Na Pandemia, o isolamento
social carrega de solidão os corações de muitos de nós. Para os vanguardeiros,
a opção de relacionar-se à distância tornou-se mais popular do que nunca. Já para os mais antiliberais, isso não é tão prosaico
assim. Eu me encaixo no meio, dou uma pisada para frente e duas para trás. E a
ideia fica na espreita lá dentro de mim. Mas o
meu juízo é medroso. Acho meio
perigoso envolver com gente estranha.
Pelo sim ou pelo não, conforta saber que se pode ler nas entrelinhas. Para isso, basta ter disposição e boa vontade para pegar as senhas deixadas nos rastros das conversas triviais. Com esse pensamento, embora custa-me assumir, ganhou força a tentação de cair nas graças da redinha para ver o que é que tem.
Era tarde da noite quando me chega um convite de amizade. Claro que me fiz de rogada, não aceitei de primeira. Dei uma bisbilhotada no perfil do bonito.
Passadas algumas semanas, mas garanto que, de pura curiosidade, resolvo aceitar o convite. Mal foi notificado da minha medrosa decisão, o novo amigo, sem pudor algum, me surpreende com essa pérola:
— Boa noite! Como está a senhorita? Ou , devo dizer...senhora? Mora sozinha?
Respondi secamente:
— Estou ótima!
— Você tem uma boca linda e
quero beijar esses lábios carnudos e deliciosos.
Você gosta de beijos?
Surpresa com a imediata investida do camarada, fiquei muda e pasma. Aí, demorei mais umas semanas para interagir com a pessoa. Ganhei tempo para pensar no que responder para aquela alma beijoqueira. Algum tempo depois, resolvo aparecer novamente no chat. E para minha não surpresa, lá vem a figura com o beiço disponível e a ansiedade renovada:
Não era possível um disparo daquele. De raiva mesmo que decidi entrar no jogo do danado:
— Eu gosto de beijos sim. Mas, tenho medo de gente desconhecida! E mais, gosto de olhar nos olhos, sentir o cheiro da proximidade comedida. Aprecio o arrepio inesperado do primeiro entrelaçar de dedos. Não sei sair beijando assim de primeira. Aliás, sou romântica. Enobreço cada detalhe da paquera e do olhar comprometido.
De nada adiantou. Nenhuma de minhas meigas palavras abalou a devassidão irracional daquele moço. Desse modo, ele não se dá por vencido e investe:
— Pois eu não tenho dessas frescuras não. Gosto de partir direto para o abraço, digo: beijo. Chego logo beijando muito!
Sério que não acreditei que li
aquilo:
Confesso que comecei a achar graça de tudo aquilo. No entanto, tinha uma pontinha de vaidade feminina, que insultada, resistia lá dentro de mim. Foi esse lampejo de juízo que fez crescer a disposição de levar esse drama para uma abordagem mais sensata. Ao que propus:
— Então posso afastar a primeira ideia que me veio à cabeça na ocasião em que aceitei o convite de amizade desse nobre Cavalheiro?
Ele demorou a responder. Estaria calibrando? Ou subitamente perdeu a vontade insana de beijar? Mas, para meu deleite, a conversa muda de tom e refresca meu estado de espírito:
Percebi que o rapaz se deu conta de que, com os seus métodos, ganharia de mim apenas a indiferença. Dias depois, e aos poucos, fui respondendo ao que me convinha:
— Sou solteira, e no momento, sem interesse em relacionamentos. Somente amizade.
Senti o silêncio do outro
lado. Certamente ele estava desapontado. No dia seguinte, o elegante Cavalheiro
aparece:
— Bom dia, minha doce Lady! Como você está? Tem um tempinho para falar comigo?
...
— Boa tarde, minha doce amada
Lady! Você sumiu...cadê você, menina?
...
— Boa noite, minha querida Lady!
Por favor, fale comigo.
...
— Minha bela Lady, não suma de
mim. Me diga onde você está que vou te encontrar.
...
...
No fim, ele talvez tenha
encontrado a não sonhada Lady dele. E eu? Bem, avante, cavalheiro!
*VALDIRENE DIAS FERREIRA
Parabéns!
ResponderExcluirMinha escritora predileta.
Muito orgulho de você.
Excelente crônica!😘
Muito bom!
ResponderExcluirRealmente o cotidiano de muitos nesta pandemia, mas a admiração pelo escrito de uma amiga é indiscritivo.
Continua publicando. É muito bom viver o cotidiano do outro, mesmo que distante.