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domingo, 16 de julho de 2023

As justificativas para o fim dos Manicômios Judiciários no Brasil


 

Autora: Mariane Faria(*)


Atualmente, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça, em sua resolução CNJ n. 87/2023, até maio de 2024, todos os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), termo cunhado para reformulação da imagem do Manicômio Judiciário no Brasil, nos quais, devem fechar as portas, e o foco deste artigo é mais comumente falando sobre os manicômios judiciários que abriga em seus espaços a medida de segurança aquele sujeito com algum transtorno mental do qual cometeu um ato criminoso e que não pode ser responsabilizados por serem considerados inimputáveis ou semi - imputáveis.

O debate está correndo há tempos a respeito do término de todos os manicômios que já era previsto para 2019, e ainda permanece sem discussão para a população brasileira a viabilidade e possibilidades de uma sociedade sem os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), e, além disso, também não se discute as denúncias sobre a falta de estrutura e higiene de tais instituições que possa vir à luz. Então, para compreender melhor o porquê que deve ser fechados as instituições de HCTP, irá ser descorrido o que vem sendo feito e o que está barrando o fim dessas instuições totais, pois sua estrutura é a reafirmação de um ciclo contínuo de apagamento de corpos análogo ao cemitério dos vivos (alusão ao livro de Lima Barreto) em pleno século XXI.

Este debate vendo sendo pendurado desde 2001, e iniciou as mudanças com a lei n. 10.216/2001, que tem como propostas a internação como último recurso a ser utilizado, tendo em vista a meta principal de tratar os sujeitos em seu território para manter os vínculos sociofamiliares e afetivos e com a data da lei, 18 de Maio fica como um momento para se conscientizar o dia Nacional da Luta Antimanicomial, desde então, foi ganhando seus espaços com implementação de redes de saúde mental e atenção psicossocial para aqueles que têm algum transtorno.

Então, como já destacado, o texto é elucidar as vias que foram sendo construidas nesses 20 anos relacionado com a demora da transição que ficou apenas para aqueles que estão em cumprimento da pena em manicômios judiciários, espaços estes afastados da sociedade.

A RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), tem como sua proposta central a descentralização dos cuidados, tendo como objetivo desarticular a questão manicomial de exclusão, no qual não tem benefícios individuais e sociais, e em sua proposta fica claro que a: "criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes álcool e outras drogas, no âmbito do SUS, modelo que abarca espaços para internações para períodos determinados e justificados, além de cuidados psiquiátricos integrados à assistência social".

Em seu tentáculos, a RAPS encontra-se presente em vários níveis, incluindo na Atenção Básica do SUS, onde estão localizadas as chamadas “portas de entrada” para os serviços disponibilizados, como as Unidades Básicas de Saúde (UBS). A nível especializado, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) substitutivos à internação em instituições fechadas, no qual assume um campo de referência em modalidades de tratamento intensivo e comunitário para pessoas em sofrimento psíquico, logo, possuem uma configuração voltada para um acompanhamento de longo prazo (BRASIL, 2004, p. 13).

Como também faz parte das estratégias de desinstitucionalização dos manicômios pela RAPS que são os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) que são moradias inseridas na comunidade, destinadas a cuidar dos portadores de transtornos mentais crônicos com necessidade de cuidados de longa permanência, prioritariamente egressos de internações psiquiátricas e de hospitais de custódia, que não possuam suporte financeiro, social e/ou laços familiares que permitam outra forma de reinserção. (art. 77, portaria GM/MS n. 3.588/2017). Bem como, o Programa De Volta para Casa (PVC) (CFP, 2020).

Enquanto a transição não ocorreu definitivamente pela via do judiciário sendo este o fator que barra, aqueles que têm algum transtorno mental e que cometeu algum delito, nesses anos, houve em alguns lugares no território brasileiro a substituição da internação compulsória judicial por tratamento ambulatorial nos programas inovadores, como o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) em Minas Gerais, iniciado em 1999, em que a experiência do programa composto psicólogos, assistentes sociais judiciais, assistentes jurídicos e outros profissionais multidisciplinares, trabalham no foco numa maior integração do paciente que respondia a um processo criminal, com as medidas de cuidado no interior do próprio SUS.

Trabalho este iniciado a partir da autorização do juiz para acompanhar os casos em toda sua integralidade, salientando que nem todos possuíam um laudo de insanidade mental concluído, achando mais viável a visão na construção de um projeto de acompanhamento específico para cada caso (LIRA, 2022), que no RAPS tem a mesma proposta o projeto terapêutico singular.

Outra proposta pelo judiciário é o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (Paili) em 2009 apresentou a viabilidade, tendo o mesmo intuito com os programas acima, pautado de um acompanhamento ao longo prazo, oferecendo atenção integral e intersetorial da rede pública de assistência, com uma equipe multidisciplinar como suporte de acompanhamento para os indivíduos que estivessem respondendo a um processo penal (LIRA, 2022).

Tais projetos são pautados em uma atenção psicossocial do sujeito assistido, sem internação em instituição fechada. Partindo assim, do pressuposto da necessidade de investir na sociabilidade desses sujeitos com transtorno mental em conflito com a lei, mantendo o indivíduo na sua comunidade, apesar do delito cometido em sociedade, pois a ideia não é punir, mas tratar, em que os juízes possam se pautar em outras práticas de execução penal onde determinam a elaboração de projetos terapêuticos singulares para todos os internos, com o foco no tratamento em liberdade e a reintegração à comunidade, e isso já vem ocorrendo em pequenas escalas em determinados estados brasileiros e dando certo (SANTOS, FARIA e PINTO, 2014).

Devemos então compreender que a punição não traz benefícios àqueles que são acometidos por algum transtorno mental e que infringiu a lei, mas isso não quer dizer que os profissionais da saúde e social que compõe a equipe multidisciplinar tenham alguma ingenuidade para aqueles que não têm condições de viver em sociedade, eles irão permanecerem assistidos, e no final do artigo fica disponibilizado documentários como são estes sujeitos nas instituições totais pautadas na compreesão ultrapassada do direito e da psiquiátrica, que irá ser relatado um breve histórico abaixo.

O imaginário brasileiro sobre como deve conduzir tais penas a estas pessoas acometidas por transtornos mentais ainda é pautado pelos códigos penais brasileiros que refletem os ideários franceses e italianos de séculos passados, com atualizações superficiais das escolas penais que se coadunaram com as circunstâncias políticas de controle social das populações marginalizadas. Os discursos da antropologia criminal de Cesare Lombroso ganharam espaços nas discussões entre psiquiatras e juristas. Levando para mais tarde a área da frenologia, neste bojo, buscava dar conta da relação intrínseca entre os órgãos cerebrais, seu tamanho e associação com a conduta humana, traduzindo para um modelo de estudo anatômico do cérebro que evoluiu para a biologia com o "criminoso nato" (LIRA, 2022).

Pouco antes desses autores acima, houve às ideias de Philippe Pinel, que inseria a concepção de monomania, enquanto patologia mental, correlacionando entre crime e loucura que foram endossando a dinâmica médico-jurídico no século XIX, além de assentar a psiquiatria como instrumento de mediação entre os dois campos através dos exames de periculosidade, em que se "media" o mal em potencial em cada criminoso/paciente.

Tais teses citadas ao adentrar na realidade brasileira, dentro do contexto da época de pós-fim da escravidão e migração da Europa para fins de branqueamento no país, veio então, a preocupação da elite com esta composição étnica populacional, a miscigenação racial e a acentuação de eventos violentos, em função da crescente urbanização e industrialização nas grandes metrópoles brasileiras, que no inicio de 1900 os manicômios segregava pessoas que mais tarde houve o termo para esta segregação, os três "Ps": preto, pobre e psicótico, pois tal instituição tinha também como objetivo a limpeza urbana (SANTOS, FARIA e PINTO, 2014).

A história da psiquiatria organicista em classificar pessoas ditas como doentes mentais, àquelas que não se enquadravam com os comportamentos sociais considerados normais da época, mas para a nossa realidade, este saber sobre os outros trouxe um poder ao médico em que não podia ser questionado sua autoridade, trazendo consequências inimagináveis aos excluídos da sociedade, onde pessoas marginalizadas eram presas e levadas ao manicômio, casos como esses podem ser visto no Hospital Psiquiátrico de Barbacena com mais de 60 mil mortos, podendo encontrar ex-escravizados, imigrantes, pessoas com necessidades especiais, principalmente os da classe pobre por inúmeras razões como a de não estar no mercado de trabalho, por exemplo.

Além do mais, ficou evidenciado que a exclusão do sujeito “louco” compôs uma estrutura social ainda mais hostil para o “louco”, onde ele precisa ficar a margem da sociedade, pois eram e ainda são vistos como violentos, e com isso, não tendo também o direito à cidadania (MARSIGLIA, 1987).

Portanto, não restam dúvidas de que as instituições psiquiátricas - que tenham características asilares - são espaços que ao tentar corrigir o "Louco", se mostrou um espaço para a tortura, penas cruéis e outras formas de tratamentos desumanos ou degradantes que podem ocorrer, visto a existência de pessoas privadas de liberdade sob a responsabilidade de agentes públicos de saúde ou em exercício da função pública, nos casos dos hospitais psiquiátricos privados, que podem intencional ou omissivamente infligir grave sofrimento físico e psíquico com uma determinada finalidade (CFP, 2020).

Os HCTP que são compreendidas como instituições totais são organizadas para tentar proteger o restante da sociedade, entretanto é constituída por uma rotina fragmentada e atarefada, sobre olhares que podem punir quando o serviço ou comportamento não está dentro da ordem, tendo sua estrutura hierárquica que deixa claro as relações de poder e domínio, no qual tem consequências massificadoras dos internados (MOFFATT, 1982).

Ao dar entrada em uma instituição total o "louco" passa por um processo de despersonalização que ocorre após a admissão, em que o indivíduo é despido de sua aparência, é identificado, numerado, fotografado, são atribuídas roupas da instituição, ou seja, o sujeito não é mais um indivíduo, mas passa a ser mais um no sistema da instituição, obedecendo as regras da mesma e se não o fizer, será "reeducado" pela equipe dirigente ou pelos próprios internados, em que observam o comportamento do sujeito se está eficiente economicamente. E assim, lhe tiram as próprias memórias como sujeito e as substituem por memórias da instituição que visa à padronização e o controle dos sujeitos (MOFFATT, 1982).

Sendo assim, essa discussão ocorre há mais de 20 anos, e as estruturas para a mudança tem, não está em aberto o que irá acontecer com aqueles sujeitos de casos imediatistas, o que precisa é de uma conscientização para fortificar os debates e que tenha benefícios para todos.

REFÊRENCIAS

Indicação de filmes e Documentários: Bicho de Sete Cabeças, Em nome da Razão - O Holocausto Brasileiro, Holocausto Brasileiro : O impacto refletido na sociedade, Saúde Mental e Dignidade Humana, A casa dos Mortos;

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. A Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. 2. ed. rev. ampl. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2004;

Conselho Federal de Psicologia: Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Conselho Nacional do Ministério Público; Ministério Público do Trabalho. Impresso no Brasil: 2ª edição – Março 2020;

LIRA, H. G. de. Movimento antimanicomial e reforma psiquiátrica no Brasil: um olhar sobre a história da loucura e para o processo de desinstitucionalização no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho. 2022. 100 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) - Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022;

MARSIGLIA Giffoni Regina. Os cidadãos e os loucos no Brasil. A cidadania como progresso. In: Regina Marsiglia et. al. Saúde Mental e Cidadania. São Paulo: 1987;

MOFFATT, A. Psicoterapia do Oprimido. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1982;

SANTOS, A. L. de; FARIA F. R. de; D. de S PINTO. Por uma sociedade sem hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. Saúde-manguinhos, n.22. v.4, p. 1215–1230. Acesso em: <https://doi.org/10.1590/S0104-59702015000400004>.

*MARIANE MAIA BRASIL FARIA - CRP: 06/177423

















Psicóloga cínica graduada pela Universidade de Mogi das Cruzes (2021);

Em especialização em Psicopatologia pela CEEPS; e 

Atuação na abordagem da Psicánalise

Nota do Editor:

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