Para responder a esta questão é necessário fazer uma pequena digressão sobre filiação através da nossa legislação até 1988. Antes desse ano, a filiação possuía diversas denominações, de acordo com a situação de fato em que a criança era concebida.
A Constituição de 1988, em seu art. art. 227, § 6º, trouxe o princípio da igualdade absoluta entre os filhos, proibindo a discriminação em relação aos tipos de filiação, determinando, assim, que os filhos, independentemente de sua origem, merecem tutela equivalente diante da lei.
Sabemos que o vínculo biológico não garante a existência de vínculo afetivo, sendo este último resultado de uma construção familiar com base em uma convivência amorosa e responsável entre pais e filhos, independentemente de haver ou não vínculo biológico.
A valorização do afeto como principal elemento da relação familiar estabeleceu a filiação socioafetiva, que gera efeitos patrimoniais idênticos aos gerados pela filiação biológica.
A jurisprudência passou a reconhecer, como
prova de filiação socioafetiva, ou seja, filiação por outras origens, a posse de estado de filho, a qual gera a
filiação socioafetiva.
Maria Berenice Dias leciona que "a filiação socioafetiva assenta-se no reconhecimento da posse de estado de filho: a crença da condição de filho fundada em laços de afeto."[1]
Assim, em decorrência do reconhecimento da filiação socioafetiva, com base na posse de estado de filho, estabeleceu-se a igualdade de direitos da filiação consanguínea, com todos os efeitos pessoais e patrimoniais que lhe são legalmente pertinentes, dentre eles o direito a alimentos.
O direito a alimentos encontra amparo legal nos artigos 227 e 229 da Carta Magna de 1988, no Código Civil de 2002, em seus artigos 1.634, 1.694 e 1.695, como também no artigo 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
O reconhecimento da obrigação alimentar no âmbito da filiação socioafetiva possui respaldo no princípio da igualdade da filiação estabelecido pela Carta Maior, em seu art. 227, § 6º, o qual veda a discriminação de filiação, seja qual for a sua origem.
Para Maria Berenice Dias, o dever de alimento dos pais para com os filhos decorre do poder familiar, assim complementando:
Quanto mais se alarga o espectro das entidades familiares e se desdobram os conceitos de família e filiação, a obrigação alimentar adquire novos matizes. Daí o encargo alimentar quando reconhecida a existência de filiação sócio afetiva.[2]
Com o reconhecimento da filiação socioafetiva com base na posse do estado de filho, que nada mais é do que a transposição da realidade fática para a realidade jurídica, surge a obrigação alimentar, calcada na isonomia de direitos da filiação promulgada pela Carta Maior.
Assim
também reconhece enunciado do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM): "do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva decorrem todos os direitos
e deveres inerentes à autoridade parental".
Para Carlos
Roberto Gonçalves "quem assumir paternidade de uma criança, que não é filha
biológica, deve pagar pensão alimentícia"
No mesmo sentido, Rolf Madaleno assim se pronuncia:
Em linguagem clara, a obrigação alimentícia ou obrigação de sustento (de manutenção) consiste na fixação de
alimentos com base no poder familiar imposto, de maneira irrestrita, aos pais
(biológicos ou afetivos).
Este é, também, o entendimento de Maria Berenice Dias:
Quando se fala em
obrigação alimentar dos pais sempre se pensa no pai registral, que, no entanto,
nem sempre se identifica com o pai biológico. Como vem, cada vez mais, sendo
prestigiada a filiação socioafetiva - que, inclusive, prevalece sobre o vínculo
jurídico e o genético –, essa mudança também se reflete no dever de prestar
alimentos. Assim, deve alimentos quem desempenha as funções parentais.
Portanto, um dos efeitos do reconhecimento da filiação socioafetiva no âmbito patrimonial, é o direito a alimentos, isto é, o surgimento de obrigação alimentícia para com os filhos socioafetivos
Reconhecida a filiação socioafetiva e o direito a alimentos, surgiu um novo debate doutrinário: a possibilidade da multiparentalidade e do respectivo direito a alimentos.
Porém, a decisão histórica do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 898.060, pôs fim ao debate quando fixou tese de caráter inovador ao decidir que "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios"[7]
Com esta decisão, o STF introduziu no mundo jurídico a multiparentalidade, ou seja, caiu por terra a ideia de que uma pessoa só pode ter um pai e uma mãe, como também equiparou todos os tipos de vínculos entre pais e filhos:
Se o conceito de família não pode ser reduzido a modelos
padronizados, nem é lícita a hierarquização entre as diversas formas de
filiação, afigura-se necessário contemplar sob o âmbito jurídico todas as
formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (I) pela
presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais (como a fecundação
artificial homóloga ou a inseminação artificial heteróloga – art. 1.597, III a
V do Código Civil de 2002); (II) pela descendência biológica; ou (iii) pela
afetividade."
Em se tratando de multiparentalidade, não se pode negar que a decisão do STF trouxe um grande avanço no sentido de proteção do melhor interesse dos filhos, prevalecendo o direito aos alimentos, seja o alimentando pai registral, biológico ou afetivo.
Portanto, o direito a alimentos, no âmbito da filiação socioafetiva, que já se encontra consolidado na doutrina, vem trilhando, a passos largos, o mesmo caminho no terreno jurisprudencial, agora com novas possibilidades, diante do reconhecimento da multiparentalidade.
Neste sentido, a 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP decidiu, em dezembro de 2020, manter o pagamento de pensão alimentícia mesmo após exame de DNA confirmar que o homem não era pai biológico da criança. Conforme a decisão do colegiado, ele já teria criado um vínculo com o infante e, portanto, construído paternidade socioafetiva.
Em uma decisão mais recente, na Comarca Única de Coronel Freitas/SC, mesmo após exame de DNA negativo, o Juiz reconheceu a paternidade socioafetiva e determinou o pagamento de pensão alimentícia à criança.
Como se vê, tais decisões privilegiam não apenas o melhor interesse da criança como também a dignidade da pessoa humana, na medida em que procura refletir e proteger a realidade encontrada no cotidiano da vida familiar.
Portanto, respondendo ao questionamento inicial, conclui-se que, diante desse novo contexto familiar, onde a valorização do afeto foi capaz de consolidar uma filiação com base no amor e no respeito entre pais e filhos, independentemente da existência ou não de vínculo biológico, prevalece o direito aos alimentos, seja o alimentando pai registral, biológico ou afetivo, ou mesmo todos de uma só vez, cada um comparecendo com a sua cota parte.
REFERÊNCIAS
DIAS, Maria Berenice. Manual
Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p.401;
*JOSANE HOEHR LANDERDAHL DE ALBUQUERQUE
-Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB (1999);
-Pós-graduada em Direito Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina;
-Advogada inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Seção do Distrito Federal sob o nº 16.206;
-Exercício da advocacia na Justiça Federal, Justiça Comum e Juizado Especial nas áreas de Direito Civil, especialmente em Direito de Família e Direito do Consumidor;
Idioma: inglês e
-Advogada Sócia do Escritório Freitas, Landerdahl & Advogados Associados desde a sua fundação.
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