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sábado, 3 de outubro de 2020

Quem é o Autor?


 Autora: Maria Thereza Pompa Antunes(*)


Neste artigo, trago a tona um tema sensível e que muito, recorrentemente, me vem incomodando que é o da produção científica no Brasil no âmbito dos programas de pós-graduação stricto sensu, na área das Ciências Sociais Aplicadas, em que me formei e que atuo por mais de duas décadas, notadamente sobre a atribuição da autoria, com base na abordagem de Foucault sobre moral e sobre o que é ser um autor.

De acordo com Foucault (1969), "os textos, os livros, os discursos começaram a ter realmente autores (diferentes dos personagens míticos) na medida em que o autor podia ser punido, ou seja, na medida em que os discursos podiam ser transgressores". Em minha visão, identifico uma verdadeira competição para a publicação, ou seja: os pesquisadores precisam produzir, pois a sua empregabilidade e certa medida de vaidade intelectual estão em pauta.

A moral, por sua vez, pode ser entendida de duas formas: como um conjunto de valores e regras de ação (normas) para indivíduos e grupos, por meio da prescrição de vários instrumentos que podem ser explícita e claramente divulgados, ou ainda transmitidos de forma difusa; ou como o comportamento real dos indivíduos em relação a essas regras e valores (normas) que lhes são propostos designando, dessa forma, a maneira pela qual eles se submetem, ou obedecem, ou resistem, ou respeitam, ou negligenciam, mais ou menos completamente, um conjunto de valores. No primeiro caso, Foucault se refere ao código moral e, no segundo caso, à moralidade do comportamento (Foucault, 1986, p.33).

Nesse sentido, o que é ser autor?

Primeiramente, recorro ao entendimento de Foucault sobre autor e autoria.

Em conferência proferida por Michel Foucault na Societé Française de Philosophic (Foucault, 1969) – "O que é um Autor?" percebemos, nitidamente, a sua preocupação bastante profunda com o personagem autor, notadamente com o seu apagamento para a crítica da escrita contemporânea. 

Para formular o tema de sua conferência, Foucault tomou emprestado de S. Beckett (dramaturgo e escritor Irlandês – 1906/1989) a seguinte declaração: "Que importa quem fala, alguém disse que importa". Nesse contexto, Foucault chama a atenção para o fato de que o essencial não é constatar mais uma vez o desaparecimento do autor, mas, sim, "descobrir, como um lugar vazio – ao mesmo tempo indiferente e obrigatório – os locais onde sua função é exercida". (Foucault, 1969, p.1) 

Para tanto, versou sobre as questões relativas ao (1) nome do autor – "impossibilidade de trata-lo como uma descrição definida e como um nome próprio comum"; (2) a relação da apropriação – "qual é a natureza do speech act?"; (3) a relação da atribuição – "as incertezas do opus,(...) o que é uma obra, é aquilo escrito por um autor?" ; e (4) a posição do autor em relação à obra – "no livro: copista, narrador, memorialista; nos diferentes tipos de discurso, como o filosófico; e no campo discursivo: o que é o fundador de uma disciplina " (Foucault, 1969, p.2). 

Para fins deste texto, limito-me ao que Foucault (1969) analisa em termos do nome do autor (ou função autor) e da relação da apropriação.

Um nome de autor, para Foucault, não é simplesmente um elemento em um discurso, mas, sim, um elemento que exerce certo papel em relação ao discurso, pois assegura uma função classificatória, visto que tal nome permite reagrupar certo número de textos, delimitá-los, de se excluírem alguns deles e opô-los a outros e, também, relacionar os textos entre si, e questiona: "mas o fato de que vários textos tenham sido colocados sob o mesmo nome indica que se estabeleça entre eles uma relação de homogeneidade ou de filiação, ou de autenticação de uns pelos outros, ou de explicação recíproca, ou de utilização concomitante?" (Foucault, 1969, p.13).

Em seu entendimento, o autor funciona para caracterizar o modo de ser do discurso. "O fato de haver um nome de autor, de forma que se possa dizer ‘que isso foi escrito por tal pessoa’ ou ‘tal pessoa é autor disso’ indica que esse discurso não é uma palavra cotidiana, indiferente (...), mas que se trata de uma palavra que deve ser recebida de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber um certo status."

A relação da apropriação está ligada à "função autor", no tocante ao "modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade, destacando a questão da propriedade."

A propriedade foi instaurada em nossa sociedade quando da editoração das regras escritas sobre os direitos do autor, relações autores/editores, direito de reprodução etc., compensando o status que o autor recebia. Passando do anonimato, que não se constituía em dificuldade de aceitação para a sociedade (narrativas, contos, epopeias, tragédias, comédias que circulavam e eram valorizados sem que fosse colocada a questão do autor), para a produção de textos científicos e literários que não são aceitos desprovidos da função autor. "O anonimato não é suportável para nós" (...) "A qualquer texto de poesia ou de ficção se pergunta de onde ele vem, quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de qual projeto." (...) "Se em consequência de um acidente ou vontade explícita do autor ele chega a nós no anonimato, a operação é imediatamente buscar o autor."

Em resumo à "função autor", para Foucault, está ligada ao sistema jurídico e institucional que contém, determina, articula o universo dos discursos; ela nasce e se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; ela não é definida pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de operações específicas e complexas; ela não remete pura e simplesmente a um indivíduo real, ela pode dar lugar simultaneamente a vários egos, a varias posições-sujeito que classes diferentes de indivíduos podem vir a ocupar.

Então...Quem é o autor?

A identidade do discurso (o que se fala e o que se escreve de forma organizada) e a atribuição de um nome a este discurso são dois aspectos expostos por Foucault. Nesse sentido, existe uma relação entre quem escreve ou fala (discurso) e o que se escreve ou fala em termos de identidade.

Em outras palavras, pode-se dizer que um autor é identificado pela sua obra (discurso) e ao mesmo tempo a sua obra (discurso) identificada a ele. Tem-se a obra e o notório reconhecimento de quem compôs a obra e vice-versa.

Trazendo a nossa realidade atual, podemos analisar esses aspectos sobre duas diferentes situações.

Na primeira, podemos, de fato, identificar certos assuntos ou temas aos quais certos autores são identificados. Isso significa dizer que ‘fulano’ é notoriamente reconhecido por ter escrito e contribuído para o conhecimento com a exploração (pesquisa) de certo tema ou assunto. Seja por ter identificado e explorado um tema pela primeira vez em nossa área, seja por ter desenvolvido uma nova metodologia, seja por ter se dedicado a fundo às interpretações e interdisciplinaridades do tema, ou outras tantas situações possíveis que resultam em uma relação íntima entre o autor e o discurso. 

Neste caso, poder-se-ia dizer que no conjunto da publicação, este pesquisador se identifica com todos esses textos? Existe íntima relação entre este pesquisador e o seu discurso (obra)? Poder-se-ia dizer que este pesquisador é autor de uma obra? 

Em vista do exposto, poder-se-ia afirmar que a questão de quem é o autor se tornou hoje, ao menos no contexto das pesquisas acadêmicas, banalizada, no sentido da perda da essência do que é ser um autor, segundo Foucault? Quais forças motivam essa perda de identidade? As avaliações da CAPES? As avaliações institucionais no âmbito de cada Programa? A vaidade individual, buscando suplantar os pares em termos de publicação pela busca de mais de mil pontos no triênio, e serem reconhecidos como os autores mais profícuos e citados na nossa área, o que é divulgado por meio dos artigos Bibliométricos?

Retomando a afirmação de Beckett: "Que importa quem fala, alguém disse que importa"podemos dizer que atualmente parece que, que de fato, não importa o que se fala, mas quem fala sim, pois a produção em termos quantitativo é o que importa.

Aqui se aplica o senso comum. No limite, o excesso de generalismo leva ao conhecimento de nada sobre o tudo; o excesso de especialização leva a se conhecer tudo sobre nada.

Essa busca desenfreada pelo status e pelo cumprimento das metas gerencialistas, baseadas exclusivamente na calculabilidade, resulta em uma produção científica irrelevante e de pouca contribuição para o avanço do conhecimento da nossa área. Acredito que os pesquisadores mais conscientes não atribuem a esses ‘autores’ o status por eles almejado, mas, apenas, o descrédito. 

Nesse aspecto vale mencionar a visão de Marcia McNutt, editora chefe da Science, para quem "a ciência brasileira precisa ser mais corajosa e mais ousada, se quiser crescer no cenário internacional". Para criar esta coragem, diz ela, é preciso aprender a correr riscos, e aceitar a possibilidade de fracasso como parte natural do processo científico, não se limitando a produção de trabalhos simples e seguros que garanta um resultado de publicação ao final de cada projeto ou bolsa, característica da cultura científica brasileira. (Escobar, 2013).

Em síntese, o que é mais relevante para o avanço do conhecimento: a produção de um ou dois trabalhos importantes em um ano, triênio, quadriênio, o que seja, pelo qual o autor é identificado a sua obra e pelos quais obterá, no máximo, 200 pontos (equivalente a dois artigos A1, segundo o Qualis- Capes, base para avaliação de desempenho adotada pelas Universidades para os professores dos Programas) ou produzir uma série de amenidades, por meio das quais o ‘autor’ poderá receber até mais de 1.000 pontos e, dessa forma, além de garantir a sua empregabilidade, ser identificado como um dos autores mais profícuos da área? 

É forçoso reconhecer que, diante do sistema atual de avaliação de desempenho no âmbito interno dos Programas de Pós-Graduação (stricto sensu) no Brasil, essa situação se impõe. 

Além disso, ou talvez por causa disso, questionamos firmemente a necessidade de se ter critérios definidos, pois entendemos que a ação/atitude individual deve prevalecer sobre quaisquer critérios legais, visto que para se levar a cabo todas as leis, normas, deve haver punições e, para tanto, controle, que, mesmo assim, não impedem a prática ilegal de qualquer natureza.

Agradecimentos: Deixo aqui os meus reconhecidos agradecimentos ao Prof. Dr. Octavio Ribeiro de Mendonça Neto, por suas contribuições nas reflexões que resultaram nesse artigo.

Referências

Escobar, H. (2013). A ciência brasileira precisa ser mais ousada. Entrevista com Marcia McNutt. Jornal O Estado de São Paulo, 29 de novembro;

Foucault, M. (1969). O que é um autor? Bulletin de la Societé Française de Philosophic, 63(3), 73-104;

Foucault, M. (1986). The history of sexuality: the use of pleasure. New York: Vintage.

*MARIA THEREZA POMPA ANTUNES













- Graduação em Administração pela PUC/RJ (1984);
- 22 anos de experiência na área acadêmica, atuando como docente, pesquisadora e gestora;
- Especialista em Educação;
- Pesquisadora líder de projetos de pesquisa com fomento do CNPq e da CAPES, tendo participado de diversos congressos científicos nacionais e internacionais;
-Autora de livros e artigos científicos publicados em periódicos indexados, nacionais e internacionais;
- Membro de Conselho Editorial de periódicos nacionais e internacionais;
- Palestrante com experiência internacional;
- Membro da Comissão Científico e Acadêmico do Conselho Regional de Contabilidade de São Paulo (CRC/SP), onde foi Conselheira de 2014 à 2017;
E-mail: teantunes@uol.com.br
WhatsApp: (11)-98338-4343
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