Caros leitores desta coluna,
Este artigo aborda as práticas unilaterais
das rescisões contratuais nos planos de saúde, sobretudo em casos que envolve a
hipervulnerabilidade dos consumidores.
Discutiremos como essas rescisões
contratuais tidas como abusivas violam os princípios da boa-fé objetiva e as
disposições legais vigentes, especialmente o Código de Defesa do Consumidor
(CDC).
A análise inclui a jurisprudência
relevante e a repercussão social e legislativa dessas práticas, reforçando a
necessidade de uma abordagem justa e ética na relação contratual entre
operadoras de saúde e seus consumidores.
A proteção dos direitos dos
consumidores no Brasil é um tema de extrema relevância, especialmente quando se
trata de contratos de planos de saúde. A aplicação do CDC a esses contratos é
um pilar fundamental para assegurar que as práticas das operadoras sejam justas
e transparentes.
Exatamente por essa razão o Superior
Tribunal de Justiça (STJ) editou a Súmula 608, in verbis "Aplica-se
o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os
administrados por entidades de autogestão".
Esse entendimento é fundamental
para proteger os consumidores que contratam serviços de saúde, garantindo-lhes
direitos e uma relação contratual justa.
Os consumidores são, por
definição legal, vulneráveis. E, em algumas situações, tal vulnerabilidade é
ainda mais acentuada, reconhecida como hipervulnerabilidade, ou vulnerabilidade
agravada, ou seja, situação que vão além da hipótese típica prevista no artigo
4º, inciso I do CDC.
Segundo a doutrina especializada,
essa condição de hipervulnerabilidade se caracteriza como "a situação
social, fática e objetiva de agravamento da vulnerabilidade da pessoa física
consumidora, por circunstâncias pessoais aparentes ou conhecidas do fornecedor"
(MARQUES; MIRAGEM, 2014, p. 201).
Portanto, a hipervulnerabilidade
resulta da combinação da vulnerabilidade intrínseca ao consumidor e da
fragilidade adicional que afeta grupos específicos, como os idosos e crianças.
Pois bem, sabe-se que desde o
final de 2023 algumas Operadoras de Plano de Saúde passaram a resolver
unilateralmente os contratos que envolvem alta sinistralidade, especialmente em
caso de crianças que necessitam (e fazem) algum tratamento especializado (ex.
TEA – Transtorno do Espectro Autista) e, também, casos envolvendo o
descredenciamento de alguns membros (familiares) de contratos de plano de saúde
antigos, sob a alegação de inexistir a condição de dependência econômica.
O contexto dessa prática adotada
pelas Operadoras de Planos de Saúde está na alta sinistralidade desses
contratos/carteiras.
Pois bem, essas práticas são
absolutamente questionáveis sob a perspectiva jurídica e, justamente por essa
razão, desaguaram no Poder Judiciário.
Sob a perspectiva do Direito do
Consumidor não há dúvidas de que os consumidores não podem ser prejudicados
pelas arbitrariedades que resultem unilateralmente na rescisão do contrato e/ou
exclusão de membros do Plano de Saúde contratado (ex. Planos Familiares).
Essas medidas são abusivas e
contrariam à boa-fé objetiva, violando claramente os artigos 113 e 422 do
Código Civil de 2002, bem como o artigo 51 do CDC, inciso IV e §1º, inciso III:
Art. 51. São
nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao
fornecimento de produtos e serviços que:
IV -
estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o
consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a
equidade;
§ 1º
Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
III - se
mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e
conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares
ao caso.
E mais, a boa-fé objetiva
desempenha funções de controle e moderação no exercício de direitos subjetivos,
especialmente quando esses direitos confrontam preceitos de probidade e
lealdade, em conformidade com os artigos 113 e 422 do Código Civil.
Assim, é completamente abusiva a
rescisão contratual de planos de saúde que envolvam beneficiários com
tratamento em curso, pois fere de morte o disposto no art.51, inciso IV e §1º,
inciso III do CDC, especialmente em se tratando de crianças ou idosos que são
consumidores hipervulneráveis.
Tal hipótese também implica na
violação ao art. 13, Parágrafo único, inciso III, da Lei n° 9.656/98 e do art.1º
da RN 19/1998 do CONSU e 8º, § 1º da RN 438 da ANS que obrigam os planos de
saúde a fornecerem um produto semelhante e sem carências.
E, no caso específico de crianças
que necessitam de tratamento especializado para o TEA (Transtorno do Espectro
Autista), existe claramente uma abusiva “seletividade no risco” praticado pela
Seguradora, o que também é vedado.
Felizmente o Poder Judiciário, de
forma geral, têm contornado bem esse problema, conforme o seguinte julgado:
Agravo de
Instrumento – PLANO DE SAÚDE - Ação de obrigação de não fazer - Rescisão
unilateral de plano de saúde empresarial - tutela antecipada parcialmente
concedida para que o contrato seja restabelecido apena em relação aos
beneficiários que estão em tratamento médico – insurgência, postulando a
ampliação da tutela em favor de todos os segurados/beneficiários que são
membros da mesma família - Incidência, por analogia, do art. 13, parágrafo
único, III, da Lei 9.656/98 – ausência do cumprimento pela agravada do dever de
oferecer um plano de saúde sem carências (artigos 1º da RN 19/1998 do CONSU e
8º, § 1º da RN 438 da ANS) dentro da abrangência territorial dos beneficiários.
Viabilidade da manutenção no plano de saúde coletivo, mediante o pagamento
integral da mensalidade – Precedente do Superior Tribunal de Justiça em caráter
repetitivo (Tema 1.082) – presentes os requisitos do art. 300 do CPC –
equilíbrio do contrato mantido já que as condições do contrato permanecerão a
mesma – deferida a tutela - Recurso provido.
(TJ-SP - AI:
21458219820238260000 São Paulo, Relator: Moreira Viegas, Data de Julgamento:
07/07/2023, 5ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 07/07/2023)
Também é abusiva a exclusão de
membros do plano de saúde que há tempos foram admitidos como dependentes, mesmo
deixando constar posteriormente na Declaração de Imposto de Renda do
contratante titular.
De fato, a boa-fé objetiva - que
deve existir em todos os contratos - veda comportamentos contraditórios, sobretudo
quando sempre houve a aceitação tácita do plano de saúde num contrato de longa
duração (ou seja, de trato sucessivo) e que não houve irregularidades. É a
regra do art.113 do CC/02.
Nesses casos, a exclusão dos
dependentes é abusiva e arbitrária, frustrando a legítima expectativa do
consumidor na manutenção do contrato, impondo-lhe desvantagem exagerada, em
favor exclusivo da operadora (CDC, art. 51, IV).
Nossos tribunais também perfilham desse entendimento:
"PLANO DE
SAÚDE. Contrato empresarial. Exclusão do autor dependente ao plano titularizado
pela ex-esposa. Alegada perda da condição de elegibilidade pela operadora. Abusividade
reconhecida na origem, com condenação à manutenção do vínculo contratual –
[...] Exclusão do autor que caracteriza desvantagem exagerada em seu desfavor
Art. 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor Sentença mantida Recurso
desprovido" (TJSP; Apelação Cível 1003698-79.2021.8.26.0642; Relator: Luiz
Antonio de Godoy; 1ª Câmara de Direito Privado; 25/08/2023).
Tais práticas reiteradas de descredenciamento
e resolução "em massa" de contratos envolvendo idosos e/ou crianças em
tratamento (ex. TEA), gerou grande comoção e repercussão na mídia,
intensificando os debates no Congresso Nacional.
E, enquanto não há uma solução
legislativa para o tema, o judiciário vem dando respostas justas e adequadas,
assegurando a manutenção e o direito dos consumidores.
*HOMERO JOSÉ NARDIM FORNARI
-Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie(2000-2004);
-Graduado em CIÊNCIAS CONTÁBEIS pela Universidade de São Paulo - FEA-USP (2003-2008), tendo cursado disciplinas de Finanças, Direito do Comercio Internacional e Direito Comercial na HEC-MONTRÉAL CANADÁ (2006);
-Professor da Universidade Mogi das Cruzes - UMC na Graduação e Pós-graduação, Professor da EBRADI;
-Leciona as disciplinas de Direito Civil, Empresarial e Tributário para os cursos de Direito, Ciências Contábeis e Administração de Empresa;
- Professor da EBRADI
-Mestre em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie (2016);
-Especialista em Direito Processual Civil - Anhanguera-Uniderp.(2014);
- Pós-graduado em Direito Empresarial na PUC-SP (2010);
- Sócio fundador do escritório Fornari e Gaudêncio Advogados Associados;
- Linhas de pesquisa: direito empresarial, direito tributário, direito econômico, direito civil, direito & internet.
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