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segunda-feira, 17 de julho de 2023

Te vi na foto: o drama do reconhecimento fotográfico no Brasil


Autor: Eduardo Nascimento (*)
 

O erro persegue o ser humano. Vivemos a evitá-lo, mas, inexoravelmente, ele se nos apresenta. Dentro do sistema jurídico penal, o erro judicial é fantasma que nos assombra e, talvez pelas características próprias do Direito Penal, atuando como ultima ratio a representar o mais duro braço do Estado, o erro se impõe como verdadeira tragédia, justificando o brocardo "antes um culpado livre, a um inocente preso".

Neste contexto de evitação do erro que o reconhecimento fotográfico se apresenta como pedra no sapato dos operadores do Direito, pois, utilizado de forma equivocada, sem método e ao arrepio da própria lei, é instrumento de condenações injustas, materializando, assim, o erro judicial do qual se quer distância.

Inicialmente, há que se compreender que o reconhecimento fotográfico é um dos vários meios de investigação tomados pela polícia judiciária, todavia, não está expressamente previsto na legislação, já que o art. 226 do Código de Processo Penal faz menção à necessidade de reconhecimento de pessoa, não especificando se tal reconhecimento é pessoal ou por fotografia.

Da leitura dos incisos do art. 226 infere-se que o legislador pretendeu tratar unicamente do reconhecimento pessoal, pois, ao disciplinar o método de reconhecimento, traz que "a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança". Ora, se a pessoa será colocada ao lado de outras, por óbvio que o será de forma presencial e física, logo, a intenção do legislador era dispor sobre o reconhecimento pessoal, e não por fotografia. Em arremate, o texto legal nada diz sobre colocar uma fotografia uma ao lado de outras.

Portanto, em que pese o uso exaustivo do reconhecimento fotográfico como meio de investigação e identificação de criminosos pela polícia judiciária, não seria te todo errado suscitar sua ilegalidade, exatamente por ausência de previsão legal[1].

É de se questionar, inclusive, a utilização do reconhecimento fotográfico como meio primário de investigação e identificação, onde a vítima, frente aos famosos álbuns de fotografia da polícia, aponta de forma preliminar seu algoz. Ainda que mais tarde, identificado e localizado, o suspeito venha a ser reconhecido pessoalmente pela vítima, o reconhecimento fotográfico a partir de álbuns de fotografia mantidos pela polícia judiciária é algo que não se pode tolerar, na medida em que são desconhecidos os critérios para a seleção e inserção das fotografias no álbum, além de contaminar a percepção do reconhecedor, que parte da premissa de que todos que ali estão são criminosos.

O reconhecimento fotográfico, na forma como vem sendo realizado, dá margem para verdadeiros absurdos, como o caso do porteiro Paulo Alberto da Silva Costa, condenado por roubo pela Justiça fluminense e que, em maio de 2023, teve a condenação anulada pelo STJ (HC 769.783/RJ), porque lastrada em reconhecimento fotográfico.

Porém, o drama de Paulo Alberto, homem preto, pobre e periférico, que ficou preso de 2020 a 2023, não para por aí, pois ele responde a outros 61 processos criminais desde que teve sua fotografia retirada de redes sociais e incluídas no mural de suspeitos da delegacia de Belfort Roxo, onde passou a ser "reconhecido" por inúmeras vítimas de assalto[2].

Portanto, esta é a triste realidade dos reconhecimentos fotográficos que são utilizados em larga escala nas delegacias de polícias pelo país afora, fomentando o erro judicial e, consequentemente, prisões e condenações injustas.

Todavia, sensível à questão, o Superior Tribunal de Justiça vem, desde 2020, sedimentando entendimento no sentido de tornar nulas condenações fundamentadas em reconhecimentos fotográficos, mais ainda, anulam-se, também, decisões onde o reconhecimento pessoal foi realizado fora das balizas do art. 226 do Código dos Ritos.

Em julgamento de habeas corpus que se pode dizer histórico (HC nº 598.886/SC), o Ministro Rogério Schietti, do STJ, lançou nova interpretação ao art. 226 do CPP, "a fim de superar o entendimento, até então vigente, de que referido artigo constituiria "mera recomendação" e, como tal, não ensejaria nulidade da prova eventual descumprimento dos requisitos formais ali previstos."

A mera recomendação a que se refere o julgado, advém da partícula “se possível[3], contida no inciso II, do art. 226 do CPP, até então interpretada como faculdade das autoridades, seja policial ou judicial, no ato de reconhecimento. Vale dizer, portanto, que até o julgamento do HC 598.886/SC, se fosse possível colocar a pessoa a ser reconhecida ao lado de outras com aparência semelhante, assim deveria ser feito. Se não fosse, o reconhecimento seria válido da mesma forma.

Afastada a equivocada ideia de que o disposto na lei é mera recomendação, as autoridades vinculam-se, a partir de agora, irremediavelmente à estrita observância do disposto no art. 226, ou seja, o ato do reconhecimento deve ser precedido da descrição física a ser feita pelo reconhecedor (inciso I), assim como deve ser aquele que será reconhecido colocado junto a outras pessoas de aparência semelhante (inciso II).

Também por entendimento jurisprudencial, para além das formalidades do art. 226 do CPP, o reconhecimento fotográfico ou pessoal só será admitido quando ratificado em juízo (HC 640.868/RS), sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, e corroborado por outros meios de prova.

A validação do reconhecimento em juízo tem sido admitida pela Corte Superior de Justiça exatamente para não esvaziar de uma vez por todas o instituto do reconhecimento que, malgrado suas imperfeições, tem validade jurídica na medida que previsto em lei. A advertência, contudo, permanece, há ser realizado dentro do que dispõe o art. 226 do Código de Processo Penal e, isoladamente, não pode, jamais, servir à condenação.

A guinada de posicionamento levada a cabo pelo STJ levou a uma reavaliação total do método de reconhecimento, seja pessoal ou por fotografia, cujos efeitos se sentem.

Em março de 2022, a 1ª Vara Criminal de Nilópolis, no Rio de Janeiro, determinou a exclusão da foto de um homem negro do cadastro de suspeitos de uma delegacia. O magistrado, em linhas gerais, concluiu que somente mediante despacho fundamentado e com autorização e ciência do fotografado, é que a foto poderia compor o álbum de fotografias da delegacia[4].

Trata-se de um passo, ainda que modesto, no sentido de normatizar algo que, até então, era feito sem critério algum, ao livre arbítrio dos delegados de polícia.

Já o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 19 de dezembro de 2022, editou a Resolução nº 484, que “estabelece diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas em procedimentos e processos criminais e sua avaliação no âmbito do Poder Judiciário[5]”, outra clara e importante medida para regrar os reconhecimentos pessoais e fotográficos.

A Resolução 484/22 do CNJ define o que é o reconhecimento e lhe garante a natureza de prova irrepetível e, como prova que é, está sujeita ao contraditório e a ampla defesa, sob pena de nulidade. Garante ainda ao reconhecido, no ato de reconhecimento, a assistência de advogado.

Todavia, o art. 4º, ao fixar o procedimento de reconhecimento, quase que repete os termos do art. 226 do CPP, com algumas aparas.

Art. 4º - O reconhecimento será realizado preferencialmente pelo alinhamento presencial de pessoas e, em caso de impossibilidade devidamente justificada, pela apresentação de fotografias, observadas, em qualquer caso, as diretrizes da presente Resolução e do Código de Processo Penal

O termo "se possível" foi substituído pelo "preferencialmente" e o reconhecimento pessoal ganhou notória prevalência sobre o fotográfico, que continua sendo admitido, desde que devidamente justificada a impossibilidade de se realizar o presencial e, para ambos os casos, observadas as diretrizes da própria Resolução nº 484 e do CPP.

Em que pese as positivas mudanças na jurisprudência e a edição de resolução sobre o tema, casos de prisões preventivas e condenações injustas ainda se veem aqui e acolá sob o triste manto dos equivocados reconhecimentos, principalmente fotográficos.

Afora isso, temos um sem-número de casos represados que aguardam revisão, o que nos leva à triste percepção que o mal causado pelos reconhecimentos indevidos ainda persistirá por muito tempo.

De qualquer modo, os primeiros passos foram dados e, agora, trata-se de um constante exercício de vigília e mudança de mentalidade de todos os operadores do direito, que devem incorporar as diretrizes lançadas ao reconhecimento pessoal, fundamentadas no devido processo penal constitucional.

 

 REFERÊNCIAS


[1] Os Tribunais Superiores, contudo, têm admitido o reconhecimento fotográfico como meio idôneo de prova, sob certas condições.

 [2] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/10052023-STJ-ve-falha-grave-em-reconhecimento-fotografico-e-manda-soltar-porteiro-acusado-em-62-processos.aspx

[3] Art. 226, CPP, II - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

[5]https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4883#:~:text=Estabelece%20diretrizes%20para%20a%20realiza%C3%A7%C3%A3o,no%20%C3%A2mbito%20do%20Poder%20Judici%C3%A1rio.&text=DJe%2FCNJ%20n%C2%BA%20317%2F2022,4%2D6.; Acessado em 11/07/23

*EDUARDO NASCIMENTO












- Graduação em Direito pela Universidade Castelo Branco (1998);

-Mestre em Direito Penal pela PUC/SP (2016);

-Especialista em Direito Penal e Teoria do Delito pela Universidade de Salamanca – Espanha (2015); 

-Pós-Graduado em Direito Penal pela Universidade de Göttingen – (Fundamentos do Direito Penal Alemão) – Alemanha (2018); 

-Bacharel em História pela USP (1999) e

 Especialista em História pela UNICAMP .

Nota do Editor:

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