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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Reflexões sobre Filiação

 Autor: Sergio Luiz Pereira Leite(*)

Nossa legislação civil foi recentemente modificada. Com a edição da Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002, que veio a substituir o Código Civil de 1916, que teve sua vigência por quase um século.

Se considerarmos a dinâmica social nesse último século, poderemos constatar a imensa variedade de situações que tomaram rumos absolutamente opostos ao daquele tempo.

Sobre o tema filiação o Código derrogado previa hipóteses que hoje nem se cogitam, como, vg, a expressão " filhos legítimos". A Constituição de 1988 veio trazer, com cores ainda mais berrantes, a necessidade de se adequar a lei civil à realidade brasileira. E assim se fez, não com remendos ao texto anterior, mas sim através de um conselho de notáveis que se debruçou sobre isso e fez criar a novo Codex substantivo brasileiro.

Porque não havia outra forma mais adequada, a não ser refazer, com as necessárias adequações, o texto legal. E existem artigos na nova legislação sem qualquer correspondência com a anterior, porque realmente algo de novo veio a lume.

Não podemos nos esquecer que o Código Civil de 1916 tratava de uma sociedade patriarcal, onde a condição feminina não permitia voto, a vontade da mulher carecia da anuência marital e outras situações que hoje nem mesmo acreditamos que fossem possíveis.

Dissemos, alhueres, que o Brasil de 1916 era uma sociedade baseada na agricultura, basicamente nas lavouras de café e de cana de açúcar. Também não haviam transcorrido 30 anos da Abolição da Escravatura onde a mão de obra barata dos escravos não mais existia.

E esse código derrogado resistiu a inúmeros textos constitucionais, mas não ao de 1988, que trouxe para a sociedade de então, recentemente livre do regime militar, uma tônica mais realista e atual aos direitos fundamentais de seus cidadãos.

Voltando ao tema, antes dessa constituição, os brasileiros tinham filhos legítimos e não legítimos, estes muitas vezes fruto de relações adulterinas entre o senhor e suas escravas, que eram criados pelo pai como bastardos.

Em boa hora tivemos, no texto constitucional e na lei civil, a unicidade sem distinção das relações de parentesco, como sendo os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por doção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

O artigo 1.596 acima mencionado, foi redigido para se conformar com a norma constitucional (§ 6º do artigo 227). Aliás, foi apenas reproduzido. Dessa maneira, não mais haviam distinções entre os filhos, havidos eles ou não de uma relação de casamento.

O texto constitucional em vigor habilita-se a consagrar o princípio da isonomia entre os filhos, ao pretender estabelecer um novo perfil na filiação, de completa igualdade entre todas as antigas classes sociais de perfilhação, trazendo a prole para um único e idêntico degrau de tratamento, e ao tentar derrogar quaisquer disposições legais que ainda ousassem ordenar em sentido contrário para diferenciar a descendência dos pais. Qualquer movimento de distinção dos filhos representaria, como diz Luiz Edson Fachin, um passo na contramão do Estatuto, cuja gênese impõe um tratamento unitário aos filhos credores de proteção integral contra quaisquer designações discriminatórias.

Como preleciona Rolf Madaleno, deveriam desaparecer da legislação brasileira a distinção discriminatória, com a equalização constitucional da filiação, espancados os conceitos espúrios de filiação legítima e ilegítima, quando a sorte dos filhos dependia do vínculo matrimonial dos seus pais.

Dessa maneira, tendo a Carta Federal de 1988 recepcionado o princípio único da dignidade da pessoa humana, de nova dimensão social e jurídica, inclusive sob a sua concepção cultural, para também amparar, ao menos por ora apenas na versão doutrinária e jurisprudencial, a filiação da afeição e não apenas a da verdade biológica.

O artigo 20 do Estatuto da Criança e do Adolescente, embora reconheça que os filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, têm os mesmos direitos e qualificações, ficando proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação, ainda assim não desapareceu totalmente o preconceito social, pois continuam esses dispositivos mantendo uma classificação de acordo com o caráter matrimonial ou extramatrimonial da filiação, ou se a perfilhação advém dos vínculos de adoção.

Portanto, segue existindo uma clara distinção entre filhos conjugais e extraconjugais, cujas qualificações diferenciadas subsistem no texto legal e estão longe de apenas balizar diferentes realidades fáticas, pois até pouco tempo, ainda antes do advento da Lei n. 13.112/2015, que permitiu à mulher em igualdade de condições, proceder ao registro de nascimento do filho, dispensando a autorização do pai, continuavam sendo privilegiados pela presunção de paternidade os filhos do casamento, cujo benefício do registro materno não gozavam os filhos das relações extramatrimoniais, pois estes ainda dependiam do comparecimento do pai no ato registral, ou de seu expresso reconhecimento parental, nos termos do artigo 1.609 do Código Civil.

A criança nascida durante o casamento é presumida como filha do marido, razão pela qual a mulher casada podia comparecer sozinha para registrar seu filho, constando do assento de nascimento o nome do seu marido que a lei presume, por força da coabitação matrimonial, que seja o pai da criança.

Para êxito do registro materno da filiação conjugal, a esposa deveria exibir a certidão de casamento atualizada que comprovasse a existência do vínculo conjugal à época do nascimento da criança, ou, então, que o infante nasceu antes de completados trezentos dias da dissolução da sociedade conjugal.

Também existe presunção de paternidade na procriação medicamente assistida heteróloga, onde o material genético é doado por terceiro, com expressa autorização do marido ou companheiro para que sua esposa ou companheira seja com ele fecundada, nesta hipótese o pai da criança será o marido e não o doador, sobrepondo-se a verdade registral ou socioafetiva sobre a verdade biológica.

Julie Cristine Delinski bem identifica uma nova estrutura da família brasileira que passa a dar maior importância aos laços afetivos, e aduz já não ser suficiente a descendência genética, ou civil, sendo fundamental para a família atual a integração dos pais e filhos através do sublime sentimento da afeição.

Acresce possuírem a paternidade e a maternidade um significado mais profundo do que a verdade biológica, onde o zelo, o amor filial e a natural dedicação ao filho revelam uma verdade afetiva, um vínculo de filiação construído pelo livre-desejo de atuar em interação entre pai, mãe e filho do coração, formando verdadeiros laços de afeto, nem sempre presentes na filiação biológica, até porque a filiação real não é a biológica, e sim cultural, fruto dos vínculos e das relações de sentimento cultivados durante a convivência com a criança e o adolescente.

Essa é a coerente visão defendida por José Bernardo Ramos Boeira quando menciona que: "A própria modificação na concepção jurídica de família conduz, necessariamente, a uma alteração na ordem jurídica da filiação, em que a paternidade socioafetiva deverá ocupar posição de destaque, sobretudo para solução de conflitos de paternidade."

Não obstante a codificação em vigor não reconheça a filiação socioafetiva, inquestionavelmente a jurisprudência dos pretórios brasileiros vem paulatina e reiteradamente prestigiando a prevalência da chamada posse do estado de filho, representando em essência o substrato fático da verdadeira e única filiação, sustentada no amor e no desejo de ser pai ou de ser mãe, em suma, de estabelecer espontaneamente os vínculos da cristalina relação filial.

A noção de posse do estado de filho vem recebendo abrigo nas reformas do direito comparado, o qual não estabelece os vínculos parentais com o nascimento, mas sim na vontade de ser genitor, e esse desejo é sedimentado no terreno da afetividade, e põe em xeque tanto a verdade jurídica como a certeza científica no estabelecimento da filiação.

O real valor jurídico está na verdade afetiva e jamais sustentada na ascendência genética, porque essa, quando desligada do afeto e da convivência, apenas representa um efeito da natureza, quase sempre fruto de um indesejado acaso, obra de um indesejado descuido e da pronta rejeição. Não podem ser considerados genitores pessoas que nunca quiseram exercer as funções de pai ou de mãe, e sob todos os modos e ações se desvinculam dos efeitos sociais, morais, pessoais e materiais da relação natural de filiação.

A filiação consanguínea deve coexistir com o vínculo afetivo, pois com ele se completa a relação parental. Não há como aceitar uma relação de filiação apenas biológica sem ser afetiva, externada quando o filho é acolhido pelos pais que assumem plenamente suas funções inerentes ao poder familiar e reguladas pelos artigos 1.634 e 1.690 do Código Civil.

Mas não deixará de ser genitor aquele ascendente com temperamento mais frio, menos afetuoso e mais distanciado por decorrência de sua personalidade, fruto da construção de seu caráter e do ambiente de desenvolvimento de sua educação e formação familiar, mas que não deixou de se fazer presente na vida, direção, criação e educação do filho.

Em contrapartida, não pode ser considerado genitor o ascendente biológico da mera concepção, tão só porque forneceu o material genético para o nascimento do filho que nunca desejou criar e pelo qual nunca zelou.

Lembra Maria Berenice Dias existir um viés ético na consagração da filiação socioafetiva, a qual tem servido de fundamento para vedar as tentativas processuais de desconstituição do registro de nascimento, quando de forma espontânea uma pessoa registra como seu filho alguém que sabe não ser o pai consanguíneo, na chamada adoção à brasileira.

Muitas páginas poderiam adensar este ensaio, mas o aqui refletivo demonstra que, paulatinamente, nossas leis vão se atualizando e evoluindo com o conceito de filiação. Mesmo nos casos em que, muitas vezes, não se concorde.

*SERGIO LUIZ PEREIRA LEITE





-Advogado militante nas áreas cível e criminal na Comarca de Tietê, Estado de São Paulo.

 Nota do Editor:

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