segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Objeto... Logo Eu?


 Autora: Valdirene Dias(*)

Na Pandemia, o isolamento social carrega de solidão os corações de muitos de nós. Para os vanguardeiros, a opção de  relacionar-se à distância  tornou-se mais popular do que nunca. Já  para os mais antiliberais, isso não é tão prosaico assim. Eu me encaixo no meio, dou uma pisada para frente e duas para trás. E a ideia fica na espreita lá dentro de mim. Mas o  meu juízo é medroso.  Acho meio perigoso  envolver com  gente estranha.

Pelo sim ou pelo não, conforta saber que se pode ler nas entrelinhas. Para isso,  basta ter disposição e boa vontade para pegar as senhas deixadas nos rastros das conversas triviais. Com esse pensamento, embora  custa-me assumir, ganhou força a tentação de  cair nas graças da redinha para ver o que é que tem.

Era tarde da noite quando me chega um convite de amizade. Claro que me fiz de rogada, não aceitei de primeira. Dei uma bisbilhotada no perfil do bonito.

Passadas algumas semanas, mas garanto que, de pura curiosidade, resolvo aceitar o convite. Mal foi notificado da minha medrosa decisão, o novo amigo, sem pudor algum, me surpreende com essa pérola:

— Boa noite! Como está a senhorita? Ou , devo dizer...senhora? Mora sozinha?

Respondi secamente:

— Estou ótima!

 Do outro lado, o rapaz não se intimida com a minha pouca vontade de conversar e dispara:

— Você tem uma boca linda e quero beijar esses lábios  carnudos e deliciosos. Você gosta de beijos?

Surpresa com a imediata investida do camarada, fiquei  muda e pasma.  Aí, demorei mais umas semanas para interagir com a pessoa. Ganhei tempo para pensar no que responder para aquela alma beijoqueira.   Algum tempo depois, resolvo aparecer novamente no chat. E para minha não surpresa, lá vem a figura com o  beiço disponível e a ansiedade renovada:

 — Vamos nos encontrar para trocarmos muitos beijos.  Prometo tirar-lhe o fôlego, sua gostosa!

Não era possível um disparo daquele.  De raiva mesmo que decidi entrar  no jogo do danado:

— Eu gosto de beijos sim. Mas, tenho medo de gente desconhecida!  E mais, gosto de olhar nos olhos, sentir o cheiro da proximidade comedida. Aprecio o arrepio inesperado do primeiro entrelaçar de dedos. Não sei sair beijando assim de primeira. Aliás, sou romântica. Enobreço  cada detalhe da  paquera e do  olhar comprometido.

De nada adiantou. Nenhuma de minhas meigas palavras abalou a devassidão irracional daquele  moço. Desse modo, ele não se dá por vencido e investe:

— Pois eu não tenho dessas frescuras não. Gosto de partir direto para o abraço, digo: beijo. Chego logo beijando muito!

Sério que não acreditei que li aquilo:

 — O quê mais de extraordinário você sabe fazer para ganhar tantos beijos de uma moça?

 Ele não respondeu.

Confesso que comecei a achar graça de tudo aquilo. No entanto, tinha uma pontinha de vaidade feminina, que insultada, resistia  lá dentro de mim.  Foi esse lampejo de juízo  que fez crescer a disposição de levar esse drama para uma abordagem mais sensata. Ao que propus:

— Então posso afastar a primeira ideia que me veio à cabeça na ocasião em que aceitei o convite de amizade desse nobre Cavalheiro? 

Ele demorou a responder. Estaria calibrando?  Ou subitamente  perdeu a vontade insana de beijar?  Mas, para meu deleite, a conversa muda de tom e refresca meu estado de espírito:

 — Você é uma Lady, peço mil desculpas pela palavras eufóricas. Desde o inicio gostei de você! Onde você mora? Quero muito te conhecer. Você é  diferente.  É solteira.  Vou te passar meu contato. ( XX) XXXX XXXX.  Meu Deus, estou tão envergonhado. Falei muita bobagem, né?

Percebi que o rapaz se deu conta de que, com os seus métodos, ganharia de mim apenas a indiferença. Dias depois, e aos poucos, fui respondendo ao que me convinha:

— Sou solteira, e no momento, sem  interesse em relacionamentos. Somente amizade.

Senti o silêncio do outro lado. Certamente ele estava desapontado. No dia seguinte, o elegante Cavalheiro aparece:

— Bom dia, minha doce Lady! Como você está? Tem um tempinho para falar comigo?

...

— Boa tarde, minha doce amada Lady! Você sumiu...cadê você, menina?

...

— Boa noite, minha querida Lady! Por favor, fale comigo.

...

— Minha bela Lady, não suma de mim. Me diga onde você está que vou te encontrar.

...

...

 Nesse desencontro virtual, foi dispensada aquela disposição para seguir as pistas. Como também desnecessário foi, a leitura nas entrelinhas. E depois ainda me lembrei que posso ser uma dessas pessoas para ser cheirada e guardada.

No fim, ele talvez tenha encontrado a não sonhada Lady dele. E eu? Bem, avante, cavalheiro!

*VALDIRENE DIAS FERREIRA



 







-Graduada em Letras pela FENORD - Fundação Educacional Nordeste Mineiro- Teófilo Otoni - MG;
 - Apaixonada por escrever;
-Cronista e contista

Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

2 comentários:

  1. Parabéns!
    Minha escritora predileta.
    Muito orgulho de você.
    Excelente crônica!😘

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  2. Muito bom!
    Realmente o cotidiano de muitos nesta pandemia, mas a admiração pelo escrito de uma amiga é indiscritivo.
    Continua publicando. É muito bom viver o cotidiano do outro, mesmo que distante.

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