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sábado, 31 de outubro de 2020

A descoberta do sensível em Clarice Lispector




Autora: Cinara Ferreira(*) 

Em 10 de dezembro deste ano, comemora-se o centenário de nascimento de Clarice Lispector (1920-2020), uma das escritoras mais importantes da Literatura Brasileira. A autora de mais de 30 obras, como as memoráveis A paixão segundo G. H. (1964) e A hora da estrela (1977), tem como uma de suas marcas inconfundíveis o desvelamento do sensível em sua escrita. Seus romances, contos, crônicas, cartas e entrevistas mostram o mundo a partir de uma lente apurada e voltada para tudo o que se esconde e escapa nas situações cotidianas. Neste artigo, apresentarei uma breve biografia da autora e comentarei algumas de suas crônicas publicadas no Jornal do Brasil, entre 1967 e 1973, reunidas posteriormente no livro A descoberta do mundo (1984), organizado pelo filho Paulo Gurgel Valente.

Clarice Lispector nasceu na Ucrânia e chegou ao Brasil em 1922 com os pais e duas irmãs. A família judia morou inicialmente em Maceió (AL), onde havia alguns parentes, mudando-se três anos depois para Recife (PE). Segundo Nadia Gotlib, "Clarice, cujo nome de nascença era Haia, viveu uma infância muito pobre" e “no Recife, aprendeu a ler e se apaixonou pela literatura". Após a morte da esposa na década de 1930, o pai de Clarice Lispector mudou-se com as filhas para o Rio de Janeiro. Em 1939, Clarice ingressou no curso de Direito na antiga Universidade do Brasil, hoje UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Nesse período, iniciou-se na imprensa como jornalista, publicando contos em periódicos.

Sua estreia na literatura foi com Perto do coração selvagem (1943), livro bem acolhido crítica literária da época. No mesmo ano, casou-se com Maury Gurgel Valente (1921-1994), com quem teve dois filhos, Pedro e Paulo. Para acompanhar o marido diplomata, Clarice morou em diferentes lugares do mundo. De volta ao Rio de Janeiro e separada em 1959, a escritora passou a dedicar-se à escrita de forma integral, publicando seus livros e textos avulsos na imprensa como uma forma de sobreviver e inserindo-se novamente no circuito literário carioca. A autora faleceu de câncer em 1977, ano de publicação de seu último livro, A hora da estrela. Desde lá, seus livros tem sido reeditados e estudados incansavelmente.

Na crônica, "Lição de filho", a cronista relata uma história aparentemente trivial sobre uma conhecida sua que faria uma apresentação ao piano na televisão: 

 

Lição de filho


"Recebi uma lição de um de meus filhos, antes dele fazer 14 anos. Haviam me telefonado avisando que uma moça que eu conhecia ia tocar na televisão, transmitido pelo Ministério da Educação. Liguei a televisão, mas em grande dúvida. Eu conhecera essa moça pessoalmente e ela era extremamente suave, com voz de criança e de um feminino-infantil. E eu me perguntava: terá ela força no piano? (...) 

Começou. E, Deus, ela possuía a força. Seu rosto era um outro, irreconhecível. Nos momentos de violência apertava violentamente os lábios. Nos instantes de doçura entreabria a boca, dando-se inteira. E suava, da testa escorria para o rosto o suor. De surpresa de descobrir uma alma insuspeita, fiquei com os olhos cheios de água, na verdade eu chorava. Percebi que meu filho, quase uma criança, notara, expliquei: estou emocionada, vou tomar um calmante. E ele: 

- Você não sabe diferenciar emoção de nervosismo? Você está tendo uma emoção. 

Entendi, aceitei, e disse-lhe: 

- Não vou tomar nenhum calmante. 

E vivi o que era para ser vivido. (1999, p. 138-139)"

A crônica começa anunciando uma lição recebida, criando expectativas no leitor, especialmente por se tratar da lição de um filho muito jovem. Depois disso, a narradora expõe a situação vivida que lhe causa grande comoção. O fato de não esperar muito da moça ao piano e se deparar com sua força a emociona, a ponto de a levar às lágrimas. Clarice mostra o quanto a arte pode ser transfiguradora tanto em quem a realiza quanto em quem a contempla. A moça, transfigurada pela música, provocou uma transfiguração em sua expectadora, que inicialmente não suportou admitir sua sensibilidade diante do filho e anunciou que tomaria um calmante, pois está nervosa. A lição se revela quando a criança a alerta que não se tratava de nervosismo, mas de emoção. Nesse sentido, a personagem mais uma vez se transfigura, ao aceitar o que diz o filho e afirmar que viveria o que era para ser vivido.

Ainda no campo do sensível revelado em acontecimentos comuns, nas pequenas crônicas "Dor de museu" e "Comer", Clarice nos chama a atenção para a sensibilidade sentida de forma inusitada:

"Dor de museu


Só posso chamar assim porque essa dor só aparece quando percorro museus. Mal começo a caminhar e a parar diante dos quadros vem a dor no ombro esquerdo – é sempre a mesma. Gostaria de saber do que se trata. É dor de emoção? (1999, p. 153)"

" Comer

A comida estava ruim, mas que bom: ela me renovará toda para uma futura comida boa que nem ao menos sei quando virá. (1999, p. 418)"
O não esperado de uma "dor de museu" ou de achar bom que "a comida estava ruim" é que promove o deslocamento de sentido nos textos. Tal deslocamento instaurado pela linguagem nos fazer ver o mundo de forma nova. Em sua literatura, Clarice Lispector nos transporta para aquilo que não percebemos habitualmente, nos mostrando que a realidade pode ser percebida de maneira sensível e poética. Nesse sentido, na crônica "Abstrato é o figurativo", a escritora mostra-se consciente do papel da literatura e das artes enquanto formas de revelação:

"Abstrato é o figurativo 

Tanto em pintura como em música e literatura, tantas vezes o que chamam de abstrato me parece apenas o figurativo de uma realidade mais delicada e mais difícil, menos visível a olho nu. (1999, p. 316)"

No ano do centenário de seu nascimento, estão sendo lançados filmes, peças teatrais, exposições, edições especiais de seus livros e eventos acadêmicos em todo o país, reafirmando o quanto até hoje a escrita e a figura enigmáticas de Clarice Lispector encantam e surpreendem seus leitores com sua forma de desvelar o mundo. Para finalizar, convido a todos que visitem ou revisitem a obra da autora, pois só a partir da leitura de seus textos é possível experimentar o mistério de Clarice Lispector e, assim, "viver o que tem que ser vivido."

BIBLIOGRAFIA

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. 

GOTLIB, Nádia Battella. Clarice - Uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.

* CINARA FERREIRA


-Doutora em Letras, área de Literatura Comparada, UFRGS e
-Docente do Instituto de Letras, da UFRGS.








Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Progresso


 Autora: Genha Auga(*)



Embora tanto progresso desde que o Brasil foi descoberto, como pode o brasileiro estar em pleno século XXI, frustrado, infeliz e inseguro? 

O trem era a vapor, hoje temos metrô, morria-se cedo demais, mas com o avanço da medicina o idoso está cada vez mais na caminhada da longevidade, a distância não permitia "matar" a saudade, mas com as redes sociais, fala-se e "vê-se" as pessoas a qualquer momento. Dedicava-se anos ao emprego para manter o salário e ascender na carreira, novos tempos e o empreendedorismo veio e está em alta.

Liberdade tinha que ser conquistada, confiança ser merecida, filhos eram planejados. Nos tempos de hoje, tem-se tudo isso com facilidade e então, o que falta? 

Penso que falta lembrar-se que sabíamos viver o simples...

O homem materializou-se e formou uma sociedade corrompida pela prosperidade que, esquecida da parte moral, ensinou que importante é "brilhar". Já não sabemos lidar com as decepções e dores. Para tudo toma-se remédio, mas, nada se resolve. 

Bem como, materialmente o que quebra joga-se fora e compra-se outro, não se tem mais paciência para ajudar o próximo e, simplesmente, troca-se o parceiro da mesma forma como também somos substituídos por outro ou, por alguma coisa que nos faça entrar em "estado de graça".

Não há o que se pensar, refletir ou até mesmo do que se arrepender. "Errar", hoje é normal, seja qual for a gravidade, ninguém é condenado e tudo é perdoado. A "salvação", agora é regra. 

Somos parte de uma sociedade movida pelo estresse que nos empurra ao pesadelo, faz parar de sonhar e gerenciar pensamentos. Corre-se diariamente, a lentidão irrita e a cada dia, afundamos para o último nível do mal de um ser humano: a depressão. 

Quer-se viver com dignidade, pouca condição tem-se para isso, falta-nos a confiança nos relacionamentos. O de melhor posição social quer o dignificante a qualquer custo, no entanto, conquistar com eficiência e merecidamente e fazer jus a tudo que se deseja ter seria o justo e certo. 

Tem-se uma visão poética e mágica de tudo, entre a pompa do soberbo e a ignorância, vive-se de ilusão. É preciso educar o olhar para ver, gerenciar os próprios pensamentos para não silenciar a própria vida. 

Parece que o futuro está cada vez mais diferente do que imaginamos, afastando as oportunidades de se melhorar nos dividimos em facções: corruptos, miseráveis, criminosos, ignorantes, abastados, cada um, na sua individualidade, segue sua vida. O homem valorizou mais o avanço tecnológico e o consumismo do que a si mesmo, atolou-se no apego dos bens possuídos, desprezou os atos morais e patrióticos e, mesmo assim ainda temos fome de comida, de educação e justiça, no entanto, para ser livre de verdade, sem essas prioridades básicas, não se chega a lugar algum. 

É preciso libertar-se do consumismo, da exclusão pela falta da educação e ter atitudes que não te condenem por atrocidades cometidas por futilidades. Não encontrará respostas na tecnologia se não aprender a usá-la para o trabalho e de maneira dignificante. 

A rota do crescimento e evolução não pode nos garantir um destino certo e glorioso nessa história em que nós somos os protagonistas, mas, agir com empatia, ter princípios básicos, amor ao próximo e pela nação, é o caminho certo para que o progresso aconteça em todas as esferas. 

*GENHA AUGA


-Bacharel em Comunicação Social, com Habilitação em Jornalismo Impresso -(MTB: 15.320);

-Cronista do Jornal online “Gazeta Valeparaibana” - desde fevereiro de 2012;e
-Direção Geral da Trupe de Teatro “Seminovos” – Sede de ensaios no Teatro João Caetano de São Paulo (Secretaria Municipal de Cultura-Prefeitura de São Paulo) – autora de textos e roteiro - desde 2015 com apresentações em Teatros, CEUs, Saraus, Hospitais, Escolas, Residenciais para Idosos, Centros de Convivências, Eventos, Instituições de Apoio às Crianças Especiais

NOTA DO EDITOR :

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

A Deserdação no Direito Brasileiro


 

Autor:Sergio Luiz Pereira Leite(*)



Em artigos anteriormente publicados, fizemos algumas anotações sobre o testamento e as formas, apreciamos o codicilo, o legado, a sucessão por representação e, agora, teceremos algumas considerações sobre a deserdação. Não que este estudo tenha a ousada pretensão de exaurir matéria tão densa, muito longe disso. Mas nas linhas abaixo, uma síntese desse instituto pode apresentar seus contornos mais relevantes.

Pois bem, o direito substantivo civil, ainda no livro que aborda a sucessão, contêm artigos que regem os aspectos sobre a deserdação (artigos 1.961 até 1.965). Mas o que é e como se dá a deserdação? 

Inicialmente, é bom que se conceitue o que é a deserdação. E a deserdação pode ser definida como a disposição testamentária pela qual o testador exclui da sua sucessão um ou alguns herdeiros necessários. 

Por herdeiro necessário devemos entender aqueles indivíduos que estão elencados nos artigos 1.845 até 1.850, ou seja, os descendentes, os ascendentes e o cônjuge, sendo que este último não constava da legislação anterior (Código Civil de 1916). Dessa maneira, estes são os herdeiros que podem ser deserdados. 

A eles, herdeiros necessários, é sempre reservada a metade dos bens do testador, uma vez que este pode dispor, da maneira que quiser, a outra metade, porquanto a obrigatoriedade de reserva tem clara e profunda função social e protetiva da família (artigo 1.789). 

Sobre essa metade, a dos herdeiros necessários, não pode o testador gravar as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade ou incomunicabilidade. Para que isto ocorra, a justa causa precisa ser declarada, novidade introduzida pela nova legislação civil de 2003. 

E esta declaração, se assegura o direito ao testador, pode também lhe criar algum desconforto, pois ele será obrigado a mencionar a razão da causa de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. Na legislação revogada esses gravames eram de livre disposição do testador, sem que existisse a justa causa para tanto. 

Um exemplo dessa situação nos é dado por Mauro Antonini*, quando diz, nos seus comentários ao artigo 1.848 do Código Civil, que o testador haverá de declinar os motivos para a imposição dos gravames. São suas estas palavras: 
"...para alcançar essa solução intermediária, o atual Código Civil, assegura o direito ao testador, mas lhe impõe considerável constrangimento para exercê-lo, pois terá de declarar, por exemplo, ser a justa causa para a incomunicabilidade o fato de o genro ser um aproveitador, indicando fatos concretos que justifiquem a pecha...". 
Naturalmente essa declaração pode ser questionada em Juízo, quando da abertura da sucessão, pelo herdeiro excluído, caso se sinta prejudicado. Mas para melhor dimensionar o alcance dessas disposições legais, quanto aos colaterais, é preciso que façamos a conjugação dos artigos acima mencionados com o artigo 1.847, segundo o qual, para os excluir da sucessão, basta que o testador disponha do patrimônio sem os contemplar. 

Mas somente em casos excepcionais e expressos permite a lei que o autor da herança prive seus herdeiros necessários não só da porção disponível como até mesmo da legítima, deserdando-os por meio de testamento, que é a única forma admitida. 

E quais seriam esses casos? A resposta novamente encontra sua essência na conjugação entre 1.814 (excluídos da Sucessão) e 1962 e seguintes da lei substantiva civil. Dessa forma temos que: 

"Artigo 1.814 – São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários: 

I – Que houverem sido autores, coautores ou partícipe de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente; 

II- Que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro; 

III-que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade. "

É muito importante observar que deserdação não se confunde com indignidade, embora ambas tenham a mesma finalidade, qual seja, excluir da sucessão quem praticou atos condenáveis contra o de cujus. 

Ambos os institutos têm o mesmo fundamento — a vontade do de cujus —, com a diferença que, para a indignidade, o fundamento é vontade presumida, enquanto a deserdação só pode fundar-se na vontade expressa do testador. 

Em realidade, há semelhanças e traços comuns entre os dois institutos. O art. 1.961 do Código Civil dispõe que: 
"Os herdeiros necessários podem ser privados de sua legítima, ou deserdados, em todos os casos em que podem ser excluídos da sucessão". 
Os artigos 1.962 e 1.963 acrescentam outras causas delituosas de deserdação, quer de descendente quer de ascendente. 

Não obstante as semelhanças apontadas, indignação e deserdação não se confundem. Têm pontos de coincidência nos efeitos, mas diferem na sua estrutura, como nos ensina Carlos Roberto Gonçalves*. Distinguem-se basicamente: 

a) pela sua causa eficiente. A indignidade decorre da lei, que prevê a pena somente nos casos do art. 1.814 do Código Civil. Na deserdação, é o autor da herança quem pune o responsável, em testamento, nos casos previstos no aludido dispositivo, bem como nos constantes do art. 1.96;

b) pelo seu campo de atuação. O Código Civil de 2002 continua a tratar a deserdação como um instituto da sucessão testamentária. Assim, pode-se afirmar que a indignidade é instituto da sucessão legítima, malgrado possa alcançar também o legatário, enquanto a deserdação só pode ocorrer na sucessão testamentária, pois depende de testamento, com expressa declaração de causa (art. 1.964). Aquela pode atingir todos os sucessores, legítimos e testamentários, inclusive legatários, enquanto esta é utilizada pelo testador para afastar de sua sucessão os herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge), também chamados reservatários ou legitimários, aos quais a lei assegura o direito à legítima. Somente a deserdação pode privá-los desse direito. 

Malgrado a deserdação continue a ser tratada, formalmente, como instituto da sucessão testamentária, poderia fazer parte da sucessão legítima, se considerada a sua substância, uma vez que a sua consequência consiste em privar da quota necessária os herdeiros obrigatórios ou legitimários.

Anote-se que, se o testamento for nulo, e por isso a deserdação não se efetivar, poderão os interessados pleitear a exclusão do sucessor por indignidade, se a causa invocada pelo testador for causa também de indignidade. 

c) pelo modo de sua efetivação. A exclusão por indignidade é postulada por terceiros interessados em ação própria e obtida mediante sentença judicial (Código Civil, artigo 1.815). A deserdação, todavia, como foi dito, se dá por testamento, com expressa declaração da causa (artigo 1.964). 

Retroagem os efeitos até a data da abertura da sucessão. E o herdeiro é considerado como se tivesse morrido antes do testador. Mas não se afastam seus herdeiros da sucessão, porque a deserdação tem caráter personalíssimo, não atingindo terceiros. Os descendentes do excluído substituem-no, ou ficam no seu lugar por direito de representação. 

Malgrado os que pensam o contrário, fazendo construções em cima da inexistência de dispositivos que tratam da deserdação de igual conteúdo aos que regulam a indignidade, repugna pensar que pode o castigo atingir pessoas diversas dos que infringiram a lei, ou descendentes delas, que são herdeiros, e nada tiveram com os atos de improbidade ao testador. 

Estes, em essência, os apontamentos que faço sobre esse tema. 

BIBLIOGRAFIA 

  •  ANTONINI Mauro – Código Civil Comentado – editora Manole – 1ª edição; 
  •  STOLZE GAGLIANO Pablo e PAMPLONA FILHO Rodolfo – Novo Curso de Direito Civil 19ª Edição- Editora Saraiva;
  •  GONÇALVES Carlos Roberto – Direito Civil Brasileiro – 15ª edição – 2017 – Saraiva;
  • RIZZARDO Arnaldo – Direito das Sucessões – 9ª edição – GEN;
  •  AZEVEDO Álvaro Villaça de – Curso de Direito Civil – 4ª edição – Saraiva;
  • TARTUCE Flávio ­– Coleção de Direito Civil – 14ª edição – 2017 – GEN;
  • CHAVES DE FARIA CRISTIANO e ROSENVALD Nelson – Curso de Direito Civil – 15ª edição – JusPodium;
  •  MORAES MELLO Cleyson - DIREITO CIVIL – 2ª edição – 2017 – Freitas Bastos Editora;
  • · SILVA PEREIRA Caio Mário da – Instituições de Direito Civil – 24ª edição – 2017 – Forense 
*SERGIO LUIZ PEREIRA LEITE














-Advogado militante nas áreas cível e criminal na Comarca de Tietê, Estado de São Paulo.

 Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.    

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

A Nova Era de Consumidores e a Autonomia das Partes


 Autora: Jessica Avance(*)


É incrível perceber a evolução e a mudança de comportamento dos consumidores em um período tão curto de tempo. Requisitos que há 20 anos eram imprescindíveis para o funcionamento de empresas, como uma sede física, por exemplo, hoje em dia podem ser considerados desnecessários, ou de caráter opcional. 

Isso porque a tecnologia vem trazendo uma imensa facilidade de acesso a conteúdos, a informações, com extrema riqueza de detalhes, o que possibilita que o consumidor efetue compras de serviços e produtos sem sair do sofá de casa. 

Essa realidade é algo completamente normal atualmente, mas se pararmos para pensar que há duas décadas as únicas coisas enviadas pelos correios eram cartas e cartões postais, nos assustamos ao ver a velocidade em que o mundo cresceu, e se transformou. 

A velocidade de expansão da tecnologia, também possibilitou um grande crescimento industrial na sociedade moderna. As pessoas começaram a empreender e abrir seus próprios negócios, pois a informação está ao alcance de quem quer aprender, e assim, a cada dia que passa surgem milhões de novas empresas, alimentando o comércio de maneira exponencial. 

O foco na produção em massa, na venda, na divulgação dos produtos e serviços em redes sociais e canais digitais, acabou deixando a desejar, na área de maior importância de um negócio: a de relações humanas. 

Não é atoa que os Juizados Especiais de todo o território Nacional se encontram assolados com ações de ressarcimento e danos morais, devido à má prestação de serviço, ou má qualidade de produtos. Os empreendedores deixaram de dar atenção e cuidar daqueles que são os mais importantes na sua cadeia de crescimento: os consumidores.

Após o cenário do COVID-19, que se instalou no mundo no ano de 2020, o fenômeno de mudança de comportamento dos consumidores acelerou ainda mais (tendo em vista a impossibilidade de circulação física pelas ruas e lojas), de forma que, na última semana de abril do ano corrente, as compras online cresceram 14%, com uma expectativa de crescimento para 24% na semana seguinte. Felizmente, a pandemia também trouxe uma mudança de comportamento para os fornecedores. 

Percebemos que foi necessário a ocorrência de um prejuízo inesperado para as empresas, em ordem de haver uma inclinação para a solução de problemas de forma amigável, ao invés de uma luta através do judiciário. A cada dia os fornecedores vêm notando o quanto são dependentes dos consumidores, e por consequência, vêm valorizando mais a relação com seu público-alvo com objetivo de prestar um melhor serviço e evitar desgastes maiores posteriormente. 

A autonomia das partes é essencial nas relações e contratos consumeristas. A vontade humana é o núcleo, a fonte e a legitimação da relação jurídica, e não a lei. Desta forma, a força que obriga as partes a cumprirem o contrato encontra seu fundamento na vontade livremente estipulada no instrumento jurídico, cabendo à lei apenas assegurar os meios que levem ao cumprimento da obrigação. 

Portanto, quando existe a possibilidade de um diálogo entre as partes, seus interesses podem ser melhor estabelecidos, de maneira clara e objetiva. 

Nesse momento, as grandes empresas, fornecedores de produtos e serviços, percebem que não devem ficar tão longe dos seus consumidores, para que consigam entender melhor suas demandas, suas insatisfações, e para que, ao lado deles, consigam encontrar uma solução.

Diante dos desdobramentos que afetaram as relações consumeristas, surgiram medidas para que as resoluções de problemas fossem realizadas através de acordos entre as partes. 

Esse momento é de grande importância, pois relembra aos fornecedores que os contratos consumeristas são feitos a partir de um acordo, que seja beneficente tanto para o consumidor, quanto para o empreendedor. É consequência da autonomia da vontade assegurar que a vontade criadora dos contratos seja livre de defeitos e vícios, ou seja, as partes possuírem a liberdade de contratar ou não, de escolher com quem deseja contratar, as cláusulas e a forma que o instrumento jurídico terá. 

Dessa forma, podemos ver que a autonomia da vontade é composta, principalmente, pela liberdade contratual, que está ligada à vontade livre e desimpedida, proferida pelo próprio consumidor sem qualquer coação externa. É a liberdade de contratar ou de se abster, de escolher a parte contratual, de estabelecer os limites do contrato, ou seja, de exteriorizar sua vontade da forma que pretender. 

A liberdade contratual tem a premissa de estabelecer-se livremente a forma do contrato e as suas cláusulas, quando não contrariarem a lei. Daí resulta a possibilidade de se criar novos tipos de contratos, não tipificados na legislação, bem como de resolverem as questões sem envolver o judiciário.

O único obstáculo à liberdade contratual encontra-se nas regras imperativas decorrentes da legislação. Contudo, no direito contratual tradicional, estas regras são raras e sua função básica se resume a garantir o exercício da vontade livre e desimpedida dos contratantes, fornecendo parâmetros para a correta interpretação da vontade e regras supletivas para o caso de os contratantes não regularem determinados pontos da obrigação, tal como regras sobre o tempo e o lugar do pagamento. 

Para assegurar a autonomia das partes, de forma a proteger os direitos da relação consumerista, duas Medidas Provisórias importantes foram criadas durante a pandemia, com o teor de possibilitar uma resolução de acordo com os interesses dos envolvidos na lide, quais sejam: 

• MP nº 925, convertida em LEI Nº 14.034, DE 5 DE AGOSTO DE 2020 (Dispõe sobre medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da Covid-19) e; 

• MP nº 948, convertida em LEI Nº 14.046, DE 24 DE AGOSTO DE 2020 (Dispõe sobre o adiamento e o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e de cultura em razão do estado de calamidade pública). 

Além dessas medidas, podemos citar um importante Decreto Federal que assegura os consuidores nas compras online, determinando regras importantes que devem ser seguidas pelos fornecedores, para que se certifiquem de toda a segurança nas plataformas digitais e eletrônicas de contratação, regras essas que os consumidores devem estar sempre atentos ao utilizar referidas plataformas, vejamos: 

"Art. 1º Este Decreto regulamenta a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, para dispor sobre a contratação no comércio eletrônico, abrangendo os seguintes aspectos: 

I - informações claras a respeito do produto, serviço e do fornecedor; 

II - atendimento facilitado ao consumidor; e 

III - respeito ao direito de arrependimento. 

Art. 2º Os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados para oferta ou conclusão de contrato de consumo devem disponibilizar, em local de destaque e de fácil visualização, as seguintes informações: 

I - nome empresarial e número de inscrição do fornecedor, quando houver, no Cadastro Nacional de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda; 

II - endereço físico e eletrônico, e demais informações necessárias para sua localização e contato; 

III - características essenciais do produto ou do serviço, incluídos os riscos à saúde e à segurança dos consumidores; 

IV - discriminação, no preço, de quaisquer despesas adicionais ou acessórias, tais como as de entrega ou seguros; 

V - condições integrais da oferta, incluídas modalidades de pagamento, disponibilidade, forma e prazo da execução do serviço ou da entrega ou disponibilização do produto; e 

VI - informações claras e ostensivas a respeito de quaisquer restrições à fruição da oferta. 

Art. 3º Os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados para ofertas de compras coletivas ou modalidades análogas de contratação deverão conter, além das informações previstas no art. 2º , as seguintes: 

I - quantidade mínima de consumidores para a efetivação do contrato; 

II - prazo para utilização da oferta pelo consumidor; e 

III - identificação do fornecedor responsável pelo sítio eletrônico e do fornecedor do produto ou serviço ofertado, nos termos dos incisos I e II do art. 2º . 

Art. 4º Para garantir o atendimento facilitado ao consumidor no comércio eletrônico, o fornecedor deverá: 

I - apresentar sumário do contrato antes da contratação, com as informações necessárias ao pleno exercício do direito de escolha do consumidor, enfatizadas as cláusulas que limitem direitos; 

II - fornecer ferramentas eficazes ao consumidor para identificação e correção imediata de erros ocorridos nas etapas anteriores à finalização da contratação; 

III - confirmar imediatamente o recebimento da aceitação da oferta; 

IV - disponibilizar o contrato ao consumidor em meio que permita sua conservação e reprodução, imediatamente após a contratação; 

V - manter serviço adequado e eficaz de atendimento em meio eletrônico, que possibilite ao consumidor a resolução de demandas referentes a informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato; 

VI – confirmar imediatamente o recebimento das demandas do consumidor referidas no inciso, pelo mesmo meio empregado pelo consumidor ; e 

VII - utilizar mecanismos de segurança eficazes para pagamento e para tratamento de dados do consumidor. 

Parágrafo único. A manifestação do fornecedor às demandas previstas no inciso V do caput será encaminhada em até cinco dias ao consumidor. 

Art. 5º O fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os meios adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor. 

§ 1º O consumidor poderá exercer seu direito de arrependimento pela mesma ferramenta utilizada para a contratação, sem prejuízo de outros meios disponibilizados. 

§ 2º O exercício do direito de arrependimento implica a rescisão dos contratos acessórios, sem qualquer ônus para o consumidor. 

§ 3º O exercício do direito de arrependimento será comunicado imediatamente pelo fornecedor à instituição financeira ou à administradora do cartão de crédito ou similar, para que: 

I - a transação não seja lançada na fatura do consumidor; ou 

II - seja efetivado o estorno do valor, caso o lançamento na fatura já tenha sido realizado. 

§ 4º O fornecedor deve enviar ao consumidor confirmação imediata do recebimento da manifestação de arrependimento. 

Art. 6º As contratações no comércio eletrônico deverão observar o cumprimento das condições da oferta, com a entrega dos produtos e serviços contratados, observados prazos, quantidade, qualidade e adequação. 

Art. 7º A inobservância das condutas descritas neste Decreto ensejará aplicação das sanções previstas no art. 56 da Lei nº 8.078, de 1990.." 

Portanto, o que podemos observar é que, com tantas mudanças na esfera consumerista, tanto do comportamento do consumidor, quanto do fornecedor, o Direito vem se adequando às novas necessidades, e tratando as relações comerciais com cada vez mais liberdade entre as partes, para que as vias judiciais sejam o último meio procurado para resolução de lides.

*JESSICA FERNANDES AVANCE












- Formada em Direito pelo PUC MINAS;

- Pós-Graduada pela Escola Superior da OAB/MG – em  Advocacia Civil;

- Experiência nas questões afetas à Vara Cível; especialmente na área de Direito do consumidor;

Sócia proprietária do Escritório Avance Advocacia;

(31) 99983-8551;


Nota do Editor:


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terça-feira, 27 de outubro de 2020

Os desafios do teletrabalho no Brasil

 



Autora: Débora Machado Rocha(*)

Com a pandemia do coronavírus (Covid-19) e o isolamento social, as relações de trabalho foram profundamente afetadas, obrigando diversos segmentos a se reinventar, adaptarem seus negócios e a colocar seus funcionários para trabalharem de casa.

A essa modalidade de trabalho, a legislação dá o nome de trabalho à distância, teletrabalho, trabalho remoto, trabalho em domicílio, home office (trabalho de casa) ou anywhere office (trabalho de qualquer lugar). 

Ainda, hoje, há divergências doutrinárias sobre a definição e abrangência do conceito teletrabalho, pois alguns autores entendem que mesmo o trabalho realizado sem o uso da informática, como o da costureira empregada que trabalha em casa, seria um tipo de teletrabalho. E isso porque o radical “tele” significa longe ou à distância, ou seja, abarcaria qualquer tipo de trabalho realizado à distância. O uso ou não da tecnologia de informação e comunicação para caracterizar o teletrabalho é algo a ser tratado por cada país. 

Com o mundo cada vez mais tecnológico, é natural que as relações trabalhistas sofram constantes mudanças e evoluções. Todavia, faz-se necessário que as normas jurídicas acompanhem essas novas realidades para que não haja violação dos direitos arduamente conquistados ao longo dos anos. 

No Brasil, a figura do trabalho à distância ganhou maiores contornos em 2011, com a Lei 12.551, quando houve a alteração do artigo 6º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Esse artigo passou a prever que não haveria diferença entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado à distância, desde que presentes os elementos caracterizadores da relação de emprego (pessoalidade, subordinação, onerosidade e não-eventualidade). 

Já que o trabalho estava sendo realizado fora das vistas do empregador, também foi preciso equiparar os meios telemáticos e informatizados de comando aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho para fins de subordinação jurídica, que é o dever que o empregado tem de seguir as regras e diretrizes estabelecidas pelo empregador. 

Assim, até o advento da Reforma Trabalhista, Lei 13.467/2017, os empregados que trabalhavam à distância gozavam da proteção celetista em todos os aspectos, como jornada de trabalho, pagamento de horas extras, entre outros direitos. 

Com a publicação da referida lei, houve a inclusão do capítulo "Do Teletrabalho", artigos 75-A a 75-E, na CLT, para regulamentar especificamente essa modalidade contratual. 

O teletrabalho então foi conceituado como a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e comunicação. Aqui, aquela divergência sobre o uso ou não da informática para caracterizar o teletrabalho fica um pouco mais clara, pois houve determinação expressa na CLT. 

No artigo 75-C ficou previsto que a prestação de serviços na modalidade de teletrabalho deve constar expressamente em contrato individual de trabalho, que especificará as atividades a serem realizadas pelo empregado. Já no artigo 75-D ficou determinado que a responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto, bem como ao reembolso de despesas arcadas pelo empregado, serão previstas em contrato escrito. Por fim, ficou consignado no artigo 75-E que o empregador tem obrigação de instruir seus empregados quanto às precauções a tomar para evitar doenças e acidentes de trabalho. 

A cereja do bolo veio com a inclusão do inciso III, no artigo 62, da CLT, para excluir os teletrabalhadores do capítulo "Da Jornada de Trabalho", que, aos mais desatentos, pode passar desapercebido, mas que, na prática, tende a lesar inúmeros trabalhadores, pois, não havendo o controle da jornada, não haverá o pagamento de horas extras. 

Embora muitos empregados tenham se adaptado bem ao trabalho à distância, relatando como vantagens o maior tempo para ficar com a família, a autonomia para gerir melhor o tempo de trabalho e lazer, a maior produtividade, o fato de poder trabalhar para mais de um empregador (pluralidade contratual), o ganho de tempo ao não precisar se deslocar até a empresa, entre outros, o período da pandemia do coronavírus tem demonstrado que nem tudo são flores. 

O isolamento social por si só já foi um grande desafio, atrelado ao teletrabalho, a educação dos filhos em homeschooling (escola em casa), aos cuidados da casa, às relações familiares e aos demais afazeres do dia a dia, trouxeram situações, até então, não vivenciadas, ou se quer imaginadas, pela sociedade. 

Culturalmente não tínhamos o hábito do trabalho à distância, que, na maioria das vezes, por ser algo novo, era visto com certa desconfiança. 

Além disso, com o aumento do teletrabalho na pandemia, tem se notado que: 

  • nem todo empregado conseguiu criar uma rotina e se adaptar ao teletrabalho, criando e mantendo horários de início, descanso e término das tarefas, gerando diminuição da produtividade; 
  • em muitos casos, a qualidade dos relacionamentos ficou comprometida, aumentando os casos de solidão, depressão, estresse, ansiedade, violência doméstica e outros; 
  • houve sobrecarga do trabalho da mulher, que, antes da pandemia já tinha uma jornada considerada dupla, e agora, com a educação dos filhos em casa, por exemplo, passou a ser responsável por uma jornada maior e mais extenuante (é verdade que a participação dos homens nos trabalhos domésticos e criação dos filhos aumentou. Porém, ainda hoje, na maioria dos lares, a mulher ainda é a grande responsável por essas tarefas); 
  • dificuldade em controlar e estabelecer metas, principalmente em pequenas e médias empresas;
  • ausência de fiscalização das normas de segurança e saúde do trabalho; 
  • redução de direitos trabalhistas; 
  • carência da legislação trabalhista em dar maior proteção aos teletrabalhadores em aspectos relacionados a responsabilidade no fornecimento de equipamentos e mobília adequada, pagamento de luz, internet e manutenção do sistema, entre outros, gerando o aumento de custos individuais para o empregado; 
  • em alguns casos, ausência de local próprio na residência do teletrabalhador para se dedicar ao trabalho, pois o “escritório” e a sala de estar, por exemplo, ocupam o mesmo espaço, ocasionando distrações; 
  • distanciamento de outros funcionários, prejudicando o contato e a amizade, que fazem parte do convívio e desenvolvimento humano; 
  • comprometimento do direito à desconexão, havendo uma extensão casa/trabalho e consequentemente perda dos momentos para o lazer; e
  • uso intenso das tecnologias da informação e comunicação, e outros tantos desafios que ainda surgirão ao longo do tempo. 
Como se vê, o tema desperta inúmeras reflexões e a atual legislação se monstra insuficiente para tratar de aspectos tão complexos, além de não promover a devida proteção aos direitos dos teletrabalhadores a fim de se evitar abusos por parte dos empregadores. 

Neste sentido, encontra-se em trâmite no Senado Federal o Projeto de Lei (PL) 3.512/2020, de iniciativa do Senador Fabiano Contarato (REDE/ES), para revogar o inciso III do art. 62, alterar o art. 75-D e acrescentar o art. 75-F à CLT. 

A proposta tem como objetivo obrigar o empregador a fornecer e manter os equipamentos e a infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho em regime de teletrabalho, ressalvado o disposto em acordo coletivo, bem como a reembolsar o empregado pelas despesas de energia elétrica, telefonia e internet. Prevê também que os empregados em regime de teletrabalho estarão sujeitos às normas relativas à jornada de trabalho dos trabalhadores em geral. 

Assim, conclui-se que a legislação sobre o teletrabalho no Brasil é insuficiente para regular e proteger os teletrabalhadores, onerando significativamente os gastos dos empregados ao prever que as obrigações com a aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada ao trabalho remoto, bem como reembolso de despesas, como energia e internet, serão negociadas e previstas em contrato escrito. 

Na seara trabalhista, de modo geral, não há como colocar empregadores e empregados em "pé de igualdade", pois, devido principalmente a necessidade de trabalhar e prover seu sustento e de sua família, o trabalhador irá aceitar as condições impostas pelo empregador.

*DÉBORA MACHADO ROCHA













- Bacharel em Direito pelo Centro Universitário UNA de Belo Horizonte/MG. 

Bacharel em Ciências Contábeis pela Faculdade de Ciências Contábeis e Administrativas Machado Sobrinho de Juiz de Fora/MG;

- Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela Faculdade Estácio de Sá de Juiz de Fora/MG

-. Pós-graduanda em Direito Previdenciário pela Faculdade Legale;

- Advogada trabalhista e previdenciária

Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

A "Rede", a “Nuvem", o Controle da Informação pela Lei


 Autor: Batuira  Rogério Meneghesso Lino(*)

Países do mundo inteiro estão normatizando o uso das informações de bancos de dados pelas empresas que os acessam. O regime de normas jurídicas, tal como o conhecemos, será suficiente a garantir nossa liberdade ? Ou estamos nos entregando, de modo voluntário, conscientemente ou inconscientemente, a um novo (e talvez definitivo) Leviatã ?   

"A informação é a fonte do poder" (autor desconhecido)

"Nada de grandioso entra na vida dos mortais sem uma maldição" (Sófocles, 497 ou 495 a.C)

".... o Progresso e a Ruína são duas faces da mesma medalha; ambas resultam da superstição, não da fé” (Hanna Arendt, “Origens do Totalitarismo", Cia. das Letras, 2012 – 15ª reimpressão, 2020 – p.12)

 

Nos primeiros dias de aula na faculdade de Direito aprendemos, grosseiramente falando, que o direito (e, consequentemente, a lei, norma jurídica) é uma criação humana destinada a regular e organizar a vida em sociedade, sem o que os homens viveriam na barbárie sendo impossível a convivência social.

No dizer de Durkhein: "a sociedade sem o direito não subsistiria, seria anárquica, teria o seu fim. O direito é a grande coluna que sustenta a sociedade. Criado pelo homem, para corrigir sua imperfeição, o direito apresenta um grande esforço para adaptar o mundo exterior às suas necessidades de vida." ([1])

Aprendemos, também, que a Lei caminha sempre a reboque das mudanças de comportamento social e cultural da humanidade, de modo que acaba sempre por regular, com algum atraso, as relações sociais que demandem a intervenção do Direito para "pacificá-las".

Do final da primeira metade do último século a nossos dias, porém, uma enorme transformação ocorreu em razão da criação de máquinas destinadas a executar cálculos rapidamente ("computador eletromecânico") as quais evoluíram para os computadores analógicos e depois para os digitais ([2]).

Essas máquinas têm a capacidade de processar milhões de dados em um picossegundo (equivalente a um trilionésimo de segundo), analisando-os, comparando-os,  selecionando-os e agrupando-os, tendo elas sido conectadas entre si, criando-se então a "rede mundial de computadores" conhecida pelo prefixo WWW (World Wide Web), popularmente chamada de "Rede".

A elas vieram juntar-se as máquinas de uso doméstico e pessoal que são a interface de comunicação humana com esse banco de dados armazenado em supercomputadores e cujas informações estão ao alcance do dedo de qualquer cidadão, valendo acrescentar que a velocidade de processamento de dados e informações possibilitou a criação de aplicativos de comunicação virtual entre pessoas, independente da distância que as separe dentro do planeta.

E tudo, aparentemente, "de graça" já que a conta é paga pelos anunciantes dos sítios de Internet. Esses anunciantes, por sua vez, têm acesso aos dados pessoais dos usuários que os fornecem consciente ou inconscientemente, pois um simples "clique" no botão "ACEITO", que aparece em sítios das mais diferentes empresas (de notícias à venda de produtos), autoriza a utilização dos dados pessoais do usuário, além de permitir a instalação de "cookies" que são pequenos arquivos que se instalam em seu computador, tablet ou celular, através dos quais o respectivo comportamento passa a ser monitorado. Isto sem mencionar situações mais prosaicas, tais como a das informações pessoais que se fornece, por exemplo, na Drogaria e no comércio em geral, para fazer o famigerado "cadastro", sem o qual a pessoa "não existe".

A "Rede" foi criada há 30 anos (1990) ganhando dimensão planetária nos últimos 10 anos graças, principalmente, à proliferação dos smart phones, que parecem ter-se tornado um apêndice do corpo humano da quase absoluta maioria das pessoas, mundo afora, especialmente em razão da criação das "redes sociais", que fascinam de crianças a adultos.

Essas mudanças tecnológicas e de comportamento humano resultaram em profundas alterações sociais, que vão desde os hábitos de consumo, às relações pessoais, inclusive amorosas, até a discussão política, tendo se disseminado na "Rede" as "fake news" sobre assuntos os mais diversos que vão desde questões de saúde às de política mundial, havendo aplicativos capazes de forjar discursos de pessoas, colocando em sua boca, coisas que jamais disseram.

Pois bem, com toda a velocidade dessas mudanças, a distância entre a realidade social e a Lei aumentou exponencialmente, visto que o legislador não consegue acompanhá-las e só muito recentemente passou-se a regular o uso das informações coletadas pela "Rede", visando proteger a individualidade e a liberdade das pessoas.

No Brasil, a Lei 12.965 de 23/04/2014 criou o "marco civil da Internet" e mais recentemente a Lei 13.709/2018, com redação alterada pela Lei 13.853/2019, a chamada "Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)" destinam-se a regular o uso e compartilhamento de dados obtidos via Internet.

A LGPD tem dispositivos já em vigor e outros que só terão vigência a partir de agosto de 2021. Muito genericamente falando, essa norma legal traça os limites de utilização de dados pessoais que caem na "Rede", estabelecendo regras de compliance para as empresas detentoras dos dados (operadoras e controladoras) e fixando pesadas multas a quem divulgue dados irregularmente, por exemplo, sem a prévia autorização escrita ou inequívoca  de seu titular além dos demais casos estabelecidos no artigo 7º, seus incisos e parágrafos da LGPD.

O "vazamento" de dados acarreta a responsabilidade civil do operador e do controlador dos dados além de ser punível administrativamente, sendo a culpa tratada quase objetivamente, embora com presunção juris tantum (ou seja, presunção que admite prova em contrário), observadas as exceções estabelecidas no artigo 43, I a III, cujos incisos I e II estabelecem o ônus de provar negativamente ("prova diabólica"), além do que o artigo 42, § 2º, admite a inversão do ônus da prova o que, quase sempre, resulta na necessidade de produção de prova negativa, também ([3]).

E aí chegamos ao dilema do distanciamento entre a realidade e a norma que pretende discipliná-la: como antes referido, a velocidade do avanço da tecnologia jamais foi tão rápido como nos dias que correm. A situação só encontra parâmetro na ficção científica a qual, aliás, está sendo ultrapassada rapidamente pela realidade.

Como controlar a utilização de dados quando um simples relógio eletrônico de pulso, consegue monitorar seus batimentos cardíacos (fazendo eletrocardiograma instantâneo), a saturação de seu oxigênio no sangue,  sua movimentação e localização e suas preferências musicais, transmitindo tudo para seu celular via "nuvem"? Como controlar essa utilização quando os computadores e demais aparelhos eletrônicos estão cada vez mais conectados na mesma "nuvem", armazenando seus dados com sua autorização expressa ou tácita, esta pela ânsia de estar "update" com os aplicativos e as “redes sociais”, que só são acessíveis mediante a escolha da opção "aceito", cujas condições contratuais ninguém se dá ao trabalho de ler e nem interessa ?

A conexão na "nuvem" está se ampliando de tal forma que os servidores privados, seja o harddisk instalado em seu micro doméstico, seja o harddisk instalado nos servidores do seu local de trabalho, estão ficando totalmente obsoletos.

Quem controla a "nuvem"? Onde ela está fisicamente?

Essas são questões básicas, irrespondíveis. A "Rede" (nome bastante sugestivo, aliás), captura informações a todo instante, quando circulam pela "nuvem", independente da vontade de quem quer que seja, e do mais rigoroso cuidado que os "operadores" e "controladores" possam exercer sobre o sigilo de dados que manuseiam.

E não estou tratando aqui de "hackers", mas do próprio sistema de transmissão e processamento de dados na "nuvem", que hoje abrange, inclusive, serviços de comunicação telefônica.

A "Rede", através da "nuvem", tem o controle cada dia mais absoluto sobre as pessoas. É o novo Leviatã [4]. Porém, não um soberano de carne e osso, como pensado por Hobbes, mas um ser sem rosto, sem identidade, incorpóreo, que controla a tudo e a todos que se submetem à servidão voluntária ([5]) de um modo jamais imaginado por De La Boétie (1530 – 1563) e, talvez, somente por alguns escritores de ficção científica, da segunda metade do século XX.

Essa, a meu ver, á a realidade social que nenhuma lei será capaz de regular. Os conceitos de liberdade individual e de controle social através do império da Lei estão fadados, em curtíssimo prazo, a desaparecer, com quebra de todo o arcabouço construído a partir da Revolução Francesa, num "admirável mundo novo" que quem viver verá.

P.S.: 

A respeito dos supercomputadores, a quem se interessar, recomendo a leitura de dois contos, curtíssimos, de ficção científica: "A Resposta" (disponível in https://www.blogs.unicamp.br/100nexos/2007/09/30/resposta-de-frederic-brown-1954/) e os  "9 bilhões de nomes de Deus" 

(disponível inhttps://nuhtaradahab.wordpress.com/2008/01/04/arthur-c-clarke-conto-os-nove-bilhoes-de-nomes-de-deus/) e, principalmente, o documentário em cartaz na Netflix, "O Dilema das Redes".

REFERÊNCIAS

[1] DURKHEIM, Émile, As regras do método sociológico, São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1960, citado por Wanessa Mota Freitas Fortes, no artigo “Sociedade, direito e controle social”, in Revista Âmbito Jurídico

https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-82/sociedade-direito-e-controle-social/#:~:text=3.- ,Instrumentos%20de%20controle%20social,e%2C%20obviamente%2C%20o%20Direito.

"Art. 42. O controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo.

§ 1º A fim de assegurar a efetiva indenização ao titular dos dados:

I - o operador responde solidariamente pelos danos causados pelo tratamento quando descumprir as obrigações da legislação de proteção de dados ou quando não tiver seguido as instruções lícitas do controlador, hipótese em que o operador equipara-se ao controlador, salvo nos casos de exclusão previstos no art. 43 desta Lei;

II - os controladores que estiverem diretamente envolvidos no tratamento do qual decorreram danos ao titular dos dados respondem solidariamente, salvo nos casos de exclusão previstos no art. 43 desta Lei.

§ 2º O juiz, no processo civil, poderá inverter o ônus da prova a favor do titular dos dados quando, a seu juízo, for verossímil a alegação, houver hipossuficiência para fins de produção de prova ou quando a produção de prova pelo titular resultar-lhe excessivamente onerosa.

§ 3º As ações de reparação por danos coletivos que tenham por objeto a responsabilização nos termos do caput deste artigo podem ser exercidas coletivamente em juízo, observado o disposto na legislação pertinente.

§ 4º Aquele que reparar o dano ao titular tem direito de regresso contra os demais responsáveis, na medida de sua participação no evento danoso."

"Art. 43. Os agentes de tratamento só não serão responsabilizados quando provarem:

I - que não realizaram o tratamento de dados pessoais que lhes é atribuído;

II - que, embora tenham realizado o tratamento de dados pessoais que lhes é atribuído, não houve violação à legislação de proteção de dados; ou

III - que o dano é decorrente de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiro."

 [4] Hobbes, Thomas -  Leviatã também diz respeito a obra do cientista político e jusnaturalista Thomas Hobbes (Malmesbury, 5 de abril de 1588 — Hardwick Hall, 4 de dezembro de 1679). Em sua obra, Hobbes afirmava que a "guerra de todos contra todos" (Bellum omnium contra omnes) que caracteriza o então "estado de natureza" só poderia ser superada por um governo central e autoritário. O governo central seria uma espécie de monstro - o Leviatã - que concentraria todo o poder em torno de si, e ordenando todas as decisões da sociedade (https://pt.wikipedia.org/wiki/Leviat%C3%A3)

 [5] Em sua obra Discurso sobre a Servidão Voluntária, La Boétie analisa a relação de subordinação existente entre o soberano e seus súditos num governo tirânico. Nesse sentido, o autor enxerga a disparidade entre a unicidade da figura do tirano e o número de súditos, os quais possuindo a mesma quantidade de poder que o déspota e, consequentemente, tendo seu direito natural à liberdade cerceada. O poder do tirano, por sua vez, aumenta progressivamente à medida que seus servos sustentam a sua condição subserviente. Conforme afirma La Boétie, há três espécies de tiranos: o primeiro acede ao poder por meio do voto, o segundo pelas armas e o terceiro pela sucessão.

 *BATUIRA ROGÉRIO MENEGHESSO LINO









-Advogado em São Paulo;

-Graduado em 1972 pela USP;

-Atuando na área de consultivo e contencioso cível;

-É sócio do escritório Lino, Beraldi e Belluzzo Advogados. 


Nota do Editor:
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