Autor: Eduardo Nascimento (*)
O erro persegue o ser humano. Vivemos a evitá-lo, mas, inexoravelmente, ele se nos apresenta. Dentro do sistema jurídico penal, o erro judicial é fantasma que nos assombra e, talvez pelas características próprias do Direito Penal, atuando como ultima ratio a representar o mais duro braço do Estado, o erro se impõe como verdadeira tragédia, justificando o brocardo "antes um culpado livre, a um inocente preso".
Neste contexto de evitação do erro que o reconhecimento fotográfico se apresenta como pedra no sapato dos operadores do Direito, pois, utilizado de forma equivocada, sem método e ao arrepio da própria lei, é instrumento de condenações injustas, materializando, assim, o erro judicial do qual se quer distância.
Inicialmente, há que se compreender que o reconhecimento fotográfico é um dos vários meios de investigação tomados pela polícia judiciária, todavia, não está expressamente previsto na legislação, já que o art. 226 do Código de Processo Penal faz menção à necessidade de reconhecimento de pessoa, não especificando se tal reconhecimento é pessoal ou por fotografia.
Da leitura dos incisos do art. 226 infere-se que o legislador pretendeu tratar unicamente do reconhecimento pessoal, pois, ao disciplinar o método de reconhecimento, traz que "a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança". Ora, se a pessoa será colocada ao lado de outras, por óbvio que o será de forma presencial e física, logo, a intenção do legislador era dispor sobre o reconhecimento pessoal, e não por fotografia. Em arremate, o texto legal nada diz sobre colocar uma fotografia uma ao lado de outras.
Portanto, em que pese o uso exaustivo do reconhecimento fotográfico como meio de investigação e identificação de criminosos pela polícia judiciária, não seria te todo errado suscitar sua ilegalidade, exatamente por ausência de previsão legal[1].
É de se questionar, inclusive, a utilização do reconhecimento fotográfico como meio primário de investigação e identificação, onde a vítima, frente aos famosos álbuns de fotografia da polícia, aponta de forma preliminar seu algoz. Ainda que mais tarde, identificado e localizado, o suspeito venha a ser reconhecido pessoalmente pela vítima, o reconhecimento fotográfico a partir de álbuns de fotografia mantidos pela polícia judiciária é algo que não se pode tolerar, na medida em que são desconhecidos os critérios para a seleção e inserção das fotografias no álbum, além de contaminar a percepção do reconhecedor, que parte da premissa de que todos que ali estão são criminosos.
O reconhecimento fotográfico, na forma como vem sendo realizado, dá margem para verdadeiros absurdos, como o caso do porteiro Paulo Alberto da Silva Costa, condenado por roubo pela Justiça fluminense e que, em maio de 2023, teve a condenação anulada pelo STJ (HC 769.783/RJ), porque lastrada em reconhecimento fotográfico.
Porém, o drama de Paulo Alberto, homem preto, pobre e periférico, que ficou preso de 2020 a 2023, não para por aí, pois ele responde a outros 61 processos criminais desde que teve sua fotografia retirada de redes sociais e incluídas no mural de suspeitos da delegacia de Belfort Roxo, onde passou a ser "reconhecido" por inúmeras vítimas de assalto[2].
Portanto, esta é a triste realidade dos reconhecimentos fotográficos que são utilizados em larga escala nas delegacias de polícias pelo país afora, fomentando o erro judicial e, consequentemente, prisões e condenações injustas.
Todavia, sensível à questão, o Superior Tribunal de Justiça vem, desde 2020, sedimentando entendimento no sentido de tornar nulas condenações fundamentadas em reconhecimentos fotográficos, mais ainda, anulam-se, também, decisões onde o reconhecimento pessoal foi realizado fora das balizas do art. 226 do Código dos Ritos.
Em
julgamento de habeas corpus que se pode dizer histórico (HC nº 598.886/SC),
o Ministro Rogério Schietti, do STJ, lançou nova interpretação ao art. 226 do
CPP, "a fim de superar o
entendimento, até então vigente, de que referido artigo constituiria "mera
recomendação" e, como tal, não ensejaria nulidade da prova eventual
descumprimento dos requisitos formais ali previstos."
A mera recomendação a que se
refere o julgado, advém da partícula “se possível”, contida no inciso II, do art. 226 do CPP, até
então interpretada como faculdade das autoridades, seja policial ou judicial,
no ato de reconhecimento. Vale dizer, portanto, que até o julgamento do HC
598.886/SC, se fosse possível colocar a pessoa a ser reconhecida ao lado de
outras com aparência semelhante, assim deveria ser feito. Se não fosse, o
reconhecimento seria válido da mesma forma.
Afastada a equivocada ideia de que o disposto na lei é mera recomendação, as autoridades vinculam-se, a partir de agora, irremediavelmente à estrita observância do disposto no art. 226, ou seja, o ato do reconhecimento deve ser precedido da descrição física a ser feita pelo reconhecedor (inciso I), assim como deve ser aquele que será reconhecido colocado junto a outras pessoas de aparência semelhante (inciso II).
Também por entendimento jurisprudencial, para além das formalidades do art. 226 do CPP, o reconhecimento fotográfico ou pessoal só será admitido quando ratificado em juízo (HC 640.868/RS), sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, e corroborado por outros meios de prova.
A validação do reconhecimento em juízo tem sido admitida pela Corte Superior de Justiça exatamente para não esvaziar de uma vez por todas o instituto do reconhecimento que, malgrado suas imperfeições, tem validade jurídica na medida que previsto em lei. A advertência, contudo, permanece, há ser realizado dentro do que dispõe o art. 226 do Código de Processo Penal e, isoladamente, não pode, jamais, servir à condenação.
A guinada de posicionamento levada a cabo pelo STJ levou a uma reavaliação total do método de reconhecimento, seja pessoal ou por fotografia, cujos efeitos se sentem.
Em março de 2022, a 1ª Vara Criminal de Nilópolis, no Rio de Janeiro, determinou a exclusão da foto de um homem negro do cadastro de suspeitos de uma delegacia. O magistrado, em linhas gerais, concluiu que somente mediante despacho fundamentado e com autorização e ciência do fotografado, é que a foto poderia compor o álbum de fotografias da delegacia[4].
Trata-se de um passo, ainda que modesto, no sentido de normatizar algo que, até então, era feito sem critério algum, ao livre arbítrio dos delegados de polícia.
Já o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 19 de dezembro de 2022, editou a Resolução nº 484, que “estabelece diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas em procedimentos e processos criminais e sua avaliação no âmbito do Poder Judiciário[5]”, outra clara e importante medida para regrar os reconhecimentos pessoais e fotográficos.
A Resolução 484/22 do CNJ define o que é o reconhecimento e lhe garante a natureza de prova irrepetível e, como prova que é, está sujeita ao contraditório e a ampla defesa, sob pena de nulidade. Garante ainda ao reconhecido, no ato de reconhecimento, a assistência de advogado.
Todavia, o art. 4º, ao fixar o procedimento de reconhecimento, quase que repete os termos do art. 226 do CPP, com algumas aparas.
Art. 4º - O
reconhecimento será realizado preferencialmente pelo alinhamento presencial de
pessoas e, em caso de impossibilidade devidamente justificada, pela
apresentação de fotografias, observadas, em qualquer caso, as diretrizes da
presente Resolução e do Código de Processo Penal
O
termo "se possível" foi substituído pelo "preferencialmente" e o reconhecimento
pessoal ganhou notória prevalência sobre o fotográfico, que continua sendo
admitido, desde que devidamente justificada a impossibilidade de se realizar o
presencial e, para ambos os casos, observadas as diretrizes da própria
Resolução nº 484 e do CPP.
Em
que pese as positivas mudanças na jurisprudência e a edição de resolução sobre
o tema, casos de prisões preventivas e condenações injustas ainda se veem aqui
e acolá sob o triste manto dos equivocados reconhecimentos, principalmente
fotográficos.
Afora
isso, temos um sem-número de casos represados que aguardam revisão, o que nos
leva à triste percepção que o mal causado pelos reconhecimentos indevidos ainda
persistirá por muito tempo.
De
qualquer modo, os primeiros passos foram dados e, agora, trata-se de um
constante exercício de vigília e mudança de mentalidade de todos os operadores
do direito, que devem incorporar as diretrizes lançadas ao reconhecimento
pessoal, fundamentadas no devido processo penal constitucional.
REFERÊNCIAS
Os Tribunais Superiores, contudo, têm admitido o
reconhecimento fotográfico como meio idôneo de prova, sob certas condições.
Nota do Editor:
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