislativo pretenda modificar, a qualquer tempo, as regras e critérios que regerão o processo eleitoral. A aplicação do princípio da anterioridade não depende de considerações sobre a moralidade da legislação. O art. 16 é uma barreira objetiva contra abusos e desvios da maioria, e dessa forma deve ser aplicado por esta Corte. A proteção das minorias parlamentares exige reflexão acerca do papel da Jurisdição Constitucional nessa tarefa. A Jurisdição Constitucional cumpre a sua função quando aplica rigorosamente, sem subterfúgios calcados em considerações subjetivas de moralidade, o princípio da anterioridade eleitoral previsto no art. 16 da Constituição, pois essa norma constitui uma garantia da minoria, portanto, uma barreira contra a atuação sempre ameaçadora da maioria. IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. Recurso extraordinário conhecido para: a) reconhecer a repercussão geral da questão constitucional atinente à aplicabilidade da LC 135/2010 às eleições de 2010, em face do princípio da anterioridade eleitoral (art. 16 da Constituição), de modo a permitir aos Tribunais e Turmas Recursais do país a adoção dos procedimentos relacionados ao exercício de retratação ou declaração de inadmissibilidade dos recursos repetitivos, sempre que as decisões recorridas contrariarem ou se pautarem pela orientação ora firmada. b) dar provimento ao recurso, fixando a não aplicabilidade da Lei Complementar n° 135/2010 às eleições gerais de 2010.[9] (Grifos acrescidos).

            
O adiamento das eleições terá que enfrentar esses dois óbices constitucionais. Primeiro, depende de emenda constitucional, ou seja, aprovação de pelo menos três quintos de cada casa legislativa (308 deputados dos 513 e 49 senadores dos 81), após dois turnos de votação. Segundo, depende de afastamento, da superação da regra constitucional do art. 16.

           
Nesse contexto, Walber de Moura Agra[10] concluiu que

"as eleições apenas podem ser adiadas se houver, além da incidência de um suporte fático excepcionalíssimo que se amolde à tipificação de caso fortuito ou força maior; o respeito indeclinável à segurança jurídica, especificamente ao princípio da anualidade eleitoral, que impede o vilipêndio ao princípio da paridade de armas e a ocorrência de casuísmos e indefinições ensejadoras de ilícitos eleitorais. Respeitadas essas premissas, as eleições, caso realmente sejam adiadas, seriam pelo menor tempo possível para esperar que a normalidade volte a imperar no Brasil.
No entanto, ainda assim se exigiria uma Emenda à Constituição, especificamente no ADCT. A melhor solução configura-se na densificação da força normativa da Constituição, partindo-se do seu texto para buscar soluções para a saída de situações calamitosas, pois modificações nas regras do processo democrático que destoem da normalidade previsível apenas são adequadas se forem singularíssimas, sob pena de perda de legitimidade do regime democrático, que hodiernamente já sofre tanta contestação em razão do aumento exponencial das desigualdades sociais."

       
Compartilhamos desse entendimento. Somente diante de uma situação de efetivo agravamento do contexto de saúde pública da crise se justificaria o adiamento das eleições. Mesmo a prorrogação para o mês de dezembro exige esse contexto, pois é preciso lembrar que o processo eleitoral não se encerra com a votação. Após essa, que pode exigir segundo turno, é necessário que a Justiça Eleitoral analise as prestações de contas dos candidatos, verifique o mínimo de legitimidade do pleito, para só então diplomar os eleitos, para que o Poder Legislativo os dê posse.

REFERÊNCIAS



[1] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2StX_I5BPag. Acessado em 8 de abril de 2020.
[6] Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52029791. Acessado em 8 de abril de 2020.
[9] RE 633703 / MG - MINAS GERAIS, RECURSO EXTRAORDINÁRIO, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Julgamento:  23/03/2011, Órgão Julgador:  Tribunal Pleno, Publicação REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-219 DIVULG 17-11-2011 PUBLIC 18-11-2011,  RTJ VOL-00221-01 PP-00462, EMENT VOL-02628-01 PP-00065.

CAIO VITOR BARBOSA













-Graduado em Direito pela UFRN em 2008;
-Advogado, foi Chefe da Assessoria Jurídica, Pregoeiro e Presidente da CPL da Secretaria de Mobilidade Urbana de Natal - RN entre 2009 e 2010;
-Fundou, em 2015, e é sócio administrador do Queiroz, Barbosa e Bezerra Advocacia;
-Exerceu a função de Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/RN, de 2016 a 2018;
-Procurador Geral do Município de Maxaranguape/RN desde 2017; e
-Professor do Advogue nas Eleições.

Nota do Editor:

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