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domingo, 1 de setembro de 2024

O suicídio e sua dimensão social


Autor: Fábio Dias Rezende (*)



"O colonialismo visível te mutila sem disfarce: te proíbe de dizer, te proíbe de fazer, te proíbe de ser. O colonialismo invisível, por sua vez, te convence de que a servidão é um destino, e a impotência, a tua natureza: te convence de que não se pode dizer, não se pode fazer, não se pode ser."
(Eduardo Galeano, em “O livro dos abraços”, p. 157)

1. UM JOVEM BRILHANTE

Matéria produzida por João Batista Jr. e publicada pela Piauí, nos conta um pouco da história de suicídio de um aluno brilhante do Colégio Bandeirantes, tradicional instituição de ensino localizada na Vila Mariana, em São Paulo, cuja mensalidade gira em torno de R$ 4,5 mil.

Pedro Henrique Oliveira dos Santos era um adolescente de 14 anos, bolsista, morador da periferia, no bairro chamado Vila dos Remédios, em Osasco. Diz a matéria:
"Pedro Henrique Oliveira dos Santos tinha o hábito de ler muitos livros e mangás ao mesmo tempo. As suas leituras mais recentes foram Capitães de Areia, de Jorge Amado, Ataque aos Titãs, do mangaká Hajime Isayama, e Aimô: Uma viagem pelo mundos dos orixás, de Reginaldo Prandi. Ele sonhava em fazer faculdade fora do Brasil. Tinha o hábito de escrever anotações, passar marca-texto em frases e colocar post-it nas páginas de tudo que lia. Seus cadernos eram de um capricho notável. Na infância, aprendeu a tocar violoncelo em um projeto social, e o instrumento se tornou sua outra grande paixão, ao lado da literatura."
O jovem gostava de Gal Costa e Rita Lee, cantoras que ouviu enquanto tomava banho para ir à escola, no fatídico dia 12 de agosto de 2024, o seu último no mundo de uma minoria numérica, mas poderosa, que escolhia não respeitar quem ele era e quem estava se tornando. Pedro era filho de uma auxiliar de limpeza e um auxiliar de almoxarifado, e esse primeiro marcador, o de classe, nos situa um pouco para sabermos que o lugar em que Pedro estudava, apesar dos programas de bolsas de ensino, não tem parte com gente como ele e milhões de jovens brasileiros, abaixo da linha que determina quem pode viver uma vida plena e quem não pode. Como diz KL Jay, do grupo Racionais MC’s: "Não queira ser aceito. O sistema não gosta de você." Infelizmente, poucos não precisam se curvar diante da lógica do mercado, que coopta o ensino para preparar futuros profissionais e não cidadãos, numa forma concorrencial implacável, onde o mais adaptado ao mundo doente do capitalismo e do consumo é quem tem o que se costuma chamar de "sucesso". Um colégio de pais de alunos, em sua maioria, abastados, não prescinde dessa mesma premissa.

Aliás, não haveria nome mais apropriado para o colégio senão um que faça referência à elite econômica deste país, que sempre perseguiu e matou minorias, dissidentes, povos originários, enfim, o diferente da norma, a saber, do padrão europeu: rico, branco e colonizador. Agora seus métodos não são mais as caças com espingardas e cavalos, pela mata atlântica, mas a colonização feita pelo dinheiro mesmo: não aceitam o pobre, o preto, o LGBTQIA+, por estes representarem um mundo no qual a hegemonia dos privilegiados pareça ameaçada. Não querem mais gente pobre na universidade, nos colégios particulares, nos espaços historicamente ocupados pelos mais favorecidos economicamente.

Tratam como ameaça ao status quo, leia-se, à sua dominação pelo capital, e atacam tudo o que não dialoga com seus estereótipos morais. São ricos, moradores dos jardins, com casas que têm quarto de empregada e babá, que se arrogam a forma mais acabada que a civilização produziu. Seu preconceito de classe é proferido de maneira sutil e eles odeiam manifestações culturais, intelectuais e o povo da periferia do capital: os pobres.

O modus operandi dessa chamada "elite do dinheiro" (único sentido possível para o emprego do termo) é cooptar a política e a classe média, minando a única possibilidade de oposição e enfrentamento de seu mundo: o acesso universal à educação.

Alguém dirá, em outra estratégia neoliberal, que individualiza os problemas sociais, que foram iniciativas de alguns poucos jovens que ofenderam o garoto, o que não reflete a educação que receberam, posto que seus pais lhes transmitiram princípios e valores - geralmente pautados pela cultura ocidental, judaico-cristã. Ora, a psicanálise não nos deixa inocentes e, para isso, nos apresenta o conceito de "transmissão" de forma mais ampla, que implica aquilo que é passado de pessoa para pessoa - neste caso, de geração para geração - de maneira inconsciente, ou seja, independente do discurso articulado e racional de pais bem intencionados. Certamente os pais destes jovens, os que tenham boa-fé, estarão genuinamente espantados com aquilo que seus filhos são capazes de fazer, mas, igualmente, jamais deverão implicar-se no problema, reconhecendo seus privilégios, suas ações e omissões no mundo que perpetuam com a ideia de que haja uma elite, constituída pela meritocracia, normalizando a pobreza, a miséria e desejando que seus filhos sejam uma versão aprimorada de si mesmos.

Esse é o ponto. O mundo desses pais autorizava e recompensava quem atacasse os que não se enquadravam em suas réguas. Esse mundo acabou, mas uma pequena e poderosa parcela da população recusa-se em aceitar. É triste que os levemos em consideração e que Pedro Henrique tenha sido atingido por eles. Isto posto, é notável a distância moral entre Pedro Henrique e seus ofensores que, separados pelo abismo de uma nobreza que existe no esforço de alguém que teve menos oportunidades e aqueles que recebem seus privilégios de mãos beijadas. A culpa inconsciente está, ao mesmo tempo, na causa e no efeito dos atos dos agressores.

Vale mencionar outros marcadores interseccionais que contextualizam o trágico desfecho da história de Pedro Henrique: era negro e assumidamente gay, como a mesma matéria nos dá conta. Ora, aqui temos o que a elite do atraso, para citar Jessé Souza (2019) mais teme: o diverso de seu modelo normativo presente no território que, há pouco tempo, era interditado para pessoas como Pedro Henrique.

2. CLASSE, COR E PRECONCEITO

Em "O povo brasileiro" (2015), Darcy Ribeiro aborda o tema que parece orbitar, ao menos em parte, o ocorrido com Pedro Henrique. Como nos diz o autor, após se referir aos bolsões que reúnem o topo da "tipologia das classes" (patronato de empresários e patriciado) identificando, logo abaixo, a "grande massa as classes oprimidas dos chamados marginais, principalmente negros e mulatos, moradores das favelas e periferias da cidade, cujo:
"(...) desígnio histórico é entrar no sistema, o que, sendo impraticável, os situa na condição de classe intrinsecamente oprimida, cuja luta terá de ser a de romper com a estrutura de classes. Desfazer a sociedade para refazê-la. Essa estrutura de classes engloba e organiza todo o povo, operando como um sistema autoperpetuante da ordem social vigente. Seu comando natural são as classes dominantes." (p. 157-158).
Assim, na base dos ataques ao jovem, reside uma estrutura social cristalizada que combate qualquer ameaça, real ou imaginária, que afronte seus alicerces. Prossegue Darcy:
"A distância social mais espantosa do Brasil é a que separa e opõe os pobres dos ricos. A ela se soma, porém, a discrimação que pesa sobre negros, mulatos e índio, sobretudo os primeiros." (p. 165).
Sobre o preconceito racial em São Paulo, um trabalho incontornável é a obra "Brancos e negros em São Paulo" (2008), na qual Florestan Fernandes e Roger Bastide discorrem sobre o fim de uma certa estrutura racista que dá lugar a uma nova organização social de convivência entre brancos e negro. Em suas palavras:
"Os efeitos do colapso da antiga ideologia racial se fazem sentir em vários sentidos; os mais importantes são, provavelmente: a desorientação dos brancos com relação às atitudes a tomar diante do negro." (p. 277).
Também lança luz sobre o assunto, o clássico “A pedagogia do oprimido", de Paulo Freire, ao se referir ao contraste de classes da seguinte maneira:
"Para os opressores, porém, na hipocrisia de sua ‘generosidade’, são sepre os oprimidos, que eles jamais obviamente chama de oprimidos, mas conforme se situem, interna ou externamente, de ‘essa gente’ ou de ‘essa massa cega e invejosa’, ou de ‘selvagens’, ou de ‘nativos’, ou de ‘subversivos ‘, são sempre os oprimidos que os desamam. São sempre eles os ‘violentos’, os ‘bárbaros’, os ‘malvados’, os ‘ferozes’, quando reagem à violência dos opressores." (p. 59).
Pedro Henrique tinha, como obstáculo adicional, o descrédito de sua denúncia, feita e não levada adiante, como nos diz a matéria da Piauí. Caso levada a cabo, ele tinha muito a perder. No limite, seu futuro estava em jogo. Diante disso, ele tentou seguir, e foi, bravamente, até onde deu conta, como o fez o jovem, do clássico literário de Goethe, "Os sofrimentos do jovem Werther" que, antes de cometer suicídio, disse, no derradeiro gesto de grandeza de um observador atento do mundo, que lutou o quanto pôde para ir adiante:
"Tudo está tão quieto ao meu redor, e tão tranquila minh’alma. Sou-vos grato, Deus, que me presenteais, nesses últimos momentos com esse calor, essa força." (p. 132).
3. SOBRE O SUICÍDIO

Os estudos em suicidologia indicam que, por mais radicalmente íntimo que seja este ato, ele encerra uma dimensão social fundamental para ocorrer. Deste modo, um fator predisponente importante é o afrouxamento do laço social, ou seja, um distanciamento afetivo entre o sujeito que faz o suicídio e seu entorno, seus agentes identificatórios, enfim, aqueles com quem o indivíduo sinta-se autorizado a dialogar e a ouvir-se. Não se trata da disponibilidade daqueles que o assistem, mas da possibilidade mesma de que este sinta a abertura necessária para abrir-se e desabafar. A questão neste ponto é necessariamente íntima.

O primeiro estudo sistemático sobre o tema, escrito por Émile Durkheim, chamado "O suicídio", nos informa que há um tipo de suicídio que:
"ocorre porque a sociedade, desagregada em certos aspectos ou mesmo em seu conjunto, deixa o indivíduo lhe escapar" (p. 275).
Isso nos indica que existe uma relação entre o indivíduo e o social que pode interferir e influenciar, ou, quando menos, não oferecer condições que confiram sentido à sua vida, predispondo-o a buscar uma solução final para o seu sofrimento.

No mesmo sentido, em "Sobre o suicídio", Marx denuncia:
"O que é contra a natureza não acontece. Ao contrário, está na natureza de nossa sociedade gerar muitos suicídios" (p. 25).
Em outra reflexão importante a respeito do suicídio, "Um crime da solidão", Andrew Solomon trata do assunto e aborda a questão da homossexualidade tão dificilmente aceita e acolhida por uma sociedade moralista e homofóbica, relatando casos e, ele mesmo, assumidamente gay, tratando sua história como objeto de sua pesquisa. Solomon nos diz que há uma epidemia oculta de depressão, que não necessariamente seria o caso de Pedro Henrique, mas, dadas algumas semelhanças, podemos aludir ao seu caso. Solomon escreve:
"Gays sofrem de depressão em números imensamente desproporcionais. É a peste não reconhecida da nossa comunidade, e a única razão que me ocorre para explicar por que não se ouve mais a esse respeito é que temos vergonha." (p. 65).
Schopenhauer, em "Sobre o sofrimento do mundo":
"O suicídio também pode ser visto como um experimento, uma questão que se põe à natureza, com a intenção de forçá-la a responder, a saber: qual mudança a existência e a cognição do ser humano experimentam com a morte?" (p.100-101).
CONCLUSÃO

Negro, periférico, gay e bolsista de colégio de gente rica: fórmula para o bullyng, essa forma de matar socialmente, antes de alguém pôr fim à própria vida.

Evidente que a relação de causa e efeito não é direta, dado que muitas pessoas não reagem a esta violência da mesma forma. E é precisamente essa impossibilidade de estabelecer inequivocamente a causalidade que faz com que os agressores sintam-se autorizados e perdoados de antemão por sua violência, que sempre mira alguém que esteja em posição mais vulnerável e busca uma plateia que remunere com risos os seus atos repugnantes. Para afirmarem sua existência, os indivíduos precisam subjugar o outro, numa espécie de confirmação de que a sua forma de vida é legítima. O jovem agressor carrega em si os traços da geração anterior, estando deslocado do mundo real que passa por constantes transformações. É, no fim das contas, um ser do passado em um invólucro jovial, que manifesta o que de pior a sociedade já produziu: preconceito e violência.

Pedro Henrique tinha enorme potencial, mas quem ele era é, e deve continuar sendo por algum tempo, uma ameaça à elite do atraso, que vive em negação contínua da realidade: não admite sua decadência e projeta seu ódio sobre aqueles que podem criar um novo mundo, no qual haja menos desigualdade social, no qual a orientação sexual de alguém não seja tema para outrem, e em que a periferia, o negro, o LGBTQIA+ sejam tão cidadãos quanto aqueles que os boicotaram ao longo da história. É uma pena que Pedro Henrique não esteja mais aqui para oferecer sua preciosa contribuição para a construção desse novo mundo – ou será que ele tem ainda mais força agora?

REFERÊNCIAS

BASTIDE, Roger, & FERNANDES, Florestan, "Brancos e negros em São Paulo : ensaio sociológico sobre aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana". (São Paulo : Global, 2008);

DURKHEIM, Émile, "O suicídio : estudo de sociologia". (São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2019);

FREIRE, Paulo, "Pedagogia do oprimido". (Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020);

GALEANO, Eduardo, "O livro dos abraços". (Porto Alegre : L&PM, 2021);

GOETHE, Johann Wolfgang von, "Os sofrimentos do jovem Werther". (São Paulo : Martin Claret, 2014);

MARX, Karl, "Sobre o suicídio". (São Paulo : Boitempo, 2006);

SCHOPENHAUER, Arthur. "Sobre o sofrimento do mundo & outros ensaios". (Porto Alegre [RS]: L&PM Pocket, 2023);

SOLOMON, Andrew, "Um crime da solidão: Reflexões sobre o suicídio". (São Paulo : Companhia das Letras, 2018);

SOUZA, Jessé, "A elite do atraso". (Rio de Janeiro : Estação Brasil, 2019);

RIBEIRO, Darcy. "O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil". (São Paulo : Global, 2015); e


*FÁBIO DIAS REZENDE
















-Graduado em Psicologia pela  Faculdade: Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU (2017);

- Pós-Graduado em Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma pelo Instituto Sedes  Sapientiae (2019) ;

Atendimento psicológico em Consultório Particular

Orientação psicanalítica

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