Autor: Ellcio Santos(*)
No Estado democrático de direito o sistema normativo e a estrutura estatal devem reverberar conforme os preceitos vigentes na sua Constituição, o oposto, nada mais é que um elemento estranho, uma “coisa” inconstitucional.
A República
Federativa do Brasil, possui como principal instrumento normativo, a
Constituição de 1988, com viés voltado aos direitos e garantias fundamentais;
que de outra análise, do ponto de vista internacional seriam tratados como
direitos humanos, disciplinando, neste ponto, os rumos do Estado.
O respeito
aos direitos fundamentais, hoje, é tão cristalino, que o Poder Constituinte
reformador, reforçando a visão humanista da nossa constituição, editou a Emenda
Constitucional nº 45, de 2004, para incluir no art. 5º da Constituição de 1988,
o § 3º dispondo que os tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos que forem assentidos, em cada casa do Congresso Nacional, Câmara e Senado,
em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais.
Ainda
que tenhamos, na essência ou por emendas, uma constituição evidentemente voltada
aos direitos humanos, infelizmente, na prática, a teoria não se concretiza, por
exemplo, a situação degradante do sistema penal brasileiro. No entanto, esse "privilégio" não é somente nosso.
Entende-se,
respeitando a divergência, que o sistema prisional, ainda que dotado de muita
teoria, além de privar o individuo de sua liberdade, deveria retorná-lo ao convício
social. Contudo, sem observância dos direitos humanos isso é impossível.
Infringindo
os direitos fundamentais, ações violentas, como assassinatos, estupros, abusos
de autoridade e todo tipo de mazela são constantemente flagrados nos presídios do
mundo. Nos cárceres do Brasil essa chaga não é dissemelhada.
Em
vista desse cenário, na América Latina, a Corte Constitucional Colombiana, na
decisão SU-559, de 6 de novembro de 1997, enfrentando as situações graves e
sistemáticas de violação dos direitos fundamentais, decorrentes da própria estrutura
do Estado, criou uma técnica decisória denominada de Estado de coisas
inconstitucional.
Em
apertada síntese, a técnica empregada pela Corte Colombiana, passou a exigir uma
atuação coordenada de vários atores sociais, ou seja, o próprio Estado com sua estrutura,
para que adotassem as providências necessárias visando superar as graves e generalizadas
violações de vários direitos fundamentais, dentre eles a falta de condições do
sistema carcerário daquele país, em detrimento a dignidade pessoa humana.
Com
esse olhar, no Brasil, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), por meio da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF n. 347, buscou perante
o Supremo Tribunal Federal-STF, o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional
do sistema penitenciário brasileiro e, ainda, a adoção de medidas direcionadas à
reparação das gravíssimas lesões aos preceitos fundamentais insculpidos na nossa
Carta Magna, resultantes de condutas comissivas e omissivas do Estado.
Na
exordial, o PSOL narra a situação calamitosa e precária do sistema
penitenciário brasileiro, observando pontos cruciais como a superlotação,
estrutura dos presídios e a recorrente violação dos direitos fundamentais dos
presos no complexo e desestruturado sistema prisional brasileiro.
Cumpre
esclarecer, nesse sentido, ainda que a ação tenha sido ajuizada no ano de 2015,
no primeiro semestre de 2023, a Secretaria Nacional de Políticas Penais –
SENAPPEN, apresentou um levantamento de informações penitenciárias apontando que
a população prisional, homens e mulheres, em 30/06/2023 totalizavam 644.305
pessoas; sendo que a capacidade de vagas no mesmo período era de 481.835, ou
seja, um déficit de 162.470 vagas no Sistema Penitenciário. O Problema persiste!
Destarte,
o STF debruçando-se sobre o tema, no âmbito da ADPF n. 347 e, inovando juridicamente,
apoiando-se na norma vigente, na jurisprudência, bem como na temática abordada
pela Corte Constitucional Colombiana, deferiu o pedido de medida cautelar na
supracitada ADPF, reconhecendo no sistema carcerário brasileiro, um estado de
coisas inconstitucional, para posterior julgamento do mérito.
Nessa
senda, a Corte Suprema observou o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos, ratificado em nosso país por meio do Decreto nº 592, de 06 de julho
de 1992, dispondo no Artigo 9.3, que:
Art. 9.3. Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença. (grifo nosso)
Neste mesmo caminho, observou-se, também, o Artigo 7.5 da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, ao consagrar o Direito à liberdade pessoal, dispõe que:
7.5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. (grifo nosso)
Destas premissas, a maioria do Pleno do STF, buscando minimizar a mazela presente no sistema prisional brasileiro, determinou que fossem realizadas, em até noventa dias, audiências de custódia, bem como o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, considerando o momento da prisão.
O Conselho Nacional de Justiça – CNJ, considerando a ADPF 347, publicou a Resolução nº 213, de 15 de dezembro de 2015, dispondo que toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão, dentre outras providências.
Iniciado
em 2021 e suspenso por um pedido de vista do iminente ministro Luís Roberto Barroso,
que em 28 de setembro de 2023 assumiu a presidência do STF, o julgamento da ADPF
n. 347 foi retomado, levando a pauta ao plenário do Supremo.
Observando o cenário da situação carcerária brasileira, ao final do julgamento, o STF reconheceu a violação acentuada, no sistema prisional brasileiro, dos direitos fundamentais estipulando o prazo de seis meses para que o governo federal elabore um plano de ação para resolver a situação no sistema, objetivando reduzir a superlotação dos presídios, o número de presos provisórios, sem condenação criminal transitada e julgado, bem como a permanência em regime mais severo ou por tempo superior ao da pena.
Logicamente, acerca da matéria, não tínhamos a pretensão de dissecar a temática, simplesmente, buscamos trazer à baila, para campo da discussão, livre de qualquer ideologia, um ponto atual, relevante e patente no sistema prisional brasileiro acreditando que sempre podemos melhorar.
Assim, entendemos que o Estado Brasileiro, signatário de tratados e convenções internacionais sobre direito humanos, deve sempre buscar aplacar toda e qualquer mazela capaz de tanger a dignidade da pessoa humana não só por decisão judicial. O Poder Legislativo, também, deve ser instado a atuar. É sua obrigação!
REFERENCIAL
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Disponível: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 04/10/2023;
BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação.
Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 03/10/2023;
O reconhecimento do estado de coisas inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal e as suas possíveis consequências na ordem jurídica brasileira.
Disponível: https://bibliotecadigital.stf.jus.br/xmlui/handle/123456789/1132. Acesso em: 20/09/2023;
Conselho Nacional de Justiça - CNJ. Resolução 213, DE 15 de dezembro de 2015.
Disponível:
https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/04/resoluo-n213-15-12-2015-presidncia.pdf. Acesso em; 02/10/2023.
STF reconhece violação massiva de direitos no sistema carcerário brasileiro.
Disponível: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=515220&ori=1. Acesso em: 16/10/2023.
SENAPPEN lança Levantamento de Informações Penitenciárias referentes ao primeiro semestre de 2023. Disponível:
Acesso em: 26/09/2023;
Por unanimidade, STF manda governo criar plano para melhorar prisões.
Acesso em: 04/10/2023.
*ELLCIO DIAS DOS SANTOS
Belíssimo texto, meu nobre amigo, Ellcio!
ResponderExcluirÉ, sem dúvida, uma questão que requer, mais do pressa e não apenas "prestação pública", uma ação cirúrgica e definitiva no sentido de revolver essa grande mazela social brasileira. O grande ponto que fica é saber se Poder Público (3 Poderes) pretende , de fato, buscar uma solução definitiva ou se vai continuar optando por meios paliativos, como: Diminuição (à qualquer custo) da população carcerária, afrouxamento da legislação penal, ou qualquer outra medida que apenas traga um reforço na sensação de impunidade que reina no consciente e inconsciente coletivo brasileiro.
Perfeitamente meu caro, ainda que possa parecer, para alguns, uma utopia, a atuação estatal sempre irá reverberar na sociedade direita ou indiretamente.
ExcluirPerfeito
ResponderExcluirObrigado minha cara, compartilho um pouco do nosso trabalho.
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