Autora: Fabiana Benetti(*)
Nesta reflexão, vou explorar algumas relações entre as ideias de trauma, acontecimento e duração.
Experimentação é pensamento com pulsação própria, autonomia com modo rizomático; é um conceito com vida afetiva no qual todos os afetos me atravessam. Não sou destinatário nem origem, vai para além do pessoal, narcísico, porque são todos os afetos que nos atravessam através de diversas experiências como uma vida impessoal que nos traz vitalidade em uma conjunção singular. Quando o pensamento se dissocia do desejo, o movimento do desejo fica morto, a força de afetação que capacita e mobiliza a potência de criação se esvazia.
Quando nos conectamos com a força desejante, como a força de uma multidão que traz a potência de invenção- na qual nossa vitalidade e pensamento são indissociáveis-, o acontecimento pode se apresentar como uma abertura para se criar um problema ou uma implicação, uma responsabilidade, um sentido de vida com força para criar sobre aquilo que escapa do conhecimento, mas que move. É assim como uma confiança que o mundo nos pede para nos entregarmos para a força que temos e que vem de dentro e de fora. Essa é a força que nos faz existir, arriscar, transformar, confiar; enfim, experimentar nossa potência. A partir daí, temos o desconhecido: a experimentação de descoberta e invenção enigmática que advém da ordem do inusitado, que não pode ser codificado, aquilo que foge, vai virando outra coisa. Não se está num tempo cronológico, mas sim num campo de composição das forças em uma certa duração. Os movimentos se abrem para o pensamento e afetividade trazendo capacidade com vitalidade de criação de mundos, sentidos, significações, fabulações, mitos, estórias, o que nos traz uma existência mais plástica com a capacidade de remodelar mundos, existências: assim, trazendo a nós razões para viver. O quanto o humano pode se compor é o quanto ele pode se criar. O humano é um ser de relação, um ser que se engancha de uma forma plástica, híbrida, cheia de afetos e pensamentos que criam razões para implicações que potencializam as experiências na vida.
Vamos refletir um pouco mais sobre as semelhanças e diferenças entre o que é trauma e o que é acontecimento. Enquanto rupturas, eles podem quase ser confundidos, mas o trauma dissocia, paralisa no tempo, pois esta apoiado numa causa e efeito, enquanto a natureza do acontecimento que trago nesse texto, amplia mundos pois não está reduzido às causas. Este irrompe e redezenha linhas de criação: essa é a diferença crucial entre um acontecimento que amplia e ganha território e no qual advém a criação e a outra que é o trauma, que rompe, dissocia: tudo está ali e está o tempo todo, mas você não está podendo ligar o afeto com novas representações. O tempo desse acontecimento ficou paralisado onde o sujeito atua de modo automático, sem afeto, como descarga pelo que se rompeu no trauma e ele não consegue elaborar e se inventar.
O sujeito no trauma se sente insensível às novas composições. Ante alguma ruptura, o afeto que foi sentido e a representação que não pôde alcançar cindiram e não criaram plasticidade para se ligarem a outros afetos. O trauma quebra a relação da experiência ocorrida com a realidade representativa, desta forma, "a testemunha” que seria necessária para validar a realidade desaparece, deixando um rastro de “efeito alucinógeno", no qual a percepção própria se vê sob dúvida. Posteriormente, cenas se repetem na vida do sujeito trazendo situações similares na tentativa de, através da repetição, ligar o pensamento com a vitalidade que traz movimento e pode criar conexões. O sujeito permanece no desamparo, necessitando de sustentação narcísica, porque está no tempo parado do trauma: ele pouco pode estar em relação com o problema, ou com o outro, com a alteridade...
O trauma é uma dissociação no ego e esse continente não pode ser habitado, assim, ele está paralisado num tempo interrompido. À toda hora, o trauma sinaliza que está ali, através dos sintomas e atuações, trazendo a experiência do presente vivido mais próximo possível do que é conhecido, na tentativa de repetir aquilo que ficou cindido entre o pensamento e as emoções. Não houve aparato psíquico suficiente para amparar o colapso na experimentação do vivido naquele tempo, sem se dar a possibilidade para o sujeito simbolizar e criar com o outro. Desta forma, a pessoa se paralisa no tempo.
No trauma, o fato e a ficção estão cindidos, não há confiança no tempo de acontecimento, o tempo foi paralisado, não dá mais para confabular com as diferenças. A alteridade vira ameaça, perde-se a confiança na força da vida que traz os encontros e as diversas composições. O trauma é o tempo parado, quebra no movimento de experimentação e construção. Desta forma, o evento que gerou o trauma pede um testemunho, um limiar que abra possibilidades de criar um simbólico, uma comunicação, uma relação com os diferentes modos de vida, para assim trazer o movimento e a duração do poder lidar-com, criar-com. O trauma é algo que tira você da vida, distancia você de sua natureza e da capacidade de se conectar e se afetar. Ele é algo que quebra o ego do eu. Ou seja: o trauma está sempre ali, enchendo o eu de cisão e solidão. Ele nos aponta, através das amarras do tempo automático, que há algo ali para ser vivido, inventado, elaborado. Nesse tempo do automatismo do trauma, fica congelada nossa natureza que carrega uma multiplicidade de potências e produções de novos valores e novas maneiras de sonhar e existir.
Diferentemente, o acontecimento ou o devir é transformador. É sobre algo que acontece no encontro no qual você ganha conexões e experimentações que possibilitam a invenção de novos signos, tempos e processos. São devires ou maneiras de desmontar o modelo vigente que tenta padronizar e hierarquizar o que é vivo, desqualificando as vidas singulares.
Assim, o que pode trazer a gente ao simbólico é um encontro, um enganchamento, um acontecimento que pode trazer um devir que tem a ver com um fazer-com, estar em relação com algo que me conecta sem ser de forma subjetiva, muito menos identificativa; mais do que isso, há uma tonalidade afetiva de movimentos, de uma obra ou iniciativa que compõe meu corpo e alma e que aumenta minha força de existir. O devir é um encontro com algo que acontece no corpo, inventa afetos e composições, algo que diferencia você de você mesmo. Diferenciar aquilo que você tinha como uma perspectiva e afeto e transformar em outra coisa que modifica a estrutura, que traz esse acontecimento; isto porque há um encontro sem filiação, há a presença, há aquilo que me atravessa e me move ao fazer-com. O "ficar com o problema" é uma implicação corpo a corpo, é algo intrínseco ao conhecimento e que cria território em mim.
Um acontecimento traz o devir que vem com algo e pede composição e que diferencia você de você mesmo, que talvez faça você se questionar para além de toda uma referência histórica familiar, política, ética, estética. Aquilo que faz você ser convidado a ser parte da história. E isso é possível junto com os outros modos de existência, dizendo sim para as composições que trazem implicações e problemas que inventam mais modos de vida.
Habitar o tempo de kairos, o tempo quando se dá aquela realidade do encontro: você tem um encontro com um livro, você tem um encontro com uma música, você tem encontro com um animal, com uma lembrança, com uma causa, com alguém, você tem uma composição que deixa você diferenciado, você tem um encontro a partir do qual você pode pensar sobre outras coisas, você pode se debruçar sobre outras experiências e a partir daí olhar aquilo que não está prescrito: um devir, um "além do homem". Isto acontece quando saímos do nosso antropocentrismo apoiado na linguagem humana e que também recalca nossa animalidade, nos deixando com a ilusão de que somos seres superiores aos demais modos vivos, ao custo mesmo de perdermos o foco na vida quando carregamos a culpa, arrogância, ressentimento, não aceitação ao mundo, transcendência e desvitalização.
Quando o foco é a vida, buscamos formas diferenciadas de nos inventar e isso implica em conviver com os outros seres vivos de forma sensível, que se possa compostar e tecer estórias como prática de cuidado, pensamento e vivências colaborativas.
A duração é aquilo que você continua, é aquilo que se mantém vivo de inédito, que você mantém, que você cuida, onde você se apropria de algo, que você cria território em você mesmo se diferenciando. Então, duração não é de uma permanência identitária, mas é onde você acha de fato possível se sustentar porque a duração se dá onde eu cresça, numa dinâmica de vitalidade. Duração é o que é real; e o que é real é o corpo, é aquilo que faz o seu corpo continuar se movimentando, a duração é aquilo que está presente no tempo, é aquilo que te dá uma ideia de criação. Você está na compostagem daquilo que está vivendo, está sentindo, está transformando. O Presente é a duração, é a continuidade, é o cuidado sensível de tomar presente para si mesmo o processo no qual se envolve e se implica. A duração não é um tempo cronológico, lógico, automático. Ela traz o movimento que não se aplica em um saber disciplinar, mas sim em criar relações que relacionam mais relações para inventar novas formas de pensar, criar ideias, estórias, modos outros de se organizar.
Eu sou eu quando me abro para aquilo que me potencializa e não para atender a demanda do outro, mas sim para o que mais me diferencia como força criadora. Quanto mais me conecto com meu afeto e pensamento, mais experiencio território novo de vida em mim e na vida. Quando estou em composição com o outro vivo, algo acontece, porque parece que mundos se criam, se reconhecem e se expandem. Eu sou o encontro com o outro, sou eu e sou outro e o que está por vir desse coletivo em mim.
*FABIANA BENETTI
-Psicóloga, psicanalista, especialista em psicossomática e esquizoanalista;
-Psicóloga graduada pela Universidade Paulista(1997);
-Aprimoramento em Analises do comportamento aplicado(ABA) United Response ,Londres,2001;
-Pós Graduada em Cross Cultural Psychology pela Brunel University em Londres, 2002;
-Atendimento em consultório particular em São Paulo-Tel/what´s 11 985363035.
-Atendimento em consultório particular em São Paulo-Tel/what´s 11 985363035.
-Membro do Departamento de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae;e
-Agenciamento em Filosofia e Esquizoanálise com Peter Pál Pelbart e Luiz Fuganti.
Nota do Editor:
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