A emergência de saúde causada pela Sars-Covid 19, que levou a Organização Mundial de Saúde a decretar calamidade e pandemia em 2020, causou impactos não somente nas relações econômicas, sociais e financeiras. O impedimento de deslocamento e a decretação de isolamento social afetou também as relações jurídicas, principalmente as referentes aos contratos de trabalho.
A MP 936/2020, convertida na Lei nº 14.020/2020, previu e regulou medidas para diminuir o fluxo de pessoas, tais como a regulação do trabalho remoto, redução de carga horária, antecipação de férias, licenças remuneradas e suspensão dos contratos de trabalho com percepção de parcelas equivalente ao seguro-desemprego, além de garantia provisória de emprego para trabalhadores que tiveram seus contratos suspensos.
Por outro lado, a Lei nº 14.010/2020 instituiu normas de caráter transitório e emergencial para a regulação de relações jurídicas de Direito Privado em virtude da pandemia do coronavírus (Covid-19), determinando a suspensão de prazos prescricionais e decadenciais (art. 3º, caput, §§ 1º e 2º). No entanto, não se aplicam as disposições do referido artigo enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional. Aplica-se, contudo, à decadência, observada a ressalva do art. 207 do Código Civil Brasileiro.
É inegável a incidência da referida norma aos contratos de trabalho, tendo em vista a classificação do Direito do Trabalho no ramo do Direito Privado[1], bem como a proteção do crédito trabalhista, de natureza alimentar e privilegiada. A Lei nº 14.010/2020 aplica-se ao Direito do Trabalho por força do disposto no art. 8º, § 1º, da CLT , inexistindo conflito com o art. 11, § 3º, da CLT, que traz regra geral de interrupção da prescrição trabalhista, mas não afasta aplicação subsidiária da norma de direito comum de suspensão dos prazos, que possuiu caráter transitório e emergencial em razão da pandemia de Covid-19.
De acordo com o art. 7º, XXIX, da CF a "ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho”. No mesmo sentido o artigo 11, caput, da CLT.
A Lei nº 14.010/2020 tratou da suspensão dos prazos prescricionais e decadenciais, fixando em seu artigo 3º que "Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020", ou seja, de 12.06.2020 a 30.10.2020. A quantidade de dias compreendida no prazo de suspensão da prescrição determinada pela Lei nº 14.010/2020 é de 141 dias.
Portanto, a consequência prática da referida lei é que, nesse período, não se produziram efeitos jurídicos entre as partes, postergando a prescrição bienal e interferido na contagem da prescrição quinquenal parcial dos créditos trabalhistas (art. 7º, XXIX, da CRFB e art. 11 da CLT). Além disso, a prescrição intercorrente, tratada no art. 11-A da CLT, também foi afetada pela suspensão da prescrição.
Todavia, passados quase quatro anos da entrada em vigor da Lei nº 14.010/2020, parece que o seu regramento transitório resta esquecido na contagem da prescrição e na fixação do marco prescricional, como se observa na quantidade de julgados tratando desse assunto. Como exemplo, citam-se os seguintes excertos de Tribunais Regionais do Trabalho de diversas regiões:
"PRESCRIÇÃO. SUSPENSÃO DOS PRAZOS PRESCRICIONAIS. LEI Nº 14.010/2020. Na contagem do prazo prescricional bienal deve ser observada a suspensão disposta pelo artigo 3º da Lei nº 14.010/2020, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do coronavírus (COVID-19). Recurso provido.” (TRT-1 - AP: 01000421320215010020 RJ, Relator: MARCELO ANTERO DE CARVALHO, Data de Julgamento: 12/11/2021, Décima Turma, Data de Publicação: 24/11/2021)"RECURSO ORDINÁRIO DO RECLAMANTE. SUSPENSÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL. LEI N. 14.010/2020. Conforme disposto na Lei n. 14.010/2020 os prazos prescricionais ficaram suspensos da sua vigência, 12/06/2020, até 30/10/2020, em virtude das restrições impostas durante a pandemia do Coronavírus. In casu o prazo prescricional se iniciou em 17/01/2020, data da dispensa do reclamante, e foi suspenso em 12/06/2020, retomando fluxo em 31/10/2020, razão por que, quando do ajuizamento da presente ação, 31/05/2022, o prazo prescricional de dois anos ainda não havia se completado. Assim, dá-se provimento ao recurso do reclamante para afastar a prescrição e determinar o retorno dos autos à Vara de origem para prosseguimento do feito. Recurso ordinário conhecido e provido." (TRT-11 00004743520225110012, Relator: LAIRTO JOSE VELOSO, 2ª Turma)"LEI N. 14.010/2020. SUSPENSÃO DOS PRAZOS PRESCRICIONAIS. PANDEMIA DA COVID-19. PRESCRIÇÃO TRABALHISTA. A Lei n. 14.010/2020, que dispõe sobre o "Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19)", suspendeu os prazos prescricionais, nos seguintes termos: "os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020" (art. 3º, caput). Trata-se de mandamento legal e geral e que, portanto, aplica-se no cômputo da prescrição trabalhista." (TRT-3 - ROT: 0011595-31.2022.5.03.0029, Relator: Maristela Iris S.Malheiros, Segunda Turma)
"RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI 13.467/2017 E DA IN 40 DO TST. PRESCRIÇÃO BIENAL. PANDEMIA. SUSPENSÃO DOS PRAZOS PRESCRICIONAIS. LEI 14.010/2020. TRANSCENDÊNCIA JURÍDICA. REQUISITOS DO ARTIGO 896, § 1º-A, DA CLT, ATENDIDOS. No caso em tela, o debate acerca da caracterização da prescrição bienal e a aplicabilidade da Lei nº 14.010/2020 ao processo do trabalho, quanto à suspensão do prazo prescricional, em razão do estado de calamidade pública decorrente da pandemia de Covid-19, detém transcendência jurídica , nos termos do art. 896-A, § 1º, IV, da CLT . Transcendência reconhecida. A discussão dos autos refere-se à caracterização da prescrição bienal, e a aplicabilidade da Lei nº 14.010/2020 ao processo do trabalho, quanto à suspensão do prazo prescricional, em razão do estado de calamidade pública decorrente da pandemia de Covid-19. No caso, segundo fundamento da sentença, reiterado pelo Regional, o contrato de trabalho encerrou-se em 10/2/2019 (já incluído o período do aviso prévio), e a ação em apreço foi ajuizada em 25/3/2021. A Lei nº 14.010/2020, contudo, suspendeu os prazos prescricionais entre 12/6/2020 e 30/10/2020, conforme teor do art. 3º. Uma vez ocorrida a suspensão dos prazos processuais entre 12/6/2020 e 30/10/2020, ou seja, pelo prazo de 141 dias, tem-se que a prescrição bienal apenas ocorreria em 1/7/2021. A ação em apreço, por sua vez, foi ajuizada em 25/3/2021. Por outro lado, a norma regente de prescrição trabalhista é, por definição, norma restritiva de direito, não comportando exegese ampliativa que a faça prevalecer em detrimento de regra geral de suspensão dos prazos prescricionais, a pretexto de ter o titular do direito sinalizado aptidão para propor a ação antes do início da suspensão processual. Conclui-se, portanto, que não se operou a prescrição bienal das pretensões do reclamante. Recurso de revista conhecido e provido."” (TST - RR: 0010296-02.2021.5.15.0132, Relator: Augusto Cesar Leite De Carvalho, Data de Julgamento: 28/02/2024, 6ª Turma, Data de Publicação: 01/03/2024)
A previsão legal da causa impeditiva da prescrição na Lei nº 14.010/2020 está amparada pelos princípios da inafastabilidade da jurisdição e do acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da CRFB), bem como pelo princípio do "contra non valentem agere non currit praescriptio" (o prazo prescricional não pode fluir contra quem não pode agir).
Trata-se exatamente da previsão da Lei nº 14.010/2020, pois é fato notório (art. 374 do CPC) que o cenário de incerteza trazido pela pandemia (Covid-19), em especial a necessidade de isolamento social como forma de combate, com diversas medidas de restrição imposta pelos Poderes Públicos de todas as esferas, com reconhecimento do "estado de calamidade pública", deve ser considerado causa impeditiva do exercício de direito por seu titular, ainda mais se cuidando do credor trabalhista, presumidamente hipossuficiente.
[1]DELGADO, Mauricio Godinho. "Curso de Direito do Trabalho", 18ª Edição, Editora LTR, , pág. 84;
[2]
TST - RR: 00109956320215150141,
Relator: Sergio Pinto Martins, Data de Julgamento: 21/06/2023, 8ª Turma, Data
de Publicação: 26/06/2023
*MILENA MARTINS DE OLIVEIRA
-Analista Judiciária da Área Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região;
- Formada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro;
-Pós-Graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho
-Amante de leitura, contos e poesia.
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