A morte invadiu minha vida, assim como a de todos da terra, com uma pandemia vinda da china, cujo nome é COVID 19. Ela veio como uma denúncia ao nosso modo de acontecer contemporâneo e poderia gerar reparações desse processo. Mas ela se mostrou uma restauração da ordem anterior, trazendo de forma líquida uma cultura que vai deteriorando a globalização e as coexistências dos diversos modos de existência.
Criar mundos, modos, tempos e espaços, realidades; parece que isso virou ficção científica, mas pode ser um meio criador nas existências das diferenças que nos tornam humanos.
As frentes políticas se mostram máquinas poderosas, racistas machistas, homofóbicas, inflexíveis, fascistas, xenofóbicas, centralizadoras, psicopáticas, medrosas, ignorantes, violentas; nos desumanisando e nos impondo resistência em nos tornarmos de fato humanos.
O que é ser humano? E para que ou porque precisamos tomar consciência de que a potência humana veio para se transformar pela criação?
A partir da criação, podemos criar mais. Criar inúmeras formas de uma boa coexistência com as diferenças, assim criando realidades...
Por quê a inveja impera onde há tanta possibilidade de criação, invenção, expansão, onde há espaço para todas as singularidades? Qual é o desamparo em nós? Estamos aqui para virar humanos? E não aceitamos que sem o outro humano não somos nada, nem existiríamos? Desta forma, ainda atuamos como bebês... Que sintoma expressa tanto isso? Bebê que precisa do outro para virar sujeito humano, que sente que pensa que inventa ainda por si só (construindo pré-narcisismo). O bebê ainda não tem noção do outro como outro.
O que nos leva a ter tanta dificuldade em deixar a posição de um bebê? Entender, sentir que somos uma multidão singular, que se relaciona e precisa viver de um modo mais coletivo. Ser coletivo não é algo dado, mas está por vir e criar. A necessidade do sujeito emergir como um movimento que modifica o modo das coisas para assim fazer mais conexões, com a imprevisibilidade de novos saberes, trazendo novas conjunturas e elaborações políticas e humanas. Com intensidade, vontade, fé, paixão, com a força de afetação. Quem sabe desta forma se transformem as relações sociais como composição, mais do que competição. Necessitamos de formas diferentes de nos relacionar, para assim encontrarmos sentido para criar. Só descobrimos nas diferenças o quanto podemos ampliar, expandir, compor, inventar, amar, criar.
A criação nasce no amor, amor esse que traz desejo em ampliar o ser e não o ter para ocupar um lugar com direitos, culpas e deveres, territorializando o fluxo. Na demanda, esvazia-se o desejo.
Tornamo-nos territórios nos quais alguns tem uma bomba que extermina, assim como num jogo de vídeo game. Por isso, temos que estar alertas para que esses “deuses autoritários” não desejem medir mais ainda seus poderes, tornando-nos assim em desumanos com tal violência. Nomeio desumano tudo que priva um fluxo que já se iniciou no processo de tornarmo-nos humanos potentes. Nomeio inumano aquilo que pode ser um humano, algo que tem uma marca de humanidade onde só o afeto humaniza, mas precisa muito de um jogo com o outro em sua alteridade para ser.
Quanto menos nos atrelamos em modos fixos de existência, mais temos a capacidade de nos humanizarmos.
O que seria humanizar? Trago esse termo no sentido de capacidade de amar.
O demasiado imortal, que constrói uma política apoiada no poder, ainda não aceitou que é humano. Ele ainda pensa que a sua função no planeta é produzir mais ideais, evitando fluxos de desejos e gerando menos desejos e expansão, em direção à reprodução apenas dos mesmos valores.
Por que ao nascermos já somos inseridos numa competição, como se alguém fosse chegar num lugar diferente da morte? Ou então como se nos faltasse algo estrutural? Castração não é uma falha, mas sim abertura: discriminar e poder efetuar o desejo. Mas vivemos ou na escassez ou no excesso do que chamamos desejo. Desta forma, fica difícil criar sulcos de experiências que gerem duração, criação, história e amor. O desejo é criação, movimento, escolha, construção. Precisa-se assim do tempo para criar espaço e para habitar num corpo e numa vida em relação com o outro...Quando os tempos se alternam em ritmo e sintonia, há criação...
Acho interessante o que Winnicott diz; na alternância de presença e ausência de qualidade, afeto, dá-se a possibilidade da constituição de um sujeito. Assim, quando territorializamos os afetos: presença e ausência não se diferenciam mais, portanto, as máquinas trabalham, não há tempo, não há presença. O acontecimento fica congelado na alta produtividade do camelo, homo sapiens, que vai se tornando um programa tecnológico. Esse programa reduz o sapiens ao tecno. Jogo do “resta 1”. Neste apenas 1, não se cria, não se move, mas se reproduz em serie. Assim, ao invés da alma inventar outros modos de relação, ela se repete na tentativa de cada inumano reproduzir mais desumanos..
Estamos cansados de buscar a restauração desse modo tão desamoroso. Precisamos reparar o quanto estamos perdendo a oportunidade de criar e viver em diversos mundos vivos, em movimento, com mais castração, conceito do Freud, cujo o nome é horroroso.
Mas castrar é poder criar marca no conteúdo a ser afetado, escolhido, investido. Desse modo, a castração nos disponibiliza para a vida. Entretanto, uma força em mim escolhe, sem juízo de valores morais que muitas vezes traz as certezas mentirosas. Afinal, o movimento em si é a certeza, mesmo que percebamos a ambivalência tão intensa nesse movimento de pandemia e guerra que ainda vivemos, fruto do ideal de poucos que acham que o poder pode tudo. Podemos, por um outro lado, olhar pela perspectiva de que temos que escolher para não virarmos território, escolher com muito trabalho a não nos contaminarmos pelo ressentimento, para assim criar outros fluxos, quem sabe mais voltados à potência de criação, a procurar ter mais consciência de que somos coletivos. Não sobrevivemos sozinhos e cabe a cada singularidade poder renunciar, castrar o ideal: a crença estática, severa, de que individualmente nos bastamos.
Tudo tem se tornado uma imagem de consumo, que nos oferecem com estímulos para investir num movimento sintético para que mais possuamos do que sintamos.
A guerra é, infelizmente, uma condição humana. Como criarmos com isso? Com objetos transicionais, ou seja, os meios e não mais as finalidades e objetivos. Trazer a guerra como desafio, fomentando a possibilidade de modos de como lidar com a ambivalência da guerra em nós. Sair desse registro, desmisturar as ambivalências dos problemas rentáveis que produzem um esquecimento de si que se projeta sobre o mundo da bolha que administra a ausência como falta, cria a paranoia, procurando um adversário contra o qual irá medir forças.
Parece que precisamos perceber que o modo de escapar da captura pelo poder é acessar a natureza singular de nossa potência em tempo real, que nos convida a sermos fortes em recomeçar, não do assunto deixado ali onde estava. O recomeço sempre é outro, é inaudível, denuncia o que não adveio do passado e pega esse lapso como morada para sabotar cada vez mais os meios de consumo, em nome de uma sociedade que não tema o tempo para assim obter espaços.
Se aceitarmos a condição de sermos castrados, abertos para a alteridade, o encontro com o outro pode ser experimentado como potência de criação.
*FABIANA BENETTI
-Atendimento em consultório particular em São Paulo-Tel/what´s 11 985363035.
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