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quinta-feira, 14 de março de 2024

"Vocês vão ter que me engolir!"


 Autora: Gabriela Aisen (*)

Recentemente os jornais foram tomados pela notícia sobre a morte de Mário Jorge Lobo Zagallo, jogador e técnico da seleção brasileira, recordista em número de vitórias nas Copas do Mundo, somando quatro premiações em campo e fora dele.

O boleiro, indiscutível referência no futebol, teve declarações polêmicas ao longo de sua carreira, mas, agora, instaurou-se uma polêmica que nada tem a ver com os gramados, mas sim com o conteúdo de seu testamento, no qual expressamente privilegiou o filho caçula com a parte disponível da sua herança (50% do seu patrimônio), em detrimento dos outros três filhos mais velhos.

Muito embora não fosse necessário oferecer qualquer justificativa para dispor da metade disponível da herança, Zagallo deixou consignado em seu testamento que estava "profundamente decepcionado" com estes filhos, devido ao fato de terem tentado anular o inventário dos bens deixados pela genitora, a Sra. Alcina de Castro, que veio a falecer em 2.012, no qual, incialmente, todos os filhos teriam concordado em renunciar à herança em prol de Zagallo. Posteriormente, porém, os três filhos mais velhos teriam se arrependido e buscado reverter o pactuado para que recebessem sua quota-parte da herança de sua mãe.

Esta situação, evidentemente, causou um enorme conflito e desconforto nas relações familiares, de modo que, ao que tudo indica, somente o filho caçula possuía contato com o genitor, e foi o único responsável pelos cuidados de Zagallo nos seus últimos anos de vida. Por isso, o jogador resolveu privilegiar o filho mais novo em seu testamento, deixando para ele 62,5% de seus bens, enquanto cada um dos demais filhos permaneceu titular de 12,5% do patrimônio de Zagallo.

Apesar de muitos estranharem a discrepância do percentual dos bens que foi atribuído para os filhos do jogador, é incontroverso que esta disposição testamentária está em consonância com a legislação brasileira, uma vez que o artigo 1.846, do Código Civil disciplina que os herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e o cônjuge) são titulares de metade dos bens que compõem a herança do falecido, enquanto a outra metade pode ser distribuída de acordo com o desejo do testador (a chamada herança disponível), conforme autoriza o parágrafo 1º do artigo 1.857, do Código Civil, razão pela qual não há qualquer mácula no testamento deixado por Zagallo.

Todavia, é possível aproveitar este caso para se indagar: poderia o craque da bola excluir os filhos mais velhos do recebimento de sua herança e quais os fundamentos legais que poderiam ser utilizados para tanto?

A deserdação é um instituto jurídico da sucessão testamentária que visa a exclusão de herdeiro necessário no recebimento da sua quota parte da herança legítima. Pode ser entendida, então, como expressão da autonomia da vontade do testador, na medida em que o meio hábil para a sua formalização é a realização de testamento pelo titular do patrimônio.

Ademais, é necessário observar as causas que ensejaram o desejo de deserdar o referido herdeiro necessário, a fim de que ele possa se defender quando da abertura da sucessão. Ressalta-se que a manifestação de vontade do testador deve ser expressa e clara, pois não se admite deserdação tácita ou implícita, justamente pela severidade da penalidade imposta ao herdeiro necessário.

Nesta linha, as causas para a deserdação são elencadas nos artigos 1.814, 1.962 e 1.963, todos do Código Civil, os quais dispõem que:

"Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:

I - que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;

II - que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;

III - que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade."

"Art. 1.962. Além das causas mencionadas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos descendentes por seus ascendentes:

I - ofensa física;

II - injúria grave;

III - relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto;

IV - desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade."

Art. 1.963. Além das causas enumeradas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos ascendentes pelos descendentes:

I - ofensa física;

II - injúria grave;

III - relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta;

IV - desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade."
Assim sendo, uma das causas passiveis de exclusão do herdeiro necessário da sucessão por deserdação, tanto do ascendente quanto do descendente, é a prática de ofensa física contra o autor da herança. Cumpre consignar, que, a despeito de ser utilizada uma regra do Direito Penal para a aferição da prática passível de deserdação, não é requisito fundamental para tanto a instauração de inquérito policial para a sua comprovação, muito menos a condenação do herdeiro necessário em âmbito penal para que possa ser deserdado. Neste viés, também não é essencial a consumação da lesão corporal para que se possa excluir o herdeiro necessário da herança, tendo em vista que o fator predominante para tal é intenção do herdeiro necessário em prejudicar fisicamente o autor da herança, devendo esta ofensa física se dar entre ascendente e descendente para se enquadrar na disposição legal.

Da mesma maneira, o herdeiro necessário pode ser deserdado por cometer atos de injúria grave, noutras palavras, ofender a reputação e/ou a honra do testador, através de condutas verbais e escritas tomadas pelo herdeiro necessário, sendo livre a forma para a sua ocorrência. O fato de o herdeiro necessário atentar contra a honra do autor da herança presume a sua ingratidão e a sua insensibilidade, o que pode, em contrapartida, gerar efeitos patrimoniais a ele desfavoráveis.

Portanto, nota-se a importância da percepção subjetiva do testador, no que tange à ofensa de sua honra e de sua autoestima, para que se configure a deserdação do herdeiro necessário por injúria grave. Em virtude da subjetividade da ofensa, é recomendável que o testador explique minuciosamente os motivos que o levaram a deserdar determinado herdeiro necessário, enfatizando como as condutas deste o agrediram no seu íntimo, a fim de assegurar a validação da cláusula testamentária após a o seu falecimento, produzindo os efeitos almejados.

No que se refere às causas de deserdação exclusivas do descendente pelo ascendente, como seria o caso do Zagallo ao excluir os filhos mais velhos da sua herança, o artigo 1.962, do Código Civil elenca algumas hipóteses específicas. O inciso III do dispositivo legal prevê como causa de deserdação a existência de "relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto", por ter sido violado o dever de fidelidade das relações maritais, bem como o respeito à ordem familiar anteriormente imposta.

O inciso IV do referido artigo, por sua vez, suscita a hipótese de "desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade."Isto porque a penúria do testador, tanto econômica quanto emocional, verificada em face do abandono perpetuado pelo descendente, quando sabedor da condição de vulnerabilidade de seu ascendente, é condenada pelo ordenamento jurídico, por ser interpretada como violação ao Princípio da Afetividade e da Solidariedade Familiar que deveria prevalecer em todas as famílias.

Desta feita, analisando as hipóteses previstas pela legislação vigente, Zagallo não teria fundamento no atual cenário para deserdar os filhos mais velhos por tentarem anular a partilha dos bens deixados pela esposa do jogador, por supostamente se arrependerem da renúncia à herança em favor do pai. Tal fato, no entanto, teve por consequência um afastamento abrupto no convívio familiar entre Zagallo e seus três filhos, que teriam deixado de cuidar do genitor nos seus últimos anos de vida e de manter os laços de afeto que são inerentes às relações familiares.

Esta omissão de cuidado e de afeto dos filhos mais velhos de Zagallo poderia ser interpretada como ocorrência de abandono afetivo inverso, ou seja, quando os descendentes abandonam o seu genitor na velhice, oportunidade em que deveriam retribuir os cuidados que os pais tiveram na sua educação e no seu sustento durante a infância.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1.988 e a vigência do Código Civil de 2.002, o afeto tornou-se um valor jurídico a ser protegido na esfera familiar, na medida em que está atrelado ao cuidado que os pais deveriam ter em relação aos filhos durante o seu desenvolvimento, e o reverso deveria se dar durante a velhice dos genitores. Tanto isso é verdade que o artigo 226, caput, da Constituição Federal determina que a família é a base da sociedade e, por conseguinte, detém proteção especial do Estado. Neste sentido, o artigo 3º do Estatuto do Idoso elenca como direito do idoso a convivência familiar. Reflexos dos Princípios da Dignidade da Pessoa Humana, e da Solidariedade Familiar que fundamentam a ilicitude do abandono afetivo nas relações de parentesco.

Inclusive, o Projeto de Lei nº 4.229/2.019, em tramite perante o Senado Federal, pretende incluir a responsabilização dos filhos pelo abandono afetivo inverso no Estatuto do Idoso, o que geraria o dever de indenizar dos filhos que deixassem de amparar seus pais em seus últimos anos de vida, violando, assim, a solidariedade familiar.

Ora, se o descumprimento do dever de cuidado pode acarretar consequências patrimoniais, consubstanciado no pagamento de indenização, situação corriqueira vivenciada nos fóruns do país, deveria o testador poder afastar o herdeiro necessário que o abandonou afetivamente em vida, para que seja privado de usufruir dos bens após o seu falecimento.

Esta é justamente a proposta apresentada pelo Anteprojeto de atualização do Código Civil, que foi elaborado por uma Comissão de Juristas e amplamente debatido em âmbito nacional, para que o abandono afetivo seja incluído na legislação como causa para fundamentar a deserdação tanto do ascendente pelo descendente, quando do descendente pelo ascendente, conforme se depreende da leitura da redação sugerida para o artigo 1.962, inciso III, do Código Civil, que passaria a ter a seguinte redação:" III – desamparo material e abandono afetivo voluntário e injustificado do ascendente pelo descendente".

Outrossim, o artigo 1.963, do Código Civil também teria o conteúdo do seu inciso III modificado, para incluir o abandono afetivo dos filhos ou dos netos pelo ascendente, que passaria a vigorar com o seguinte verbete: "III – desamparo material e abandono afetivo voluntário e injustificado do filho ou neto". Ressalte-se, contudo, que os testadores, neste caso, somente poderiam elaborar testamento válido e apto a produzir efeitos com a idade mínima de 16 anos, quando adquirem capacidade civil especial para a realização do testamento, conforme determina o parágrafo único do artigo 1.860, do Código Civil.

Percebe-se que a Comissão de Juristas reforçou o entendimento jurisprudencial na legislação no sentido de que o abandono afetivo, ou seja, a ausência de cuidado e de amparo nas relações familiares não pode ser ignorada pela sociedade, e deve repercutir no âmbito jurídico. A solidariedade familiar foi mais uma vez sobreposta a outros princípios jurídicos, por meio do sopesamento de princípios constitucionais.

Desta feita, caso ao tempo da elaboração do testamento de Zagallo, já estivesse em vigor a redação proposta pela Comissão de Juristas para a atualização do Código Civil, o jogador poderia ter optado por excluir os três filhos que o abandonaram na velhice, após o falecimento de sua esposa, utilizando por fundamento o artigo 1.962, III, do Código Civil, privando-os da herança legítima que teriam direito. Entretanto, Zagallo poderia simplesmente diminuir o quinhão hereditário de cada um, como fez no testamento elaborado no ano de 2.016.

O ponto fulcral é conceder autonomia ao testador para que decida plenamente sobre o destino de seus bens, de modo que possa ser dado tratamento similar ao herdeiro necessário enquanto o testador é vivo e após o seu falecimento. Isto porque o ordenamento jurídico não pretende premiar condutas ou omissões que destoem de seus princípios fundamentais, como é o caso da solidariedade familiar.

Assim sendo, com a deserdação de herdeiros que faltaram com o testador, poderiam ser premiados os herdeiros que efetivamente participaram ativamente nos seus cuidados e lhe garantiram a mantença digna, caso essa fosse a vontade daquele que testou.

Portanto, com a atual redação do Código Civil, especialmente o verbete artigo 1.962, Zagallo não poderia deserdar os seus filhos por abandono afetivo inverso, vale dizer, por deixarem de exercer os cuidados basilares à subsistência digna do pai nos últimos anos de sua vida. Esta realidade, todavia, está prestes a ser alterada, com a inclusão do abandono afetivo como causa de deserdação, sugestão feita pela Comissão de Juristas responsável pela atualização do Código Civil, de acordo com as novas tendências experimentadas pela sociedade brasileira. Privilegiou-se a autonomia da vontade do testador para excluir da sua sucessão quem não participou do convívio enquanto estava vivo, de modo que se buscou garantir o direito de escolha do testador em privar o herdeiro necessário do recebimento de seu patrimônio. A solidariedade familiar deve prevalecer enquanto princípio jurídico, sendo que aqueles que não a cumprirem terão de, eventualmente, arcar com as consequências cabíveis, como o pagamento de indenizações ou da exclusão da sucessão. Seja lá qual for a escolha efetuada pelo testador, "(...) vão ter que me engolir!"

*GABRIELA  AISEN













- Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (2018);

- Especialização em Direito de Família pela Universidade de Coimbra (2019) e

- Pós - graduada em Direito de Família e Sucessões pela Escola Paulista de Direito (2021)



Nota do Editor:


Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

2 comentários:

  1. Excelentes considerações!

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    1. Muito obrigada!! Fico feliz que a leitura lhe foi agradável!!

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