Autor: Genildo Fonseca(*)
Já não me lembro de muita coisa e de muitos acontecimentos não consigo esquecer.
As lembranças aparecem embaralhadas como trechos de sonhos; às vezes fica difícil recuperar uma palavra. Seria o prenúncio do Alzheimer ou um lapso normal da memória enfraquecida pra quem chegou aos 76 anos?
Já não faço palavras cruzadas, nem exercícios regulares mas ando o dia todo pra cima e pra baixo.
Sinto que é hora do desapego, afinal o futuro é imprevisível e diminuiu de tamanho.
E a dor de dente da semana passada que me castigou por 3 dias e o tombo que levei batendo a cabeça no chão quase sem condições de voltar?
Será a melhor idade essa em que nos tornamos mais fracos, exigentes e reclamões?
A gente quer mais um dia agradável em companhia da justiça, leveza e liberdade .
Longevidade é bom mas exige cuidados .
Árvores plantei muitas e outras derrubei por extrema necessidade, filhos são três e mais 3 netos, livro nem pensar.
Bom mesmo é não abandonar o sonho, não importa o tempo que sobre.
Dormi pouco e já cumpri a rotina diária: medi a glicemia em jejum, fiz o café e a salada de frutas, lavei a louça, tomei os 3 comprimidos da manhã e ainda faltam três.
Quando dá tempo a gente almoça. A Marilu sempre prepara uma comidinha leve e gostosa. Gosto muito quando ela faz aquele arrozinho com rapa na panela de barro, com muito alho e cebola e uma tilápia empanada e quando possível, um tinto chileno. Quando não dá tempo, a gente vai de marmitex do Bar do Alê que entrega em casa.
Quase não jantamos. À noite intercalamos o noticiário das tragédias constantes, desgoverno, aumento da inflação e do contágio com séries e filmes, alguns já vistos.
Ar puro, cercado de verde, saguis, esquilos, borboletas, tucanos, aranhas, marimbondos e taturanas, o que incomoda é o apito nervoso e insistente do trem que passa carregado de commodities para a China.
Antes era romântico ouvir o apito distante e suave da locomotiva.
Pra piorar, o que inferniza o amanhecer na chácara é o latido de mais de 30 cachorros do canil ao lado.
Mas é nosso cantinho onde recebemos os hóspedes de todas as partes que adoram a energia do espaço e costumam dar nota máxima.
O Espaço Viverde, além dos equipamentos de lazer, como tirolesa, piscinas, escalada, sinuca tem ainda " O Recanto do Poeta" dedicado a Vinicius de Moraes, com a cadeira que ele utilizou nos últimos 10 anos de shows e exposição de suas obras.
Ficamos de plantão. Aprendi a consertar algumas coisas, a trocar lâmpadas e gás, a usar a wap, mexer no gerador. Estou quase apto a receber um diploma de caseiro, uma vitória pra quem era tão limitado nestes afazeres.
É nossa sobrevivência, o aluguel permite pagar as contas básicas.
Com a chegada da Covid em 2020, eu que trabalho com shows há mais de 50 anos, tive que cancelar 70 com Toquinho no Brasil, Europa e Irã.
Agora que tínhamos a esperança do recomeço, voltamos ao ponto zero: todos os espetáculos de janeiro e fevereiro foram suspensos.
O stress só não é maior porque alguns amigos da Fadusp me orientaram como enfrentar a fúria dos bancos.
Também o que ajudou foi instalar o aplicativo "não me perturbe".
Ficamos isolados, o que nos protegeu de um lado mas o vazio da solidão é imenso.
Foi uma enorme vitória ter entrado na São Francisco em 1966, o primeiro de 14 irmãos a ingressar numa Faculdade.
Saí do Estadual da Penha e sem cursinho, tive este privilégio." A Paz mantida pelo terror mútuo" foi o tema da redação.
Mas não aproveitei o que aprendi. Era um aluno relapso, dormia na aula, vivia trocando de períodos por conta das viagens na área artística.
Fui buscar o diploma 5 anos depois e a carteira da OAB sem exame quando Collor assumiu o poder.
Após sermos despejados por falta de pagamento da quitinete, na baixada do Glicério (éramos 5 moradores e alguém sempre atrasava,)ouvi pela primeira vez a expressão " purgar a mora", levei o Antônio Marcos, em início de carreira solo, acho que em 1968 pra morar clandestinamente na Casa do Estudante: ele conquistou os boêmios do Ninho das Águias.
Em 69, fiz parte da Excursão dos Duros, minha primeira viagem internacional por 5 países, com 169 dólares.
Também fui figurante na peça " O Estado de Sítio" dirigida por Clóvis Bueno.
Tranquei matrícula em 69 e 70 e tive a sorte de me formar com a turma de 72.
Uma nota trágica ocorreu em 5 de novembro de 1977 quando meu irmão e sócio Juca viajava em meu lugar para um show com Fernando Lona no Teatro Paiol de Curitiba .
Os dois morreram após acidente na BR 116.
Lona, o parceiro de Vandré em "Porta Estandarte" dizia " Olha que a vida tão linda se perde em tristezas assim"...
Nasci na área rural de Echaporã.
Catei algodão e café ainda menino.
Fui engraxate, marmiteiro, office-boy, vendedor de livros quando me mudei pra Capital com 10 anos de idade.
No ano seguinte passei a morar num cortiço da V Sinhá em S. Miguel e lá conheci uns vizinhos interessantes que gostavam de música e poesia.
Foi aí que me tornei empresário artístico do Antônio Marcos.
Desde muito cedo, eu me apaixonei pelas artes. Varava o circo de lona pra ver o Globo da Morte, o Trapézio e as atrações musicais.
Em Echaporã vi pela primeira vez o Mario Zan e Cascatinha e Inhana, de quem me tornaria amigo , anos mais tarde na gravadora Continental.
Inesquecível a despedida de Inhana quando todos choravam e cantavam: “Meu primeiro amor”
“Foi como uma flor que desabrochou e logo morreu”
Também marcante nesta experiência de produtor musical foi ter realizado " A Grande Noite da Viola", em junho de 1981,com os mais expressivos nomes da música.
sertaneja, entre os quais, Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho e o iniciante Almir Sater, com o Maracanãzinho lotado para surpresa de todos já que ninguém imaginava o Rio recebendo pela primeira vez um Festival deste segmento.
Há muita coisa pra lembrar e há outras que é melhor esquecer.
Bom viver mais tempo com saúde, o apoio da família, cercado de amigos e novos desafios.
Importante não ser fardo, nem um alívio mas deixar saudade ainda que por pouco tempo.
Somos tão insignificantes e pretenciosos.
Só ficar mais velho não vale a pena.
Vale a pena ser feliz!
GENILDO GONSECA
Advogado formado pela Universidade de São Paulo (1972) – OAB/SP 99201;
Produtor:
Áreas de atuação: Produção de shows, peças de teatro, coordenação e apresentação de eventos, marketing cultural e gerenciamento de negócios;
Sócio e diretor da empresa Circuito Musical e
Empresário artístico, produtor e assessor jurídico de Toquinho e outros artistas.
Nota do Editor:
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