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segunda-feira, 16 de junho de 2025

Fake News e Abuso de Poder nas Encenações de Rua e as Implicações no Direito Penal Eleitoral


 


© 2025 Samara Ohanne 

A discussão sobre desinformação eleitoral geralmente gira em torno de redes sociais e mídias digitais. No entanto, práticas analógicas — como a disseminação de fake news presencialmente, de forma organizada e performática — vêm se consolidando como um fenômeno preocupante. Um dos formatos mais sofisticados é o chamado "teatro invisível": simulações encenadas em locais públicos para influenciar eleitores com mentiras articuladas, muitas vezes com aparência espontânea e apelo emocional.

Embora criativa, essa estratégia pode constituir um conjunto de ilícitos penais e eleitorais, especialmente quando feita de forma orquestrada, com recursos não identificados e finalidade eleitoral evidente. Nesse contexto, o Direito Penal e o Direito Eleitoral se encontram para coibir essas práticas por meio de institutos como associação criminosa, abuso de poder econômico, e caixa dois.

1. Organização estruturada: associação criminosa e concurso de agentes

A atuação de grupos que simulam espontaneidade, mas que operam sob planejamento prévio — com divisão de tarefas, escolha de locais estratégicos e treinamento de linguagem — pode caracterizar o crime de associação criminosa (art. 288 do Código Penal):

"Associarem-se três ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes."

No contexto eleitoral, essa associação visa à prática de ilícitos como calúnia, difamação e divulgação de fatos sabidamente inverídicos (art. 323 do Código Eleitoral). Trata-se de um concurso de agentes com finalidade eleitoral ilícita, o que agrava a reprovabilidade da conduta.

Além disso, a própria Justiça Eleitoral tem entendido que a atuação conjunta e premeditada pode ser considerada ato abusivo, especialmente quando se insere no contexto de campanha ou propaganda irregular.

2. Abuso de poder econômico: quando a desinformação é financiada

Quando essas ações são financiadas com recursos humanos, transporte, estrutura logística, panfletagem e pagamento de pessoas para simular naturalidade, há forte indicativo de abuso de poder econômico, nos termos do art. 22 da Lei Complementar nº 64/90 (Lei das Inelegibilidades):

"A cassação do registro ou do diploma será cabível sempre que comprovado o uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade..."

Isso se agrava quando os gastos não são oficialmente declarados, o que nos leva ao crime de caixa dois, previsto no art. 350-A do Código Eleitoral (incluído pela Lei nº 14.197/2021):

"Arrecadar, gastar, doar ou aplicar recursos financeiros em campanha eleitoral, sem origem identificada ou em desconformidade com a legislação..."

Esses recursos podem incluir desde o pagamento de figurantes e atores até impressão de materiais, transporte e aluguel de espaços para facilitar as encenações.

3. Fake news presencial também é desinformação eleitoral

A Lei nº 14.192/2021, que trata da violência política e da integridade nas eleições, reforça a importância do combate à desinformação, seja ela digital ou não. O art. 9º da referida norma criminaliza a propagação de inverdades com potencial de prejudicar o equilíbrio do pleito.

Embora a legislação ainda seja tímida quanto à tipificação específica da "fake news presencial", o arcabouço penal e eleitoral permite atuação firme quando:

  • Os fatos são sabidamente inverídicos;

  • A atuação é intencional e direcionada a manipular a vontade do eleitor;

  • Há vínculo com campanha eleitoral e/ou financiamento irregular.

4. Prova, investigação e responsabilidade

Diferente das fake news digitais, o desafio aqui é probatório. A obtenção de vídeos, testemunhas e documentação logística (como comprovantes de pagamento, locação, mensagens trocadas entre membros da equipe) é fundamental para que o Ministério Público ou o juízo eleitoral possa apurar as cadeias de comando.

O objetivo não é apenas punir os executores — que muitas vezes são contratados por terceiros —, mas responsabilizar os beneficiários diretos, inclusive com a possibilidade de:

  • Inelegibilidade (LC 64/90);

  • Cassação de mandato ou registro;

  • Condenação penal, inclusive com pena de reclusão.

Conclusão: novas formas, velhos crimes

As encenações públicas com desinformação — travestidas de espontaneidade — representam uma nova face de velhos ilícitos: manipulação eleitoral, abuso do poder e fraude ao processo democrático.

Cabe à Justiça Eleitoral, ao Ministério Público e aos juristas em geral reconhecer que o combate à fake news não pode se limitar ao digital. Quando há intenção deliberada, estrutura organizacional e uso de recursos escusos para enganar o eleitor, o Direito Penal Eleitoral deve ser aplicado com firmeza, sem perder de vista os princípios constitucionais da legalidade, da liberdade de expressão e do devido processo legal.

SAMARA OHANNE












-Graduada em Direito pela Universidade Católica de Brasília (2015);
- Pós graduada em Direito Eleitoral pela Universidade Candido Mendes - RJ (2020);
Advogada especialista em direito eleitoral e penal;
-Diretora jurídica  do Instituto de Gestão Política e Eleitoral e
-Autora dos livros:
 -Direito municipal descomplicado e 
 -Manual das eleições.

Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

segunda-feira, 17 de março de 2025

A ausência de política criminal brasileira e a ineficácia punitiva




Autora: Ana Paula Paniza (*)

O conceito de política criminal ainda é celeuma, sendo incerto se esta configura uma ciência autônoma, é ramo da política geral ou ainda ciência dependente e derivada do direito penal.

Entretanto, o objeto de estudo da política criminal é bem definido e essencial, pois importa na estratégia, perfil de produção legislativa e repressão racionalmente programada, a fim de prevenir a criminalidade, retribuir a lesão ao bem jurídico, assim como evitar a reincidência delitiva.

As nações ao redor do mundo necessitam determinar sua política criminal de forma cristalina, para que seus objetivos finais, quanto à criminalidade e sua repressão, sejam alcançados com efetividade.

É certo que com a mudança de mandato governamental, a tendência desta seara pode ser modificada, porém, as bases das decisões político-criminais são comumente demarcadas pela imutabilidade, com o escopo de não gerar insegurança jurídica e estatal.

Os movimentos de política criminal são caracterizados por maior – como o movimento law and order - ou menor intervenção estatal nas condutas consideradas típicas, criminalização de novos comportamentos ou a abolição de dispositivos legais – tendo por exemplo o abolicionismo penal - bem como maior rigor punitivo ou a criação de institutos despenalizantes, formando contraposições e antagonismos entre eles.

Neste diapasão, há de se destacar que para compreender o cenário político-criminal brasileiro, é preciso esmiuçar três movimentos em especial.

Em primeiro plano, deve-se explicar o movimento law and order, situação em que os padrões legislativos penais são recrudescidos, o número de figuras típicas sofre exponencial aumento, ocorre o enrijecimento dos regimes de cumprimento das penas – ou sua progressão – e a impossibilidade de medidas alternativas à pena privativa de liberdade, dentre outras características penais e processuais penais que traduzem perfil rígido e de punição severa.

Já o abolicionismo penal é o polo oposto a este movimento, uma vez que prega a total extinção do direito penal, fundamentando que as condutas consideradas típicas são baseadas em uma consideração humana prévia – muitas vezes comandadas por grupos específicos e minoritários – sugerindo, por consequência, a abolição dos dispositivos penais e na falência completa da pena privativa de liberdade e sua execução.

Por derradeiro, o garantismo penal equaliza ambos os movimentos, trazendo a legitimação da intervenção punitiva através de garantias processuais, utilizando como baliza primordial a Constituição e seus preceitos, protegendo o indivíduo de intervenções estatais arbitrárias, também propagando o desencarceramento e a criação de medidas alternativas à pena privativa de liberdade.

Atualmente, a política criminal brasileira empenha estratégias pertencentes aos três movimentos acima especificados – com tendência ao enrijecimento – o que ocasiona uma falha em atingir os objetivos base, uma vez que os movimentos são conflitantes e opostos entre si.

Para ilustrar o panorama acima exposto, pode-se utilizar como exemplo o Pacote Anti-Crime, promulgado em 2019, que trás o enrijecimento das regras para progressão de regime de pena, trazendo influências do movimento law and order, ao passo que coexiste em nossa legislação a Lei 9.099/95, estabelecendo benefícios processuais como a transação penal (artigo 76, da Lei 9.099/95) e a suspensão condicional do processo (artigo 89, da Lei 9.099/95), a fim de desencarcerar e privilegiar a proporcionalidade da punição à crimes de menor potencial ofensivo, destacando o perfil garantista.

Além disso, há o que se falar da recente decisão do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 635659, entendeu que o porte de drogas não configura crime, sendo passível apenas de punição administrativa, denotando que o abolicionismo penal também exerce suas influências sobre nosso cenário político-criminal.

A estratégia de enfrentamento à criminalidade, a legislação, sua aplicação e a execução das punições divergem entre si, já que não há um perfil concreto de intervenção, muitas vezes causando conflito e dúvidas na aplicação ao caso concreto, tornando ineficaz a persecução penal em completude.

Impossível é combater os níveis de criminalidade, reduzir os níveis de reincidência e uniformizar a aplicação da legislação quando os dispositivos legais possuem comandos e intuitos opostos.

No plano fático, podemos comprovar as assertivas, pois a cada ano presenciamos o aumento de crimes, principalmente os com alto emprego de violência e os níveis de reincidência se elevam a cada dia, demonstrando a imensa ineficácia estatal em sua inexistente política criminal.

Urge a necessidade de unificar a dicotomia que hoje permeia o Poder Público, com o escopo de criar, delimitar e permanecer em linha político-criminal capaz de atingir metas de segurança.

REFERÊNCIAS:

BEZERRA, Alexis Mendes. POLITICA CRIMINAL NO BRASIL? Revista Opinião Jurídica, São Paulo, v. 11, n. 11, p. 46-60, nov. 2009. 
Disponível em: 
file:///C:/Users/carol/Downloads/1852-Texto%20do%20Artigo-6586-6055-10-20171129%20(1).pdf. Acesso em: 18 fev. 2025;

CIT, Franciele. TENDÊNCIAS DA POLÍTICA CRIMINAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO: ENFOQUE MINIMALISTA CONSUBSTANCIADO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988. Revista da Esmesc, Blumenau, v. 23, n. 17, p. 231-258, jan. 2010. 
Disponível: file:///C:/Users/carol/Downloads/biblioteca,+09_ARTIGO+08%20(2).pdf. Acesso em: 18 fev. 2025;

CAMPOS, Marcelo da Silveira; AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. A ambiguidade das escolhas: política criminal no brasil de 1989 a 2016. Revista de Sociologia e Política, [S.L.], v. 28, n. 73, p. 01-19, jan. 2020. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1678-987320287302. Disponível: https://www.scielo.br/j/rsocp/a/vR44MqkgK4qjHYh6kDbxH5S/. Acesso em: 20 fev. 2025 e

SERRETTI, André Pedrolli. A Teoria do Garantismo Penal e a Constituição da República:Um Estudo sobre a Legitimidade da Tutela Penal Estatal. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 12, n. 97, p. 01-30, jul. 2010. 
Disponível: file:///C:/Users/carol/Downloads/admin,+Gerente+da+revista,+RJP+97+-+3+-+Andr%C3%A9+Pedrolli+Serretti.pdf. Acesso em: 20 fev. 2025.

* ANA PAULA PANIZA
















- Graduada pela Universidade Paulista (2020);

- Advogada e assessora jurídica atuante na seara criminal e direito da saúde;

- Fundadora do escritório Paniza Advocacia;

- Vice-presidente da Comissão da Jovem Advocacia da subseção Praia Grande da OAB/SP; e

- Vice-presidente da comunidade Sororidade Jurídica.

Nota do Editor:

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