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quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Multiparentalidade


Autora: Josane L.de Albuquerque(*)


Diante da diversidade dos novos arranjos familiares, as relações entre seus membros sofreram profundas mudanças, adquirindo novos contornos, considerando que é o afeto, e não o patrimônio, o elemento formador das famílias, nos dias de hoje. 

Nesse contexto, os laços de parentesco passaram a se formar, não só pela consanguinidade, mas também pelo afeto, solidariedade e respeito, gerando uma nova modalidade de parentesco - o socioafetivo. 

Para conceituar tal modalidade, trazemos a definição de Christiano Cassettari[1] para o qual "a parentalidade socioafetiva pode ser definida como o vínculo de parentesco civil entre pessoas que não possuem entre si um vínculo biológico, mas que vivem como se parentes fossem, em decorrência do forte vínculo afetivo existente entre elas."

Como o direito não pode ficar alheio às transformações sociais, ignorando as relações familiares já estabelecidas, passou a adequar-se à realidade fática, reconhecendo o valor jurídico do afeto. 

Assim, considerando que a CF/88 não só ampliou o conceito de família, art. 226, mas também proibiu a discriminação quanto à origem da filiação, § 6º do art. 227[2] e que o Código Civil, em seu art.1593[3], admite o parentesco advindo de outra origem, além do biológico, abriu-se caminho para incorporar a socioafetividade como instituto jurídico a ser aplicado às relações familiares. 

À luz desse entendimento, a jurisprudência passou a analisar a realidade fática das demandas envolvendo o conceito de filiação, independentemente de o vínculo ser biológico ou socioafetivo, visando assegurar o melhor interesse das crianças e adolescentes. 

Dessa forma, através da realidade trazida pela jurisprudência, o direito de família passou a considerar o vínculo socioafetivo, tal qual os demais vínculos de filiação, como passível de determinar a maternidade e/ou paternidade. 

Dentro dessa nova realidade, o afeto se constitui no vínculo de união entre os membros das famílias reconstituídas, na qual madrastas, padrastos e enteados, mesmo sem vínculo biológico, possuem fortes laços familiares. 

O reconhecimento judicial ou extrajudicial da paternidade ou maternidade socioafetiva, até agora, gerava a desconstituição do poder familiar do pai ou da mãe biológicos. 

Porém, considerando as peculiaridades do direito de família, no qual cada caso deve ser analisado dentro de sua própria realidade, temos que admitir que, em algumas situações, deve haver a possibilidade de coexistência do vínculo biológico e do afetivo, sem que um exclua o outro, ou seja, a possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade. 

Diante do reconhecimento da multiparentalidade, o direito passa a contemplar a realidade de algumas famílias, assegurando proteção jurídica às complexas relações familiares, reformulando o tratamento jurídico parental à luz do princípio da dignidade humana. 

Assim, a multiparentalidade se traduz na possibilidade de alguém possuir mais de um pai ou de uma mãe em seu registro de nascimento, traduzindo, dessa forma, o contexto familiar em que tal pessoa está inserida. 

Nessa linha de entendimento, o Supremo Tribunal Federal (STF), em 21/09/2016, com repercussão geral, tema n. 622, no julgamento do RE 898060/SC, reconheceu que "a paternidade socioafetiva declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica," com consequências patrimoniais e extrapatrimoniais. 

Segundo Maria Berenice Dias e Marta Cauduro Oppermann as "Famílias multiparentais sempre existiram e continuarão a existir. A diferença é que até recentemente eram condenadas à invisibilidade, resultando desta perversa tentativa, de não ver o que foge do modelo do espelho, a exclusão de direitos. "[4]

Diante do posicionamento do STF, reconhecendo a multiparentalidade, a jurisprudência passou a trazer para o mundo jurídico a realidade fática, concedendo-lhe efeitos legais, legitimando os direitos dela advindos, como os sucessórios, de alimentos, de convivência, de guarda e previdenciários, de modo a promover a mais ampla tutela dos sujeitos envolvidos. 

Assim, sob o ponto de vista da proteção integral da criança e do adolescente, a multiparentalidade assegura-lhes o pleno desenvolvimento através da assistência do pai ou mãe biológicos e dos afetivos conjuntamente, pois consolida o direito à busca da origem biológica e do reconhecimento da paternidade originada no afeto. 

Portanto, mesmo sem a existência de regulamentação normativa específica, a multiparentalidade vem sendo reconhecida pela doutrina e jurisprudência, permitindo que o registro de nascimento espelhe a realidade, nele constando o nome do pai e mãe biológicos e dos socioafetivos, bem como dos correspondentes avós. 

Assim, a despeito dos problemas que possam advir do reconhecimento da multiparentalidade, os quais podem perfeitamente ser solucionados pelas normas legais já existentes em nosso sistema jurídico, conclui-se que o seu não reconhecimento seria negar a realidade social e retirar o direito de reconhecimento daquele que tem a sorte de poder contar com mais de um pai e uma mãe, quando tantos não contam com nenhum. 

REFERÊNCIAS

[1]CASSETTRI,Christiano,Multiparentalidade
e Parentalidade Socioafetiva. 2a Ed.São Paulo:Editora Atlas, 2015, p. 16;
[2] CF, art. 227, § 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação;
[3] C.C., art. 1593 - O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem; e
[4] Dias, Maria Berenice, Oppermann, Marta Cauduro. Multiparentalidade: uma realidade que a justiça começou a admitir. Disponível em : www.mariaberenicedias.com.br . Acesso em; 20/07/2020.

*JOSANE HOEHR LANDERDAHL DE ALBUQUERQUE

-Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB (1999);
-Pós-graduada em Direito Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina;
-Advogada inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Seção do Distrito Federal sob o nº 16.206;
-Exercício da advocacia na Justiça Federal, Justiça Comum e Juizado Especial nas áreas de Direito Civil, especialmente em Direito de Família e Direito do Consumidor;
Idiomainglês e
-Advogada Sócia do Escritório Freitas, Landerdahl & Advogados Associados desde a sua fundação.


 Nota do Editor:

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