“O que resta em você para amar?”
(Murasaki - Hannibal Rising)
Considerando que Winnicott tem como a base do desenvolvimento da tendência antissocial, o abandono, a de-privação, e as falhas ambientais, quem conhece a história do famoso personagem Hannibal Lecter - garoto de aproximadamente sete anos de idade que perde os pais e presencia sua irmã sendo canibalizada durante a guerra - poderia dizer que o desenvolvimento de sua tendência antissocial se enquadra na teoria winnicottiana. E é sobre isso que irei discorrer a seguir. Diante dos fatos apresentados no filme "Hannibal Rising" seria possível o desenvolvimento da tendência antissocial?
Tendência antissocial é o termo utilizado por Winnicott para definir o que inicialmente foi chamado perversão pela psicanálise, e psicopatia e sociopatia pela psiquiatria, termos esses que segundo Gabbard, G. O. (2006), muitas vezes carregam conotações negativas e de caráter pejorativo.
Apesar de a psicanálise considerar neurose, psicose e perversão, como as três estruturas psíquicas. (Quinet, A. 2005. p. 19), a perversão como estrutura não é um consenso, e Winnicott, ao referir-se aos tipos de pacientes, fala em “Três categorias de imaturidade”, sendo elas, psiconeurose, psicose e intermediários.
A psiconeurose seria a primeira das três categorias, onde estariam enquadrados os distúrbios de indivíduos que foram suficientemente bem cuidados nos estágios iniciais da vida para terem capacidade de desenvolvimento e enfrentamento, e embora ainda assim esses indivíduos possam adoecer ao lidar com dificuldades corriqueiras no decorrer da vida, é uma vida em que o indivíduo domina os próprios impulsos. Na psicose, algo de errado teria acontecido durante os primeiros cuidados empregados ao bebê, o que teria como consequência uma perturbação na estrutura básica, fazendo com que esses pacientes nunca fossem suficientemente saudáveis para tornarem-se psiconeuróticos. E na terceira categoria estariam os chamados pacientes intermediários, que são aqueles indivíduos que começaram suficientemente bem, mas o ambiente falhou em um ou vários pontos por repetidas vezes ou por um período longo de tempo, e é nessa categoria que Winnicott enquadra os pacientes com a tendência antissocial (Winnicott, D. W. 2012).
Winnicott iniciou seus estudos sobre a delinquência observando crianças em tempos de guerra, e para ele o fator ambiental e a qualidade do relacionamento entre a mãe e o bebê, são decisivos para o desenvolvimento da tendência antissocial. (Winnicott, 2012).
A tendência antissocial seria a consequência de uma de-privação, onde algo bom foi perdido, aquilo que até certo momento teve caráter positivo na experiência da criança foi retirado. E se o bebê tiver alcançado o grau de maturidade do ego que permite a capacidade de perceber que a causa do desastre foi externa e não interna, isso poderá acarretar na distorção da personalidade e o impulso de buscar a cura numa nova provisão ambiental, determinando o desenvolvimento da tendência antissocial em vez de uma doença psicótica. (Winnicott, 2000). Quanto mais jovem for a criança no momento da de-privação, mais graves podem ser as consequências, pois a capacidade de manter viva em sua memória a imagem de alguém ou a experiência boa vivida, é menor. (Winnicott, 2000).
Os escritos de Winnicott sobre a tendência antissocial em 1956 contém a ideia de delinquência como um sinal de esperança. Quando a criança sofre uma perda, é esperado que se manifeste diante do ocorrido, e quando isso não ocorre, pode ser indicativo de um distúrbio mais profundo. O comportamento antissocial estaria então ligado a um momento de esperança, em que, a criança busca reivindicar o que foi perdido. (Winnicott, 2012).
Outra característica importante na vida social de uma pessoa é o envolvimento e a capacidade de sentir culpa, que estão intimamente ligados à capacidade de empatia e aceitação de responsabilidades. Sua origem geralmente é descrita com foco na relação mãe-bebê, quando a criança sente a figura materna como uma pessoa total, então o desenvolvimento se ligaria ao período dessa relação, ao processo de maturação que formam a base do desenvolvimento da criança. Mas, para que essas características sejam desenvolvidas é necessário também um ambiente facilitador e suficientemente bom, pois as condições externas ajudarão no processo de maturação. Ver-se privada de um bom lar é ver-se privada da unidade familiar, que é algo indispensável, e que quando falta pode trazer efeitos negativos sobre o desenvolvimento emocional da criança.
Para que a capacidade de envolver-se, que começa a se desenvolver por volta dos seis meses aos dois anos de idade, e a de sentir culpa, a qual Winnicott (2007) sugere que se inicia por volta do primeiro ano de vida (...) se desenvolvam, é necessário que os estágios iniciais do desenvolvimento do bebê tenham sido normais e satisfatórios, pois é nesse período que a privação ou perda pode ter consequências devastadoras, obstruindo a capacidade de sentir culpa (Winnicott, 2012).
Sem alguém a quem possa amar e odiar a criança não pode vir a destruir o objeto amado em fantasia e descobrir o sentimento de culpa, o seu desejo e mais importante ainda, a sua capacidade de reparação, assim como distinguir a fantasia do fato, descobrindo até que ponto sua agressividade poderá de fato destruir. (Winnicott, 2012).
Winnicott (2007), afirma que o impedimento do desenvolvimento emocional nas fases iniciais pode então levar a ausência do senso moral e a uma socialização instável, “nos episódios antissociais mais sérios e mais raros, é precisamente a capacidade do sentimento de culpa que foi perdida. Aí encontramos os piores crimes” (p.29). Porém, se o desenvolvimento nos primeiros estágios de vida for satisfatório o ego irá integrar-se, tornando possível o desenvolvimento desta capacidade.
No início, o crime ou a delinquência não é satisfatório e nem aceito pelo self do indivíduo, mas depois de repetidos atos ele adquire ganhos secundários, se tornando aceitável para o self da pessoa, e é aqui que está o maior problema, pois a oportunidade de um tratamento mais efetivo, segundo Winnicott, está em sua aplicação antes que o crime se torne compulsivo e atinja os ganhos secundários. (Winnicott 2007).
É nesse estágio anterior aos ganhos secundários que estariam os atos antissociais como uma esperança de retroceder para o momento em que as coisas deram errado. Há um padrão, onde as coisas corriam bem, algo perturbou, e foi exigido além da capacidade da criança, onde houve um desmoronamento das defesas egoicas exigindo dela uma reorganização com base em um novo modelo de defesa, e ela começa então a ter esperanças e através dos atos antissociais busca encontrar uma nova provisão ambiental, alguém a quem possa amar e ser amado, e se isso for encontrado a criança pode voltar ao estágio anterior ao momento de privação, redescobrindo o bom objeto e ambiente humano. O que para Winnicott, não é um estágio fácil de alcançar, mas que deve ao menos ser entendido e aceito. Para ele, os atos antissociais são como um desafio à sociedade, em busca de alguém que os contenha, mas cuja única “cura”, seria a passagem do tempo. (Winnicott, 2012.)
Diante da ideia de “cura” Winnicott ressalta que não podemos esperar curar muitos daqueles que se tornaram delinquentes, mas podemos esperar compreender como prevenir o desenvolvimento da tendência antissocial. Evitando pelo menos a interrupção do relacionamento em desenvolvimento entre a mãe e o nenê. (Winnicott, 2007. p.30).
Dito isso, se analisarmos os dados retratados no filme com base na teoria de Winnicott, poderíamos concluir que seria sim possível desenvolver a tendência antissocial, a partir das falhas ambientais, de-privação e abandono que são apresentadas pela ficção.
O filme não nos deixa claro a idade que o personagem tinha na época em que ocorreu a de-privação, mas podemos supor que Hannibal tinha aproximadamente sete anos de idade, e embora com esta idade o ego da criança já estivesse estruturado a ponto de ser capaz de desenvolver sentimento de culpa, pode-se concluir que houve um episódio traumático que não pôde ser suportado pelo ego, o qual foi fragmentado possibilitando a perda desta capacidade.
Sobre a capacidade de envolvimento apresentada primeiro com a Sra. Murasaki e em segundo com a agente Clarice, embora superficial, se analisarmos sob a teoria winnicottiana, pode-se concluir que seria sim possível, visto que esses relacionamentos indicam a esperança de cura, de encontrar no ambiente alguém a quem possa amar e ser amado. Mas a princípio esses relacionamentos se dariam superficialmente e envoltos a ataques, uma vez que essa pessoa teria que suportá-los, levando-o a enxergar um sentido em sua vida que independesse dos seus atos antissociais. Uma vez suportados os seus ataques, principalmente quando ainda jovem, pela Sra. Murasaki, onde tudo indica foi o momento em que mais expressou a sua esperança e no qual ainda não havia obtido os ganhos secundários em seus atos, Hannibal poderia ter sido resgatado do estado em que se encontrava. Nada garante que ele seria capaz de nunca mais cometer um ato antissocial, mas ele poderia encontrar um sentido maior em sua vida, que não os envolvesse. Porém, ao dizer que a amava, a Sra. Murasaki responde `O que resta em você para amar?`.
Quanto ao canibalismo, podemos pensar no ato como sendo a revivescência de um trauma, onde o passado é evocado inconscientemente, como se a história fosse relembrada em ato, mas contada com um desfecho oposto ao que teve na cena traumática real, agora de modo favorável à ele, que antes foi vitima. A passividade transforma-se em atividade e a vingança se efetua sobre o objeto escolhido para representar a criança vitimada. (Ferraz, 2013. p.77).
Contudo, precisamos considerar que somente os dados apresentados nos filmes podem ser insuficientes para um diagnóstico Nosológico, e que o filme nos mostra uma história de vida na qual não houve o abandono materno, o que para Winnicott constitui a base da tendência antissocial. Podemos então concluir, que o desenvolvimento da tendência antissocial foi originado a partir da de-privação sofrida quando criança, do abandono sofrido quando adolescente, e consequentemente a perda da esperança.
Porém, é interessante quando no filme “Hannibal”, Hannibal Lecter, agora bem mais velho, parece desenvolver certo afeto pela agente Clarice. Onde, apesar da mesma dinâmica superficial, é estabelecido um relacionamento e embora envolvida no caso por sua busca, Hannibal não a fere. Pelo contrário, no final o filme nos dá a entender que para fugir da polícia, não vendo outra saída, Hannibal corta sua própria mão. Mas antes ele pergunta se ela pediria a ele para parar, “Se me ama, pare?” ao qual Clarice responde “Nem daqui a mil anos.” O que levanta uma questão; teria sido esta novamente a expressão de uma esperança de cura?
BIBLIOGRAFIA
GABBARD, G. O. Psiquiatria Psicodinâmica. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006.
FERRAZ, F. C. Perversão. 5. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013.
QUINET, A. As 4+1 condições da análise. 10 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
WINNICOTT, D. W. Privação e delinquência. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
WINNICOTT, D. W. (1956) Tendência Antissocial. In: Da Pediatria à Psicanálise: textos selecionados. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2000. 406 p.
WINNICOTT, D. W. (1958) Psicanálise do sentimento de culpa. In: O Ambiente e os Processos de Maturação. 1. ed. Porto Alegre: Artmed, 2007. 19-30 p.
(Artigo postado em 25/01/2016 no site psicologakarlak.com.br)
Por KARLA KRATSCHMER - CRP 06/121815
- Formada em psicologia, desde o início dedica-se ao atendimento clinico que é voltado a adolescentes e adultos;
- Atua em consultório particular localizado na Chácara Santo Antônio, na região das ruas Verbo Divino e Alexandre Dumas;
- É articulista e colaboradora aqui no ‘O blog do Werneck’ e esporadicamente em outros sites e blogs; e
- Nas horas vagas gosta de brincar de artista, e tem como hobbie o desenho e o trabalho com peças em MDF.