Autora: Thelma Domingues(*)
Esse texto não tem a pretensão de explanar a reforma psiquiátrica
brasileira, mas tem o intuito de revelar de maneira simples a importância da
reforma psiquiátrica e a discussão de alguns itens da nota técnica 11/2019.
A reforma psiquiátrica no Brasil, na década de 1970, fez parte de um
movimento mais amplo de reforma sanitária que ganhou força na luta pela
redemocratização do país.
A atividade social pelos direitos dos pacientes
psiquiátricos em nosso país se iniciou com o Movimento dos Trabalhadores
em Saúde Mental (MTSM), formado por trabalhadores integrantes do
movimento sanitário, associações de familiares, sindicalistas, membros de
associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internações
psiquiátricas.
É sobretudo este Movimento que passa a protagonizar e a construir
denúncias das violências dos manicômios, da mercantilização da loucura, da
hegemonia de uma rede privada de assistência e a construir coletivamente
uma crítica ao chamado saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico na
assistência às pessoas com transtornos mentais.
Com a experiência italiana, principalmente do psiquiatra Franco Basaglia, o precursor da reforma psiquiátrica italiana, tivemos o movimento conhecido como Psiquiatria Democrática. Essa desinstitucionalização em psiquiatria e sua crítica radical ao manicômio é inspiradora e revela a possibilidade de ruptura com os antigos paradigmas, como ocorreu por exemplo, na Colônia Juliano Moreira, enorme asilo com mais de 2.000 internos no início dos anos 80, no Rio de Janeiro.
Com o
Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado (PT/MG) em 1989, que propõe a
regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção
progressiva dos manicômios no país temos o início das lutas do movimento da Reforma
Psiquiátrica nos campos legislativo e normativo. Porém, é somente no ano de
2001, após 12 anos de tramitação no Congresso Nacional, que a Lei Paulo Delgado
é sancionada no país.
Fernando Tenório (PUC-Rio), diz em entrevista que antes da lei de 2001 que era comum que pessoas com transtornos mentais fossem internadas indefinidamente em hospitais psiquiátricos que funcionavam como asilos, onde sofriam maus-tratos — como mostrado, por exemplo, no livro "Holocausto Brasileiro", da jornalista Daniela Arbex. O autor também fala da importância da lei de saúde mental, vigente desde abril de 2001: "Essa lei é um marco legal muito importante para a reforma psiquiátrica, porque estabelece a internação como um último recurso. O tratamento é preferencialmente em serviços comunitários, e deve ter como finalidade permanente a reinserção social do paciente em seu meio".
A Política Nacional de Saúde Mental compreende as estratégias e
diretrizes adotadas pelo país, com o objetivo de organizar o tratamento e
assistência aos pacientes e seus familiares na área de Saúde Mental. Abrange
a atenção a pessoas com necessidades relacionadas a transtornos mentais
como depressão, ansiedade, esquizofrenia, transtorno afetivo bipolar,
transtorno obsessivo-compulsivo, dentre outros, incluindo aquelas com
quadro de uso nocivo e dependência de substâncias psicoativas (álcool,
maconha, cocaína, crack e outras drogas).
Dentro das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), propõe-se a implantação de uma Rede de serviços aos usuários que seja plural, com diferentes graus de complexidade e que promovam assistência integral para diferentes demandas, desde as mais simples às mais complexas/graves. As abordagens e condutas devem ser baseadas em evidências científicas, atualizadas constantemente. Esta Política busca promover uma maior integração e participação social do indivíduo que apresenta transtorno mental. Os pacientes que apresentam transtornos mentais, no âmbito do SUS, recebem atendimento na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) passa a ser formada pelos seguintes
pontos de atenção (Serviços):
1. CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), em suas diferentes modalidades;
2. Residencial Terapêutico (SRT);
3. Unidade de Acolhimento (adulto e infanto-juvenil);
4. Enfermarias Especializadas em Hospital Geral;
5. Hospital Psiquiátrico;
6. Hospital-Dia;
7. Atenção Básica;
8. Urgência e Emergência;
9. Comunidades Terapêuticas;
10.Ambulatório Multiprofissional de Saúde Mental - Unidades Ambulatórias
Especializadas.
Todos os Serviços, que compõem a RAPS, são igualmente importantes e
devem ser incentivados, ampliados e fortalecidos. O Ministério da Saúde não
considera um "Serviço" sendo substituto de outros, sem estimular mais
fechamento de unidades de qualquer natureza.
No dia 4 de fevereiro de 2019, foi emitida a Nota Técnica 11/2019,autoria de Quirino Cordeiro Junior, intitulada "Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes na Política Nacional sobre Drogas". Três dias depois, Quirino foi exonerado oficialmente do cargo e houve uma suspensão de sua nota pelo Ministério da Saúde. Várias entidades representativas de profissionais, grupos de pesquisa e núcleos do movimento antimanicomial em todo o país vêm manifestando repúdio às propostas da Nota Técnica, assumindo a posição de defender o processo de reforma psiquiátrica no país.
Vamos analisar os quatros pontos mais importantes da Nota Técnica e
suas possíveis inconsistências históricas, éticas e/ou técnicas no campo da
saúde mental, como segue:
1) Inclusão dos hospitais psiquiátricos nas Redes de Atenção Psicossocial
(Raps)
A questão dos hospitais psiquiátricos é que atualmente estão juntos, na
mesma categoria, dos hospitais-dia e com os ambulatórios, com o intuito de
acabar com o processo manicomial. Assim os pacientes em crise que
necessitam de internação, seriam encaminhados aos hospitais gerais para
receberem tratamento na Saúde Mental e em outras especialidades
oferecidas nesses hospitais.
O paciente com a crise controlada, pode ter alta, sendo acompanhado
pelo CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e voltar ao convívio familiar e
social.
A questão mental para quem é contra esta ideia e entendida como um retrocesso, uma vez que os hospitais psiquiátricos isolam e não tratam ninguém, e apenas mantém afastadas "pessoas indesejadas" da sociedade. Os hospitais gerais não estão preparados para receber a ala psiquiátrica, é preciso trabalhar o preconceito e formar uma equipe especializada, sem falar da importância de melhorar os hospitais públicos de nosso país.
Para finalizar, não justifica manter os hospitais psiquiátricos porque os hospitais gerais não estão "prontos" para receber os pacientes psiquiátricos, e sim, melhorar a qualidade dos hospitais e especializar as equipes de trabalho. Será muito rico para os pacientes psiquiátricos e para a diminuição do preconceito dos próprios profissionais de saúde e da sociedade. Muitas vezes os pacientes psiquiátricos possuem doenças de outras especializadas onde e difícil de tratar como de fazer um simples exame, estando no hospital geral, o tratamento será feito e o paciente será visto como um indivíduo e não somente como um paciente psiquiátrico.
2) Financiamento para compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia, mais conhecidos como eletrochoque
A ECT (eletroconvulsoterapia) há tempos é um tratamento para pacientes graves que não respondem a outros tratamentos. É sabido da sua eficácia, porem pode ser usado de forma inadequada, como diz Marisa Helena Alves: "Eu quero que fique bem claro: ele é um aparato terapêutico, médico, aprovado cientificamente que tem que ser feito em centro cirúrgico. Mas pode ser usado de forma inadequada. E a gente tem comprovação, inclusive através das inspeções, que não era feito da melhor maneira — foi usado inclusive como forma de punição. O que a gente tem receio é desse retrocesso, do uso sem restrições, indiscriminado, porque não é para qualquer um. É um procedimento invasivo, como uma cirurgia.
Torna-se difícil prever que, de um dia pro outro, o que era um instrumento de tortura faça-se um instrumento terapêutico.
É um processo terapêutico, mas sem um protocolo, não se sabe bem como será isso pela nota técnica. É preciso mais clareza, mais discussão e uma implementação seria no SUS (Sistema Único de Saúde), sendo a ultima opção de tratamento.
A ECT é muito cara para ser empregada, precisa de centro cirúrgico, anestesia, equipamentos para ressuscitado e equipe especializada. A pergunta é porque investir numa alternativa tão cara, onde ha pouquíssimos hospitais preparados para isso? Por que?
Por que não investir em remédios, pois pelo SUS a opção de medicamentos é super restrita e investir nas terapias de dentro da Rede. Quando trabalhava no CAPS (como estagiária) pude testemunhar a falta de verba até para os materiais mais simples, como papel, lápis para se trabalhar com os pacientes.
Se uma coisa não excluí a outra, primeiro devemos investir no essencial para trabalhar com os pacientes, como remédios e terapias no sentindo amplo da palavra.
Quem não teve a oportunidade de visitar um hospital psiquiátrico publico ou um manicômio judicial, nos dias de hoje, para ver as condições sub-humanas, muitas vezes sem mínimo de tratamento adequado, vai entender que a ETC com um valor exorbitante não condiz com a realidade.
Por que? Se não é feito nem o básico pelos pacientes. Por que a ETC nos lugares onde parece mais um deposito de gente do que hospitais?
E por que? Para que? Para quem?
3) Possibilidade de internação de crianças e adolescentes.
A nota técnica 11/2019, diz: "que não há restrições absolutas para o atendimento de pacientes menores de idade nos Serviços da RAPS, sendo aplicável o bom-senso, a ética e o princípio da preservação da integridade física, moral e da vida do paciente. O melhor interesse do paciente deve sempre prevalecer".
É importante pensar, dimensionar e criar lugares específicos para eventuais internações breves para crianças e adolescentes como por exemplo o CER (Coordenação de Emergência Regional da Barra da Tijuca - Rio de Janeiro / RJ), principalmente para adolescentes. Que existe a internações de crianças e adolescentes não há duvida, mas como se dará essas internações é o problema, o hospital psiquiátrico não deve continuar ser o lugar de deposito e onde crianças e adolescentes doentes de difícil trato podem ser deixadas lá. Precisamos da parceria com a família que se responsabiliza e cuida por seu familiar e o Estado em dar a assistência apropriada para a efetivação e o acompanhamento do tratamento.
Por fim, Antônio Rabelo (UFBA), salienta: "Nunca aconselhei, sempre fui contra. Colocar uma criança internada em hospital tem um efeito iatrogênico [efeito negativo de um tratamento] muito grande. Tirar da vida social, da escola — isso é um trauma irrecuperável para uma criança."
4) Abstinência como uma das opções da política de atenção às drogas
Sobre esse tema especifico, a nota de repudio à Nota Técnica 11/2019 do Conselho Regional das Psicologia de São Paulo relata que o projeto atual refuta a validade das políticas de redução de danos, submetendo as pessoas em sofrimento psíquico decorrente do uso nocivo e abusivo de substâncias psicoativas a uma situação de desamparo. A proposta da criação do CAPS IV AD em regiões de grande número de pessoas em situação de rua e vulnerabilidade se mostra apenas como um dispositivo para internações em hospitais psiquiátricos e em comunidades terapêuticas.
Encaminhamentos para internação sem sequer corresponder aos critérios de avaliação de situações de crises psíquicas não promovem nada além de isolamento, violência e exclusão.
Quando é sabido as comunidades terapêuticas são, instituições privadas, sistematicamente denunciadas e fiscalizadas em razão de situações de maus tratos, práticas de violência e violações de direitos humanos.
Reproduzem o modelo manicomial com estruturas muitas vezes ainda mais precárias e perversas, enraizadas em um pressuposto de que a pessoa em sofrimento psíquico carrega falhas morais e de caráter que precisam ser corrigidas através da espiritualidade e religião.
O sanitarista Paulo Amarante, pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), avalia que os resultados obtidos com a aplicação da Redução de Danos são muito superiores e qualitativos às tentativas de abstinência e que a redução de danos é aplicada com sucesso em diversos países. "Enquanto o mundo inteiro caminha para a mudança, o Brasil volta ao modelo anterior". Segundo ele, o decreto presidencial atende aos interesses do mercado, da "indústria da loucura", tratando saúde e doenças como mercadorias para obtenção de lucros.
Para concluir, após as articulações é possível responder a pergunta do texto: Reforma psiquiátrica brasileira X Nota técnica 11/2019, o que é isso?
É o retrocesso.
"Assim caminha a humanidade, com passos de formiga e sem vontade" (Lulu Santos).
Até a próxima,
Thelma.
-Psicóloga clínica;
-Graduação em Psicologia pela Universidade Estácio de Sá - RJ(2018);
-Pós-Graduação em Psicopedagogia Institucional e Educação Especial pela Universidade Veiga de Almeida - RJ (2014);
-Pós-Graduação em Psicopedagogia Clínica pela AVM-UCAM- RJ(2018)
-Experiência em Saúde Mental na rede de Atenção Psicossocial;
-Atualmente é diretora da Clínica da Ponte(RJ), professora, colunista e palestrante.
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