Na medida em que regula as relações humanas, o Direito não tem sentido e razão de ser se não for – ele mesmo – humano. Essa construção, aparentemente pleonástica, serve para demonstrar o que deveria ser evidente para todos: o Direito não tem como função a limitação arbitrária das liberdades; muito pelo contrário, seu objetivo é as reconhecer e, com isso, tutelar os anseios de cada comunidade, propiciando a cada indivíduo, na maior medida possível, a fruição de sua existência e a oportunização de caminhos que realizem ao máximo sua condição humana. Isso exige, então, uma proteção à liberdade, principalmente no que diz respeito às decisões existenciais.
Logo, o jurista deve ter um olhar sociológico e psicológico para os fatos da vida, percebendo seus valores subjacentes, assim como os anseios sociais que os circundam, para definir, em primeiro lugar, se são merecedores de tutela jurídica. Se o forem, é dever do jurista os defender tão prontamente quanto possível, pois o fato da vida que privilegia a dignidade da pessoa humana deve ser percebido pelos jurisconsultos com brevidade, alterando-se a lei ou sua interpretação, com a agilidade possível, para refletir o novo contexto.
Nessa ordem de ideias, há um fato da vida clamando por atenção. Trata-se da situação daqueles que, saudáveis ou já adoecidos, possuem diretivas relativas aos tratamentos médicos que se lhes devem ser aplicados (ou não) quando não puderem mais externar sua volição. Referimo-nos às diretivas antecipadas de vontade.
Se analisadas segundo o prisma da teoria do fato jurídico, as diretivas antecipadas de vontade são, sem dúvida, negócio jurídico, isto é, declaração de vontade destinada a produzir efeitos que o declarante pretende e o direito reconhece, para quando estiver em estado de terminalidade da vida e impossibilitado de manifestar qualquer vontade.
É um ato unilateral, personalíssimo, gratuito e revogável. É, assim, o documento escrito (na melhor das hipóteses feito por escritura pública) por uma pessoa capaz, com a finalidade de manifestar previamente sua vontade acerca de tratamentos e não-tratamentos a que deseja ser submetida quando estiver impossibilitada de manifestar sua vontade.
As diretivas antecipadas de vontade visam pois, a um só tempo, garantir ao paciente que sua vontade será atendida no momento de terminalidade da vida, e, também, garantir ao médico um respaldo jurídico para a tomada de decisão em situações conflitivas.
As principais normas constitucionais aplicáveis a esse assunto são, sem dúvida, a proteção à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), a proibição de tratamento desumano (art. 5º, III, da CF/88) e a proteção da autonomia da vontade, princípio constitucional implícito, decorrente de vários direitos fundamentais previstos no art. 5º da CF/88. Todos esses princípios constitucionais indicam a existência de um direito fundamental à morte digna.
Em termos de legislação infraconstitucional, não há no Brasil, ainda, legislação específica sobre o tema.
Em âmbito infralegal, porém, há dois importantes regramentos deontológicos sobre o assunto. Trata-se da Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 1.931/2009, que institui o atual Código de Ética Médica, em vigor desde 2010; e a Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 1.995/2012 que dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes.
Esses regulamentos trazem grande avanço ao reconhecimento da importância da vontade do paciente para a suspensão de tratamentos fúteis, mas, ainda assim, não são suficientes para albergar com tranquilidade os problemas práticos atinentes a esse delicado assunto, na relação médico-paciente, pelos motivos acima mencionados (há proteção administrativa, mas ainda não há segurança civil e criminal).
Diretivas antecipadas de vontade não devem ser confundidas com eutanásia, ortotanásia, distanásia, suicídio assistido, mistanásia, mandato duradouro e testamento vital.
Contudo, as diretivas antecipadas de vontade não excluem, exatamente, conceitos como eutanásia, ortotanásia etc., mas sim tratam justamente sobre elas. Com isso quero dizer que a eutanásia e os outros conceitos atinentes ao direito da chamada morte digna podem ser objeto das diretivas antecipadas de vontade.
O que deve ser verificado, contudo, é a sua efetiva validade e eficácia. Em uma diretiva, então, o paciente pode, por exemplo, tanto expressar seu desejo pela obstinação terapêutica (distanásia) como, ao contrário, manifestar-se desejando a ortotanásia ou, mais ainda, pode manifestar-se pela eutanásia direta e ativa.
Logo, com relação ao objeto do negócio jurídico diretivas antecipadas de vontade, a sua validade deverá ser aferida de acordo com a licitude (ou não) daquilo que se expressou.
Assim, se as diretivas antecipadas expressarem um desejo por uma eutanásia direta e ativa, o negócio será inválido por ilicitude do objeto (CC, art. 166, II), pois essa prática não é legal no Brasil, ou seja, há uma proibição de atendimento da vontade por força de disposições contrárias, estampadas no nosso ordenamento jurídico.
Se, contudo, as diretivas antecipadas de vontade contiverem um pedido de ortotanásia, este objeto deverá ser considerado válido, pois – respeitados os entendimentos contrários – a ortotanásia é lícita enquanto prática médica (conforme a Resolução CFM nº 1.805/2006), havendo de ser executada a vontade do paciente, que foi expressada por meio das diretivas; e também é tida como lícita enquanto prática médica (conforme a Resolução CFM nº 1.995/2012).
Quanto à aplicação das diretivas antecipadas, pode-se dizer que ainda hoje é bastante restrito o número de brasileiros que fizeram as suas próprias diretivas.
Várias são as razões para isso, quer para pacientes, quer para seus familiares. Exatamente por isso, ainda é bastante restrito o número de situações reais que se apresentam aos médicos, nos hospitais, requisitando deles a decisão máxima, de acordo com a vontade exarada pelo paciente no documento.
Todos esses pontos resultam numa insegurança tanto para as pessoas que querem deixar o registro de suas vontades (expressão máxima de suas liberdades) quanto para os médicos, que têm que lidar com os conflitos próprios, e/ou com os conflitos dos familiares.
Ao se elaborar as diretivas antecipadas de vontade, há alguns cuidados materiais e formais a serem tomados. Idealmente, o paciente deve contar com o auxílio de um médico na elaboração do documento, especialmente no que diz respeito à recusa de tratamentos, e à ocasião de recusá-los. A ausência de um profissional médico no momento da elaboração das diretivas da vontade, contudo, não invalida, de per si, o negócio. Mas essa ausência pode ser usada como indício de que a vontade não foi expressa de forma consciente, o que pode resultar, depois, quiçá, na invalidade do negócio.
É recomendável que o documento seja confeccionado por tabelião, em Cartório de Notas, sendo que essa medida aumentará substancialmente a segurança jurídica do negócio. Nessa hipótese, a diretiva antecipada de vontade deve ser registrada na CENSEC – Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados.
Na impossibilidade de formalização pela via do tabelião de notas, devem as diretivas pelo menos ser lançadas por escrito, e, se também isso não for possível, a declaração do paciente deve ser gravada (em áudio ou audiovisual) e/ou realizada na presença de testemunhas.
Ainda, é importante apontar que as diretivas antecipadas de vontade devem ser aplicadas apenas a casos de terminalidade. Paciente terminal é aquele cuja condição de insanabilidade é irreversível, independentemente de ser tratado ou não, apresentando alta probabilidade de morrer em tempo relativamente curto. Estado de terminalidade, portanto, é diferente de estado vegetativo persistente [EVP]. Isso porque este último é aquele estado em que o paciente mantém funções cardiovasculares, respiratórias, renais, termorreguladoras e endócrinas, alterna sono e vigília, mas não mostra nenhum contato com o meio externo e nenhuma atividade voluntária.
Por isso, em princípio e aprioristicamente, as diretivas antecipadas de vontade não se aplicariam aos casos de estado vegetativo persistente, pois a supressão dos cuidados a esse tipo de paciente não corresponderia à ortotanásia, mas, sim, a uma eutanásia passiva, ainda não autorizada no Brasil.
POR GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA
-Advogada graduada pela Faculdade de Direito da USP(1972);
-Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP;
-Coordenadora Titular do Programa de Mestrado e Doutorado da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo – FADISP;
-Coordenadora Titular da área de Direito Civil dos cursos de Especialização da Escola Paulista de Direito;
-Fundadora e Diretora Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM;
-Diretora Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Civil – IBDCivil e
-Ex Procuradora Federal.
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