1- Se estamos no porto e vemos um navio distante, ele parece pequeno e parado; quando se aproxima vemos que, relativo a nós, ele é grande e está em movimento;
2- Um remo, metade na água e metade fora, parece quebrado; e
3- Existe uma limitação natural nos nossos sentidos, que nos levam a considerar de forma errada as coisas. O Sol parece girar em torno da terra.
A Meditação que fiz ontem encheu-me o espírito de tantas dúvidas, que doravante não está mais em meu alcance esquecê-las. E, no entanto, não vejo de que maneira poderia resolvê-las; e, como se de súbito tivesse caído em águas muito profundas, estou de tal modo surpreso que não posso nem firmar meus pés no fundo, nem nadar para me manter à tona4
Este comentário de Descartes dá a medida da dúvida empreendida pelo autor e o propósito seguinte é continuar nesse caminho até que tenha encontrado um ponto que fosse fixo e seguro.
Não, a minha existência estava assegurada no ato do pensar. Eu sou, eu existo como coisa que pensa (res cogitans).
Diz Descartes:
"...dos corpos em geral, pois essas noções gerais são ordinariamente mais confusas, porém de qualquer corpo em particular. Tomemos, por exemplo, este pedaço de cera que acaba de tirado da colméia: ele não perdeu ainda a doçura do mel que continha, retém ainda algo do odor das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figura, sua grandeza, são patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se nele batermos, produzirá algum som. Enfim, todas as coisas que podem distintamente fazer conhecer um corpo encontram-se neste7.
Mas eis que, enquanto falo, é aproximado do fogo: o que nele restava de sabor exala-se, o odor se esvai, sua cor se modifica, sua figura se altera, sua grandeza aumenta, ele torna-se líquido, esquenta-se, mal o podemos tocar e, embora nele batamos, nenhum som produzirá. A mesma cera permanece após a modificação? Cumpre confessar que permanece: e ninguém o pode negar. O que é, pois, que se conhecia deste pedaço de cera com tanta distinção? Certamente não pode ser nada de tudo o que notei nela por intermédio dos sentidos, posto que todas as coisas que se apresentavam ao paladar, ao olfato, ou à visão, ou ao tato, ou à audição, encontram-se mudadas e, no entanto, a mesma cera permanece8.
Ora, qual é esta cera que não pode ser concebida senão pelo entendimento ou pelo espírito? Certamente é a mesma que vejo, que toco, que imagino e a mesma que conhecia desde o começo. Mas o que é de notar é que sua percepção, ou a ação pela qual é percebida, não é uma visão, nem um tatear, nem uma imaginação, e jamais o foi, embora assim o parecesse anteriormente, mas somente uma inspeção do espírito, que pode ser imperfeita e confusa, como era antes, ou clara e distinta, como é presentemente, conforme minha atenção se dirija mais ou menos às coisas que existem nela e das quais é composta9.
Portanto, a transformação ou modificação espacial dos corpos significa uma passagem de um estado A para um estado B e a permanência daquilo que podemos caracterizar como substancial. Percebemos pelos sentidos esta transformação, no entanto, esse ato de perceber é coordenado e organizado pelo sujeito (razão). Somente a razão apreende o elemento substancial das coisas.
Segundo Descartes, os sentidos só nos informam a mudança de estado, a forma etc., cabendo, se e somente se, à razão perceber a transformação.7
É o entendimento ou razão que concebe as transformações espaciais dos objetos, aprendendo a verdade.
Estabelece-se a partir daí um desprezo da experiência na formação do conhecimento sobre o mundo físico. Cabe tão somente à razão conhecer as coisas ou os objetos. A experiência nada organiza, nada representa, nada conhece.
Portanto, a experiência em si mesma, nada representa como fonte de conhecimento, visto que é a razão através de suas elaborações e representações que formata e organiza o mundo dos objetos10.
Mas para atingir tal sucesso, é necessário que a razão esteja educada para realizar tal tarefa afim de dar conta de tudo aquilo que cerca a vida, incluindo o conhecimento sobre o mundo físico:
"O primeiro era o de nunca aceitar algo como verdadeiro que eu não conhecesse claramente como tal; ou seja, de evitar cuidadosamente a pressa e a prevenção, e de nada fazer constar de meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito que eu não tivesse motivo algum de duvidar dele. O segundo, o de repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias a fim de melhor solucioná-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a pouco, como galgando degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e presumindo até mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros. E o último, o de efetuar em toda parte relações metódicas tão completas e revisões tão gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada omitir". In: Discurso do Método.São Paulo: Abril Cultural/Nova Cultural. Coleção Os Pensadores, 1987.
Portanto, a garantia do
conhecimento verdadeiro e o atingir de todas as verdades, teria como garantia
única a razão sendo guiada (ou educada) por um método infalível, garantindo
também o sentido da existência.
É uma Educação da razão!
Referências:
ARRUDA,ACJZA. A importância da experiência na construção da noção espacial segundo a Epistemologia Genética de Piaget. Capítulo I. Dissertação de Mestrado.UNESP. Bauru, 2004;
BRÉHIER, É. História da Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1977;
CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1997,p.231-235;
DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. São Paulo: Abril Cultural/Nova Cultural. Coleção Os Pensadores, 1987;
REALE, G. História da Filosofia. São Paulo: Paulus. 199;
1 René Descartes (1596-1650) é considerado o fundador do pensamento moderno;
2 Clareza e distinção para Descartes são os critérios para se atingir a verdade, não restando a menor dúvida;
3 Deus Enganador e Gênio Maligno possuem a mesma função, porém, o gênio maligno possui uma função psicológica, isto é, o engano acontece por que ele produz as ilusões no exato momento em que penso e a falsa impressão de que são verdadeiras.;
4 DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. São Paulo: Abril Cultural/Nova Cultural. Coleção Os Pensadores, 1987, 23;
5 Idem, 24;
6 Pensamento,
entendimento, espírito e razão são utilizados como sinônimos;
7 DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. São Paulo: Abril Cultural/Nova Cultural. Coleção Os Pensadores, 1987, 28;
8 Idem;
9 Idem, 29; e
10 Descartes
buscou construir uma física geométrica, isto é, elaborar uma
físico-matemática capaz de conhecer as propriedades do mundo físico.
- Graduação em Filosofia pela Universidade do Sagrado Coração (1996);
- Mestrado em Educação para a Ciência pela UNESP (2004);
-Doutorado em Educação para a Ciência pela UNESP (2009); e
- Pós doutorado em Educação pela UNESP (2020);
e-mail: arrudafilosofia@hotmail.com
linkedin: Carlos Arruda
Tel: (14) 991152195
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0764418599887611
Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário