Magnus Rodrigo Cardoso Rossi(*)
A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que revisou o entendimento consolidado no Tema 414, representa um grande retrocesso no campo do direito do consumidor, em especial no que tange à proteção dos usuários de serviços essenciais, como o fornecimento de água. Em 20 de junho de 2024, a Primeira Seção do STJ revisou a tese que havia sido fixada em 2010, determinando nova forma de cobrança para condomínios ou multiplicidade de unidade por consumo, com um único hidrômetro. Essa mudança, sob o argumento de corrigir distorções e equilibrar custos, impõe severos prejuízos aos consumidores, os quais podem ser obrigados a pagar por serviços que não consumiram efetivamente, sob o disfarce de uma "tarifa mínima" ou "franquia".
O Entendimento Original e sua Proteção ao
Consumidor
A decisão anterior do STJ, fixada no REsp 1.166.561/RJ, determinava que não era admissível a cobrança da tarifa mínima multiplicada pelo número de unidades de um condomínio quando o consumo total fosse medido por um único hidrômetro. Em sua essência, essa decisão tinha como objetivo evitar que os condôminos, especialmente aqueles que consumiam menos água, fossem penalizados com cobranças injustas e desproporcionais. Sob a ótica da Lei 8.078/1900 (CDC) esse entendimento protegia o consumidor hipossuficiente de práticas abusivas, assegurando que o pagamento fosse proporcional ao consumo real.
A Nova Decisão e a Instituição da Tarifa Mínima por Franquia
A revisão do Tema 414, por sua vez, alterou profundamente essa lógica. A nova tese permite que as concessionárias de abastecimento cobrem uma "tarifa mínima" baseada em uma franquia de consumo por unidade, independentemente do consumo efetivo. Caso o consumo global do condomínio exceda essa franquia, uma parcela adicional variável poderá ser cobrada. Esse modelo apresenta uma série de problemas que, na prática, acabam por onerar o consumidor de forma desproporcional, obrigando-o a pagar por uma quantidade de água que ele pode não ter consumido.
Impactos Econômicos e Jurídicos
A decisão reformulada ignora princípios basilares do direito do consumidor, como o equilíbrio nas relações contratuais e a vedação de práticas abusivas. A cobrança de uma tarifa mínima representa, na verdade, uma imposição financeira para o usuário do serviço de água que não reflete seu consumo real. Assim, consumidores de condomínios com um único hidrômetro poderão ser obrigados a arcar com valores inflacionados devido ao uso de uma parte dos condôminos que consomem mais água, o que gera um desequilíbrio claro na relação de consumo.
Ademais, ao tratar o condomínio como uma unidade única, desconsidera-se a individualidade de cada condômino enquanto consumidor. O método anterior, ao focar no consumo efetivo, promovia uma maior justiça econômica. O novo entendimento, contudo, abre margem para abusos, sendo inclusive questionável à luz do artigo 6º da Lei 8.078/1990, que garante ao consumidor a modificação de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais.
Retrocesso nas Conquistas do Direito do
Consumidor
A revisão promovida pelo STJ na cobrança dos serviços de saneamento básico não se restringe ao aspecto econômico; ela também compromete a confiança nas conquistas históricas do direito do consumidor no Brasil. A decisão original, de 2010, representava uma importante vitória para os consumidores, ao reconhecer que não poderia haver cobrança por serviços não prestados, sendo o valor faturado proporcional ao consumo real.
A reformulação, contudo, inverte essa lógica, ao institucionalizar uma tarifa que não reflete o serviço efetivamente prestado. Trata-se de um retrocesso ao direito do consumidor, pois flexibiliza os limites de uma cobrança justa, ao mesmo tempo em que fortalece o poder das concessionárias em detrimento dos consumidores mais frágeis.
Conclusão
A revisão do Tema 414 pelo Superior Tribunal de Justiça, embora com a intenção de corrigir distorções e equilibrar custos, na prática impõe uma carga financeira indevida sobre os consumidores, especialmente aqueles em condomínios com um único hidrômetro. Ao permitir a cobrança de uma tarifa mínima por franquia, independentemente do consumo real, a decisão representa uma violação aos princípios do direito do consumidor e um retrocesso nas conquistas obtidas ao longo de décadas de luta pela proteção do consumidor no Brasil.
O novo entendimento do STJ traz graves consequências econômicas para os consumidores e cria um cenário de insegurança jurídica, onde o usuário pode ser compelido a pagar por um serviço não prestado, sob a roupagem de uma "franquia". Assim, é fundamental que o direito do consumidor continue a ser defendido e que medidas sejam tomadas para evitar que essa decisão resulte em injustiças e abusos contra a parte mais vulnerável da relação de consumo.
*MAGNUS RODRIGO CARDOSO ROSSI
- Advogado com 24 anos de atuação Inscrito na OAB/RJ 105788
- Formado em Direito pela Universidade do Grande Rio - RJ (2000);
- Pós-graduado em Direito do Consumidor e Responsabilidade Civil pela Universidade Cândido Mendes - RJ (2021) ;
- Pós-graduado em Direitos Humanos
- Pós-graduado em Direito Médico e da Saúde pela Faculdade Legale - SP (2022)
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