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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

O Espírita e o Carnaval



Autora: Maria de Lourdes Moraes Lira(*)



Antes de iniciarmos o tema, vale trazer aqui o significado do Carnaval:

Entre as várias definições sobre o significado do Carnaval entendi que a abaixo transcrita traduz bem o que gostaria de expor:

"Carnaval ou entrudo são os três dias de festas que precedem a quarta feira de cinzas. É uma palavra que tem origem no latim "carna vale" e que significa dizer "adeus à carne".

O carnaval chegou ao Brasil através das festas que ocorriam na Europa, principalmente na Itália e na França, no século XVII."


Pois bem, podemos dizer que o carnaval, ou festa da carne como o próprio nome já remete, é a comemoração de tudo que elegemos como prazer. Portanto, as festas,  o uso de drogas, a promiscuidade, a violência, a sensualidade e a sexualidade sem limites, em geral, fazem parte de grande parte das comemorações carnavalescas.

Com tais afirmativas, questiona-se: o espírita pode festejar o carnaval?

Sim, sem dúvida que pode! Entretanto, deve lembrar-se que sua conduta nessa festa não deve ser acompanhada de atitudes exageradas consigo mesmo e tampouco com seu próximo para que não atraia para si forças negativas que poderão trazer-lhe desequilíbrios espirituais, visto que o culto à carne é o despertar das paixões e das sensações e o seu uso desenfreado e irresponsável pode trazer um futuro de dores e sofrimentos como colheita

Expostos a tais situações que quase sempre são exageradas, atraem espíritos de ordem inferiores que se comprazem com tais atitudes na medida em que estarão em sintonia uns com os outros, ou seja os encarnados e os desencarnados ao trocarem energias, ora alimentadas com tais atos e que, portanto, pode-se considerar como sendo seu elo de ligação, promovendo-lhes prazer e deleite. Observa-se aqui que os referidos prazeres são inerentes às vontades materiais e essas, principalmente nessas ocasiões, são colocadas acima da moralidade.

Nesse sentido, podemos lembrar aqui uma das famosas cartas de Paulo , apóstolo que divulgou as mensagens do Cristo. Referida carta,  que é  a primeira aos Coríntios (habitantes de Corinto, na Grécia), no capítulo 6, versículo 12, apresenta a seguinte mensagem:

"Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém; todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas edificam."

Nessa frase simples, Paulo apresenta o "livre arbítrio" (tudo me é lícito), que é um dos princípios básicos da Doutrina  Espírita. Perceba que a Doutrina nada proíbe, mas sim, educa, no sentido de mostrar a verdade, e ensinar o caminho para obtê-la (mas nem tudo me convém).

Observemos também que tal lição quer demonstrar as limitações da Lei divina, do convívio com o próximo, onde essa liberdade é cerceada pela questão da conveniência e da oportunidade.

Sobre esse tema, o espírito Emmanuel, através do médium Chico Xavier, psicografou a seguinte mensagem em julho de 1939, publicada pela Revista Internacional de Espiritismo, em janeiro de 2001:

"CARNAVAL

Nenhum espírito equilibrado em face do bom senso, que deve presidir a existência das criaturas, pode fazer a apologia da loucura generalizada que adormece as consciências nas festas carnavalescas.

É lamentável que, na época atual, quando os conhecimentos novos felicitam a mentalidade humana, fornecendo-lhe a chave maravilhosa dos seus elevados destinos, descerrando-lhe as belezas e os objetivos sagrados da Vida, se verifiquem excessos dessa natureza entre as sociedades que se pavoneiam com o título de civilização.

Enquanto os trabalhos e as dores abençoadas, geralmente incompreendidos pelos homens, lhes burilam o caráter e os sentimentos, prodigalizando-lhes os benefícios inapreciáveis do progresso espiritual, a licenciosidade desses dias prejudiciais opera, nas almas indecisas e necessitadas do amparo moral dos outros espíritos mais esclarecidos, a revivescência de animalidades que só os longos aprendizados fazem desaparecer.

Há nesses momentos de indisciplina sentimental o largo acesso das forças da treva nos corações e, às vezes, toda uma existência não basta para realizar os reparos precisos de uma hora de insânia e de esquecimento do dever.

Enquanto há miseráveis que estendem as mãos súplices, cheios de necessidade e de fome, sobram as fartas contribuições para que os salões se enfeitem e se intensifiquem o olvido de obrigações sagradas por parte das almas cuja evolução depende do cumprimento austero dos deveres sociais e divinos.

Ação altamente meritória seria a de empregar todas as verbas consumidas em semelhantes festejos, na assistência social aos necessitados de um pão e de um carinho.

Ao lado dos mascarados da pseudo-alegria, passam os leprosos, os cegos, as crianças abandonadas, as mães aflitas e sofredoras. Por que protelar essa ação necessária das forças conjuntas dos que se preocupam com os problemas nobres da vida, a fim de que se transforme o supérfluo na migalha abençoada de pão e de carinho que será a esperança dos que choram e sofrem?

Que os nossos irmãos espíritas compreendam semelhantes objetivos de nossas despretensiosas opiniões, colaborando conosco, dentro das suas possibilidades, para que possamos reconstruir e reedificar os costumes para o bem de todas as almas.

É incontestável que a sociedade pode, com o seu livre-arbítrio coletivo, exibir superfluidades e luxos nababescos, mas, enquanto houver um mendigo abandonado junto de seu fastígio e de sua grandeza, ela só poderá fornecer com isso um eloquente atestado de sua miséria moral.

Por Emmanuel - Psicografia de Chico Xavier "

Pelo exposto, conclui-se que como espíritas devemos entender as consequências do mal uso do livre-arbítrio e da infalibilidade da lei de causa e efeito. Portanto ao estudarmos a Doutrina Espírita passamos a ter  conhecimento de que todos os atos de excessos sejam no carnaval ou em qualquer dia de nossas vidas serão cobrados à medida em que forem cometidos e que o melhor para nossa vida futura é evitar contrair mais débitos diante da lei de Deus.

Portanto, ao festejar o Carnaval deve levar em consideração que o fato de estar presente nas brincadeiras não o obriga a agir como a grande maioria, não precisa deixar-se influenciar e nem conectar-se com as práticas de ações menos dignas. Redobre os cuidados nas ações e nos pensamentos.

Por fim, lembre-se que é livre para realizar as suas vontades, mas, não esqueça que deve ser responsável por tudo que fizer!

Bom Carnaval a todos !
  
Bibliografia:

- Mensagem sobre o carnaval (Chico Xavier pelo espírito Emmanuel);


*MARIA DE LOURDES MORAES LIRA




















-Advogada e Consultora; 
-Especialista nas Áreas Trabalhista e Previdenciária - OAB/SP nº 130.175 e
-Espírita e estudante da Doutrina

Nota do Editor:


Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

O Superendividamento e o Consumidor



Autora: Laísa Brito de Sousa(*)

O superendividamento é um problema na sociedade de consumo, e vem se agravando quotidianamente. O superendividado pode ser conceituado como aquela pessoa natural que, de boa-fé, tem mais débito que crédito. Isto ocorre, em grande parte, pela concessão de crédito pelas instituições financeiras, ou seja, os empréstimos. 

Um formato de empréstimo que facilita a obtenção do crédito junto aos bancos é o empréstimo consignado em folha de pagamento. Nesta modalidade a parcela mensal do pagamento do débito é descontada diretamente da folha de pagamento do trabalhador. Isto gera mais segurança ao banco que, em contrapartida, oferece melhores condições ao consumidor, e por isso, esta modalidade de concessão de crédito é atraente para o consumidor.

Alguns tribunais, incluindo o STJ, entendem que o desconto efetuado em débito automático, diretamente da conta corrente do consumidor, equipara-se aos descontos feitos na folha de pagamento, pois é uma interferência direta ao salário e prejudica igualmente sua subsistência. 

Ocorre que a legislação brasileira, para proteger o trabalhador e seu salário, impôs um limite consignatório, não permitindo que fossem descontados mais que 35% dos salários dos trabalhadores, conforme será adiante exposto. 

Em que pese a limitação não esteja prevista no Código de Defesa do Consumidor (CDC), não há dúvidas que a relação jurídica no contrato de mútuo do banco com pessoas naturais, em regra, trata-se de relação consumerista. Isto porque há um fornecedor (Banco), prestando um serviço (mútuo) a um consumidor (pessoa natural).

Sendo uma relação consumerista, todo o microssistema do CDC juntamente com seus princípios se aplica à análise do caso. O CDC desempenha um papel de reequilíbrio da relação consumerista, e umas das formas é transferindo o risco do negócio para aquele que detém posição privilegiada na relação, o fornecedor. 

1.1. A lei versus o contrato 

O limite consignável está determinado em Lei. Este limite está previsto para os trabalhadores regulados pela CLT na Lei 10.820/03, no art. 1º, §1º, que foi modificado pela Lei 13.172/15, que dispõe: 
"Art. 1º Os empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, poderão autorizar, de forma irrevogável e irretratável, o desconto em folha de pagamento ou na sua remuneração disponível dos valores referentes ao pagamento de empréstimos, financiamentos, cartões de crédito e operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil, quando previsto nos respectivos contratos. 
§ 1º O desconto mencionado neste artigo também poderá incidir sobre verbas rescisórias devidas pelo empregador, se assim previsto no respectivo contrato de empréstimo, financiamento, cartão de crédito ou arrendamento mercantil, até o limite de 35% (trinta e cinco por cento), sendo 5% (cinco por cento) destinados exclusivamente para: 
I - a amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito; ou (Incluído pela Lei nº 13.172, de 2015) 
II - a utilização com a finalidade de saque por meio do cartão de crédito."
A limitação para descontos consignados em folha de pagamento também é prevista para os servidores públicos federais, a matéria é regulada na Lei 8.112/90, em seu art. 45º, §1º. Há também previsões que limitam descontos para servidores públicos estaduais, devendo ser consultada a lei de cada estado.

Ora, se há uma limitação para o percentual máximo de desconto, qualquer valor que ultrapasse o referido percentual é ilegal. 

Mesmo quando firmado um contrato de empréstimo pelo consumidor com as instituições financeiras, se ultrapassado os limites legais, este acordo não deve prevalecer sobre a lei, que é cogente e determina expressamente percentual máximo que pode ser descontado da folha de pagamento. Em que pese a autonomia privada ser um valor importante de nosso ordenamento jurídico, este não deve se sobrepor à lei vigente e nem ao princípio da dignidade da pessoa humana e da garantia do mínimo existencial. 

1.2. Da responsabilidade das instituições financeiras

Um dos princípios que devem ser observados pelos fornecedores nos contratos de consumo é a boa-fé objetiva. E um dos concretizadores da boa-fé objetiva é o dever de informação, sendo este um direito básico do consumidor (art. 6º CDC). 

Nos contratos de empréstimo bancário são imprescindíveis informações tais como: margem consignável e da base de cálculo das prestações; incidência de custos operacionais agregados e qualquer outra taxa ou acréscimo eventualmente incidentes; taxa de juros; valor total do empréstimo, com e sem juros; valor, número e periodicidade das prestações; data do início e fim das prestações são imprescindíveis para o bom cumprimento da obrigação de informar. 

Ainda, é dever da instituição financeira, a análise do crédito, através da solicitação de esclarecimentos quanto à existência de outras dívidas, bem como quanto às despesas do consumidor e o volume de comprometimento da renda do consignado, advertir dos riscos ou mesmo negar o crédito, se aquela concessão ultrapassar os limites legais.

É importante frisar que a letra da Lei diz expressamente que a totalidade dos descontos consignados não pode ultrapassar 35% da remuneração mensal do trabalhador. 

Essa norma visa a preservar o mínimo indispensável para a subsistência digna do trabalhador, evitando que o descontrole financeiro cause prejuízo ao seu sustento e de sua família. É necessário que haja a adequação do comprometimento da renda, a fim de que seja preservada a proteção à dignidade da pessoa humana, sempre que houver superação desse limite. 

Essa posição se harmoniza com o princípio da boa-fé que deve orientar a atuação dos fornecedores de produtos e serviços no mercado de consumo, em especial na concessão de crédito, a qual deve ser realizada de maneira ética e responsável, a fim de não inviabilizar a subsistência digna do mutuário. 

A limitação imposta por lei, portanto, não se refere a cada empréstimo individualmente e nem mesmo deve ser analisado apenas o percentual que cada mutuante desconta, mas sim a totalidade do que está sendo descontado dos ganhos do consumidor. 

É responsabilidade das Instituições Financeiras fornecer o serviço de maneira a cumprir a lei, não concedendo crédito consignado a quem já possui 30% (trinta por cento) de seu salário líquido comprometido com outras dívidas. 

Caso não façam esta verificação, devem arcar com os riscos decorrentes, como por exemplo, diminuir a parcela do empréstimo para se adequar à lei. 

Portanto, não só o consumidor deve fazer escolhas responsáveis ao adquirir crédito, em especial o crédito consignado que afeta diretamente o seu salário, como o fornecedor deve agir de forma responsável, em acordo com a Lei, e suportando os riscos do negócio.
*LAÍSA BRITO DE SOUSA

















-Formada em Direito pelo UniCeub;
-Pós-Graduanda em Advocacia Empresarial, Contratos, Responsabilidade Civil e Família, pelo Instituto de Direito Público - IDP;
-Com experiência nas questões afetas à Vara Cível, de Família e Órfãos e Sucessões; 
-É sócia no Escritório Henrique de Sousa & Advogados.
Contato pelo telefone: (61) 99982-7343

Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Refugiados - O Direito de Recomeçar




Autor: Marcelo Augusto dos Santos Pinheiro(*)


Como sabemos a Venezuela com a ditadura do sanguinário Maduro está causando um enorme exodo de pessoas sendo o Estado de Roraima o recebedor de um número gigantesco de refugiados que vem para o Brasil para ter um pouco mais de dignidade.

Ha professores, engenheiros, administradores, doutores que especialmente aqui em Manaus tentam ganhar a vida fazendo faxinas, vendendo frutas, tudo isso para dar uma condição melhor a ele e a sua família. 

A responsabilidade pela proteção internacional dos refugiados é da competência da ACNUR, pois o Alto Comissariado não possui território próprio, sendo necessários contribuição dos Estados e da Sociedade Civil.

Por ser uma questão complexa que envolve a abrangência do Direito Internacional, o direito internacional dos refugiados por ser uma subespécie dos direitos internacionais humanos, está sujeito às variações legislativas de cada país em que há a recepção dos migrantes. Em um cenário que exista apenas dois Estados envolvidos, é fácil visualizar a questão: um solicitante de refúgio pode pedir auxílio a um Estado por uma questão que envolva um dado social de seu país de origem, mas que, por outro lado, represente um ma violação de direitos humanos no país de acolhida, exatamente o que ocorrer na Venezuela. 

A situação dos refugiados é baseado em um cenário repleto de fragilidades, e que se agrava para o chamado grupo vulnerável, composto por crianças, mulheres e meninas. Isso ocorre porque esse determinado grupo encontra-se mais inclinado a tornar-se vítima de abuso sexual, sofrer exploração e, consequentemente , tornar-se alvo do tráfico internacional de pessoas. 

Na situação específica do Brasil, o solicitante de refúgio recebe um número de protocolo do CONARE com validade por um ano, até que seja julgado, ou seja, ele vai passar por um critério de elegibilidade. São feitas por entrevistas sendo a primeira na Polícia Federal, passando nessa entrevista à PF encaminha relatório para o CONARE. O órgão recebe esse pedido de refúgio e é marcada por ma entrevista individualizada com o refugiado. Para cada solicitante, uma entrevista. Os solicitantes tem acesso ao SUS para casos de emergência, tem direito a carteira de trabalho e acesso ao sistema SEST-SENAT para fazerem cursos profissionalizantes. 

A Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro, no seu artigo 7, estabelece que se aplicará as questões de família a lei do domicílio das pessoas. Isso quer dizer que aos refugiados especificamente os venezuelanos e de qualquer outra nacionalidade, se aplicará o direito brasileiro para todas as questões envolvendo direitos da personalidade e direitos de família. A nova lei de migração não trata especificamente dos refugiados pois se tem legislação própria para essa categoria de migrantes, mas se aplica também naquilo que for compatível. 

Por fim de acordo com o relatório de de refúgio em números - 3ª. Edição de 2017 pelo CONARE, da Secretaria Naciinal de Justiça do Ministério da Justiça, o Brasil conta com 10.145 refugiados reconhecidos, sendo que destes apenas 5.134 continuam no Brasil com o registro ativo. A Venezuela é a nação que mais possui solicitantes devido a situação política atual. 

Mediante essa situação, cabe a nós do Estado Brasileiro, preenchidos todos os requisitos objetivos e subjetivos dar o abrigo necessário para que indivíduos que por qualquer motivo saia do seu país de origem, seja tratado com o mínimo de dignidade e amor e a ele é dado o direito de recomeçar baseado no maior princípio do direito brasileiro: o da dignidade humana. 

*MARCELO AUGUSTO DOS SANTOS PINHEIRO













-Advogado especialista em Direito Civil e Processo Civil;
-Área de atuação: cível, ambiental, eleitoral e constitucional; e
-Fundador da Marcelo Pinheiro - Advocacia

Nota do Editor:

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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

FLY 3003



Autora: Lia  d'Assis*

De repente surgiu aquele carro. Do nada surgiu aquele carro. Ela freou com toda a força e sentiu o cheiro do pneu queimando o asfalto. Quando o carro parou, a milímetros do outro, ela fechou os olhos, as pernas bambas, nem ouvindo o palavrão do motorista que estava atrás. Pesava-lhe o corpo. Não era apenas a descarga de adrenalina. Pesava-lhe o corpo pelas tantas noites pouco ou mal dormidas. Pesavam-lhe as pálpebras pelas lágrimas não derramadas. Pesava-lhe a alma sem asas. 

Lentamente relaxou os dedos que, ato reflexo, apertavam com força o volante. Respirou fundo, os olhos ainda fechados, repetindo baixinho "Não foi nada, não foi nada", como um mantra que lhe devolveria o domínio das pernas. Foi despertada subitamente pelo barulho das buzinas. O sinal abrira e a longa fila de veículos reclamava seu direito de seguir a vida. Ou ao menos o caminho para o trabalho, para a escola, para o banco, para qualquer instituição que lhe engoliria a vida. Ainda trêmula, ela ligou o carro, engatou a primeira marcha, colocando-se em marcha novamente na procissão urbana. "Vai passar", pensou. Repetiu algumas vezes. Mentiras repetidas à exaustão acabam se tornando verdades, com ela haveria de dar certo. 

Mas não passava. Sentia na garganta a náusea. Os dissabores de anos, engolidos a seco, o medo de perder o emprego, de não conseguir pagar as parcelas do financiamento, noites em claro pensando se teria coragem de pedir o divórcio, a indiferença da família, a angústia de não se sentir bonita apesar de todas as dietas e todas as roupas novas, tudo lhe subia do estômago, mistura acre de nervosismo, dor e frustração. O sinal vermelho. Pare. Pare com isso. Ela repetiu: vai passar. 

Mas não passava. Olhou seus olhos no retrovisor. Antes perfeitamente delineados, agora eram duas manchas horrorosas, entre o roxo e o acinzentado. Ela passou a mão pelos olhos, pelo rosto, assim que freara bruscamente para evitar o acidente, espalhando a maquiagem mecanicamente feita naquela manhã. Ela passou a mão pelo rosto novamente, com cuidado, como se as manchas sobre os olhos fossem dois hematomas, duas bofetadas da vida. A carícia leve pela pele do rosto trouxe-lhe um breve meio sorriso. Há tanto tempo ela não se acarinhava, nem em gestos nem em palavras. Demorou-se no gesto, sentindo a ponta dos dedos desenhando os lábios, o nariz adunco, os cílios, as rugas, a linha de expressão entre as sobrancelhas, escavada pelas preocupações. 

Novamente o sinal verde, siga, as buzinas gritando: siga. Sempre em frente. Mas as pernas se recusaram. Ela novamente olhou seus próprios olhos no retrovisor. Há muito não se olhava nos olhos. Há muito não se encarava para não precisar reconhecer a dor, para não precisar dizer as verdades. E se olhando nos olhos ela soube – amava-se ainda. Quase tinha se perdido, mas era tempo. As buzinas continuavam, carros resfolegando como animais enraivecidos, motoristas a ultrapassavam gritando palavrões inaudíveis pelos vidros fechados, mas ela só olhos para os seus olhos, ouvidos para o silêncio que a tomava, um silêncio de compreensão. 

Como se tivesse emergido de águas profundas, ela de repente ouviu o barulho ao redor. Atrás dela, um motorista manobrava, tentando ultrapassá-la, e, logo o fez, o sinal fechou novamente. O homem gritava e fazia gestos impacientes e obscenos. Como se tivesse acordado de um sono profundo, ela acompanhava com esforço seus braços enfáticos. Achou graça, era como se ele fosse um daqueles bonecos infláveis colocados na pista para sinalizar obras, movendo desengonçadamente os braços. Ela começou a rir. E de repente, seus olhos desceram e se fixaram na placa do carro: FLY 3003. 

Leu novamente, agora em voz alta, a placa do carro. Notou que as letras formavam uma palavra em inglês. E os números, curiosamente, formavam um número que continuava o mesmo ao ser lido em ambas as direções. Como se chamavam esses números? Não se lembrava. Mas sabia o que significava a palavra, significava voar. Ela sabia por causa da única viagem internacional que tinha feito. Três mil e três. Também podia ser trinta zero três. Trinta do três. Sua data de nascimento. Como era mesmo o nome desse tipo de número?

Novamente o verde tomou conta dos semáforos e ela ligou o carro, ainda pensando no nome. Paráfrase? Paranomásia? Tinha certeza de que começava com "pa". Voar. Não podia ser "voe"? Não podia ser um convite? PALÍNDROMO! A palavra veio inteira em sua mente, em caixa alta. Era isso! Número palíndromo. Mas agora não era mais. Não era mais 3003! Era 30.03. Voe, 30.03! Era um convite, ela teve certeza agora. Um convite para as pessoas nascidas no dia 30 de março voarem. Um convite para que sua alma ganhasse asas. 

Ela prosseguia na longa avenida, agora as pernas obedeciam, a respiração se controlava, as mãos firmes, mas não mais tensas no volante. Dirigia como se a longa avenida não tivesse fim, e só muito depois percebeu que perdera a saída que a faria continuar no trajeto para o trabalho. Fez o primeiro retorno que encontrou. Sim, chegaria atrasada no trabalho. Mas estranhamente, essa conclusão não a afligiu. Dirigia devagar, como se nada ou ninguém a esperasse. 

Quando entrou na sala que dividia com mais três colegas, notou olhares estranhos. Passou a mão, instintivamente pelo rosto. Era a maquiagem borrada que criava aqueles pontos de interrogação nos olhos alheios? Ou era a flama que se via em seus próprios olhos? Não quis se explicar. Não queria palavra que rompesse aquele silêncio que a abraçava, compreensivo e benfazejo. Então apenas sentou-se em sua mesa. Diante do computador ainda desligado, um origami. Ela não sabia como aquele passarinho tinha vindo parar ali, mas sabia que, mais uma vez, eram as asas de que sua alma precisava tanto, tanto... 


* LIA D'ASSIS










-Pseudônimo de Juliana de Souza Topan é Licenciada em Letras;
- Mestra em Educação e Doutoranda em Teoria Literária pela UNICAMP;
-Professora de Literatura no ensino médio e superior no Instituto Federal de São Paulo (IFSP);
-Autora dos livros infanto-juvenis Embaixo da Cama (Adonis, 2013) e Janelas Abertas (Adonis, 2014), do volume de poemas Nem asas pelos ares (Urutau, 2017) e de contos e crônicas publicadas no blog Palavras em trânsito (www.palavrasemtransito.blogspot.com).  

Nota do Editor:

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domingo, 24 de fevereiro de 2019

Dores, Desesperos; Nossa Vida e Nossa Morte




O que quero exterminar realmente? Será que neste mundo de possibilidades, podemos mesmo acreditar que só exista uma maneira de "nos livrarmos" do problema? 

O número de suicídio vem crescendo assustadoramente no Brasil, principalmente entre jovens de 15 a 25 anos. Mas não é raro sabermos de casos de crianças que idealizaram e/ou cometeram atos contra suas próprias vidas.

Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), 90% dos casos de suicídio poderiam ser prevenidos. E quais seriam essas formas de prevenção? 

A dinâmica de vida atual tem se tornado grande vilã quanto à qualidade de vida e saúde mental. A regra do ter em detrimento ao ser, tem diminuído substancialmente a empatia e aumentado as exigências e diferenças.

Está difícil acompanhar tudo, dar conta de tudo, ser bom em tudo. E a cada dia é mais frequente ouvirmos rotulações dessas pessoas que buscaram o suicídio como sendo um comportamento para chamar a atenção, de maneira pejorativa. 

É óbvio que é para chamar a atenção! É um grito de dor carregado de desespero, clamando por socorro, uma manifestação da desesperança frente ao sofrimento real de quem o vivencia.

E eu me questiono: Será que é da vida mesmo que essas pessoas querem se libertar? Não creio. Elas querem se livrar da dor que carregam em suas almas, das decepções, dos fracassos e, por isso, muitas vezes desejam não mais existir, pois não mais existindo, extingue-se também toda a angústia enlouquecedora, toda a dor que não conseguem nomear. 

Penso que o modelo de educação familiar atual tem fomentado essa busca pelo fim, uma vez que é retirada da criança e do jovem a capacidade de lidar ou aprender a lidar com as frustrações, normal na vida de todos nós. Dói muito se frustrar e, se não tiver adquirido resiliência, a amargura daquele evento parece se eternizar. A impossibilidade de reverter a situação, de dar a volta por cima, clama voluptuosamente pelo fim, pelo fim do desespero, que por sua vez é causado pelo fato de existir. 

Claro que há vários motivos outros que podem levar uma pessoa a atentar sobre sua vida. De pequenas a grandes justificativas aos nossos olhos, sempre há um intenso sofrimento bradando por um fim. 

Não nos cabe julgar, mas nos é possível acolher, apontar caminhos, opções que podem ser úteis para inspirar esperança e retomar a autoconfiança e a força para lutar, assim como a serenidade e a clareza para enxergar que nossas vidas se assemelham a gangorras que nos colocam hora lá no alto e no momento seguinte bem abaixo, e novamente acima e assim sucessivamente.

A chuva e o sol acontecem no dia a dia de todos nós. Não é fugindo que se resolverão os problemas. E acreditem: todos nós podemos muito mais do que imaginamos. Então, sejamos a diferença em nossa vida e na vida dos outros. A gente precisa reverter esse quadro, falarmos de nossas emoções, mostrarmos o quanto amamos as pessoas e o quanto podemos ser especiais na vida de muita gente. Precisamos saber de nossa importância.

O problema deixa de fazer sentido logo adiante. A vida não mais será retomada. E todas as possibilidades de tudo, extinguem-se com a morte, seja esta concreta ou subjetiva.

* SUELI DONISETI DOS SANTOS










-Psicóloga e Neuropsicóloga;
-Graduada pela Universidade Cruzeiro do Sul;

-Especialização em Neuropsicologia pela USP;  
Atua na Psicologia Clínica sob a abordagem Cognitivo-Comportamental, com atendimentos a crianças, adolescentes e adultos.
Contato:11 95319-0439 

Nota do Editor:
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