A mediação é a ideia cujo tempo é chegado, no cenário brasileiro e mundial, nesta segunda década do Terceiro Milênio, justamente logo em seguida à década inaugural dedicada à Cultura de Paz, assim nomeada pela UNESCO.
Este tempo contém um poder maior que todos os exércitos, porém, para que a novel ideia revele todo o seu poder, é preciso que se concretizem novos paradigmas, com a renovação de valores, despindo-se de preconceitos, permitindo que o novo permeie o que existe, operando, assim, a transformação que eleva o ser humano a vibrar em uma oitava superior.
O resgate da prática da mediação, na contemporaneidade, tem o berço nos Estados Unidos, na década de 1.960, que prima pelo pragmatismo, e na França, que se arroga da tradição milenar que lhe é reconhecida de sistematizar as novas idéias, buscando fundamento na filosofia, atualizando este conhecimento na conformidade dos novos paradigmas.
A mediação não se presta a desafogar o Judiciário, mas, se trata de um mecanismo capaz de buscar o aprimoramento dos meios de acesso à justiça para promover a transformação do conflito, valorando o uso da palavra para esta atividade humana, estimulando o diálogo e a comunicação.
No Brasil, com toda a força da ideia cujo tempo é chegado, a mediação vem como resposta a uma crise do Judiciário, sem precedentes, que exige uma reflexão sistematizada para que se aproveite a oportunidade de aprimoramento. Trata-se de um sintoma que anuncia o descompasso entre o modelo de acesso à justiça existente e o ideal de justiça universal, que paira sobre a humanidade, nesse momento histórico, pois, em tempos de mundialização, não cabe mais entender o mundo nesta divisão simplista - mundo oriental e mundo ocidental – quando as relações humanas estão se construindo com base na complexidade do conhecimento, que leva em conta o sentimento expresso pela palavra.
Há uma crença forjada pela repetição na história de que, em tempos de crise é que nascem as oportunidades que criam campo fértil para as revoluções das idéias, dos costumes e do modo de ser e de agir, das pessoas e das instituições. Daí a importância de se atribuir à mediação esta qualidade de uma ideia cujo tempo é chegado.
Neste contexto, a ideia da mediação representa uma trajetória histórica, tratando-se de um instrumento de humanização do acesso à justiça, tendo como valor fundamental a palavra, este atributo do ser humano que ainda não se compreende, em sua plenitude, visto que misto de concreto e de espírito. A palavra articulada pelo homem guarda, em si, um mistério a ser revelado.
Em decorrência desta qualidade, a mediação pode ser preventiva, portanto, sua atuação pode ocorrer sem a existência de conflito.
O ponto de partida da mediação não é o conflito, mas, ela se posiciona antes dele, o mais próximo possível da nascente. Por meio da presença qualificada do mediador, os protagonistas são levados a um questionamento e à efetiva conscientização dos limites do impasse, até então em campo nebuloso, pois desconhecem a fonte primordial da inadequada comunicação que vincula os sujeitos de um conflito latente ou expresso. E a mediação presta-se ao resgate da via da qual, inconscientemente, desviaram-se para o atalho.
Munidos destes recursos pessoais adormecidos, os mediandos são capazes de construir uma comunicação adequada e cristalina. Por isso, é incorreto dizer que mediação é uma forma de resolução de conflitos. No entanto, os norte-americanos reduzem a mediação, unicamente, a esta fórmula, ao lado da conciliação que tem por objeto a celebração de acordo, regida pelo adágio popular: é melhor um mau acordo que uma boa demanda.
O conceito de mediação aqui eleito não é este, norte-americano, mas aquele lapidado pelos estudiosos franceses. Enfim, mediação é uma linguagem, qual seja, trata-se de uma atividade que afasta o julgamento e a exclusão, de qualquer natureza, pois, seu objeto é o exercício da palavra, em busca de compreensão e inclusão, o que só é possível por meio do uso da linguagem ternária - pensamento - sentimento - ação.
A mediação tem um amplo espectro de atuação pois é aplicável a qualquer forma de relação interpessoal.
Na França existe a mediação familiar, hospitalar, escolar, de comunidade etc. Porém, um campo que se amplia no Brasil é a mediação nas empresas familiares, que exige do mediador o conhecimento da complexidade dos sistemas relacionais humanos que permeiam a atividade empresarial, para que se tenha melhor desempenho no traquejo da linguagem ternária, qual seja a inclusão do sentimento como valor universal, no mesmo plano do pensamento e da ação.
A empresa familiar é toda aquela que gira em torno do eixo familiar, correspondendo a um sonho, um ideal de seus integrantes, ou mesmo da necessidade ou da oportunidade de uma fonte de recursos para sustento de seus membros. Assim, o empresário gera a atividade empresarial e administra o patrimônio que, simultaneamente, pertence à empresa e à família.
É bastante frequente o modelo de empresa familiar que se forma a partir da iniciativa de um membro do casal, dividindo as tarefas com o seu cônjuge ou companheiro, posteriormente, envolvendo os filhos nas atividades e operações empresariais. Evitam a contratação de estranhos, seja para que os recursos financeiros não saiam do grupo familiar, seja para não delegar poder a terceiros.
As empresas familiares[1] preponderam, visto que a maior parte das empresas do mundo nascem de uma pequena atividade de iniciativa dos membros de uma família, e, quando crescem e necessitam de contratação de pessoas estranhas, o poder de decisão continua nas mãos dos fundadores.
A sucessão do poder decisório dessas empresas costuma ocorrer pela hereditariedade, ou pelo planejamento sucessório, mantendo a estrutura familiar personalíssima, porquanto sua constituição seja fundada em uma série de comportamentos específicos da família, provocando particularidades na atuação na empresa, tornando-a diferente das concorrentes.
Além dos conflitos habituais que podem ocorrer em qualquer empresa, como as divergências entre os sócios, diante da tomada de decisões para dar um passo mais largo que o habitual, ou mesmo as escolhas para enfrentar as crises de mercado ou da economia, quando se trata de empresa familiar há forte tendência de mistura das relações.
Em certa oportunidade, atendendo uma empresa familiar formada pela mãe, na presidência que acabava de assumir em decorrência de viuvez inesperada, sem nenhuma experiência tampouco formação profissional para a atividade empresarial, e os cinco filhos nas cinco diretorias criadas para acomodar toda a família, com salários altíssimos, se comparados ao mercado, vivia uma crise financeira que se encaminhava à bancarrota. Havia diagnóstico de uma crise de gestão e os sócios - a mãe com 90% das quotas e os cinco filhos com 2% cada um na participação societária – estavam completamente despreparados para enfrentar as dificuldades.
O consultor da empresa os encaminhou para a mediação, embora se mantivesse no exercício de suas atribuições, prestando serviços especializados. No entanto, como estava na empresa desde áureos tempos, durante seu crescimento sob o comando do falecido cônjuge e pai dos atuais sócios, logo se deu conta de que havia ali uma crise financeira decorrente da atual gestão, da brusca mudança de orientação, distante de uma visão profissional e de experiência de mercado.
Embora os sócios insistissem em realizar as sessões de mediação nas instalações da empresa, o mediador ponderou a garantia do bom aproveitamento daquele trabalho, desde que o espaço físico fosse estranho ao da empresa, evitando a contaminação daquela dinâmica pelos vícios arraigados a sistema empresarial e familiar.
Todos compareceram à primeira sessão de mediação, contratada pela mãe/presidente, porém, aceita pelos filhos/diretores, que depositaram naquele trabalho muitas esperanças de alívio às tensões que viviam, sejam as relacionais, sejam aquelas advindas da insegurança financeira. A sessão inaugural foi difícil, pois não estavam acostumados ao exercício da palavra, com voz para falar de sentimento, razão e ação, em perfeita consonância.
A segunda sessão, uma semana depois, não contou com a participação de um filho/diretor, que se justificou com evasivas, porém, a mãe/presidente comunicou que o filho havia sido convidado para trabalhar numa concorrente, com oferta de salário irrecusável. Este era o único formado em engenharia na especialidade desenvolvida pela empresa, PhD nos Estados Unidos e que representava os sócios nas feiras internacionais, como especialista no assunto.
Diante de tais mudanças anunciadas, instalou-se uma crise entre todos os participantes, pois os filhos/diretores acusavam a mãe/presidente de conluio com o filho/diretor ausente, pois sempre foi o "queridinho" da mamãe, posto que fosse o mais inteligente, o mais bonito, o mais parecido com a mãe, enfim, foi perceptível a crise de identidade daqueles que não investiram em uma formação profissional, embora todos tivessem tidos todas as oportunidades de dedicação aos estudos e à profissionalização.
Todos compareceram à terceira sessão que foi o ponto alto da mediação. A mãe/presidente revelou que percebia a mistura das relações familiares e societárias. Contou que convocou uma reunião de diretoria na empresa, na véspera daquela sessão, e observou que mais parecia o almoço de domingo, que tradicionalmente realizava em sua casa, na ampla mesa da sala de refeições, onde todos tinham assento, repetindo a tradição de seus sogros e fundadores daquela empresa.
A filha/diretora concordou com aquele relato e asseverou que se dera conta deste fenômeno observando o almoço de domingo, no qual o tema central foi a gestão da empresa e a necessidade de obter um empréstimo bancário para fazer face ao pagamento do décimo-terceiro salário, para o qual não haviam feito a devida reserva mensal, como orientou o consultor.
Nesta mesma sessão foi levantado que deveriam tomar providências para reduzir os custos da empresa, sendo que o filho/diretor responsável pelas finanças distribuiu um relatório, demonstrando que a empresa estava “no vermelho” durante todo aquele ano e que ninguém se deu conta. Revelou, ademais, que a remuneração da diretoria era o ponto nevrálgico, posto que em desacordo com as efetivas condições da empresa.
Marcada a quarta sessão para a semana seguinte, sempre no mesmo dia da semana e no mesmo horário, foi cancelada na véspera, pela secretária da presidente da empresa. Este fato era um sintoma de que a ferida foi descoberta e estava causando muita dor. O mediador ficou na expectativa, pois poderiam abandonar a mediação, negando as evidências, ou precisavam daquela pausa para a reorganização dos objetivos.
Diante do silêncio dos protagonistas, na semana seguinte, para não ser distante nem invasivo, porém, demonstrando respeito à regra estabelecida na primeira sessão, qual seja, a reserva de dia e horários fixos semanais, a secretária do mediador telefonou para a secretária da presidente da empresa para saber se estava confirmada a quarta sessão para o dia seguinte, reservado para aquela dinâmica de mediação. Não houve confirmação, porém, a presidente logo telefonou ao mediador, manifestando o desejo de ser recebida isoladamente, sem os filhos.
Esta é uma questão delicada numa mediação e precisa ser analisada caso a caso. O mediador indagou se os demais partícipes estavam de acordo com aquela consulta isolada do grupo, ao que ela respondeu que não os consultou. Prontificou-se a convocar uma reunião para o fim específico de decidir acerca da mediação. No dia seguinte voltou a ligar ao mediador, perguntando se o consultor poderia participar da sessão, ao que foi respondido que sim, desde que todos estivessem de acordo.
Realizou-se a quarta sessão de mediação na semana seguinte, depois desse intervalo de três semanas, com a presença do consultor. Estavam todos completamente mudados em suas convicções iniciais, tomados de uma conscientização amadurecida das dificuldades individuais, reconhecendo as diferenças entre eles. Relataram que conseguiram almoçar no domingo, na casa materna, sem levar as questões da empresa, e realizaram uma reunião na empresa, com a presença do consultor, e conseguiram assumir o papel de cada um na diretoria, com poucos deslizes na mistura com os papéis familiares, com a preciosa colaboração do consultor, elemento estranho à família.
Ao todo foram dez sessões de mediação, com a presença de pessoa estranha à família a algumas delas, como o gerente geral que contrataram, com experiência no mercado, e uma das sessões, por sugestão de um dos diretores, contou com a participação de apenas da presidente e ele, para lidar com questões de conflito pessoal entre eles, mas que refletia nas relações empresariais.
Ajustaram a remuneração do diretor PhD ao patamar da concorrência, com o reconhecimento de que ele tinha um diferencial em relação aos demais, e a presidente concluiu que em lugar de remuneração, estava dando mesada aos filhos, rebaixando-os a uma posição de subserviência à "mamãe".
A presidente foi fazer um curso de liderança para melhorar sua performance na função que lhe era atribuída. Recentemente, depois de dois anos do término da dinâmica da mediação, o mediador teve notícia de que a família vendeu a empresa, depois de recuperá-la financeiramente, obtendo um valor real. Como a mãe tinha 90% da participação societária da empresa, com o produto da venda fez doações aos filhos. Três deles investiram em franquias que lhes garantem rendimentos para se manterem, a filha foi morar na Europa, acompanhando o marido em missão diplomática, e o filho engenheiro PhD é diretor contratado pela empresa que venderam, com alta remuneração, pois ele representa o diferencial trazido pela cultura da família, imprimida pelos avós imigrantes, desenvolvida pelo filho único, pai e marido dos sucessores.
A mediação nas empresas familiares é um campo de importante aplicação desse conhecimento, com resultados rápidos, eficazes e eficientes para o fortalecimento da empresa, do patrimônio e das relações familiares, além de evitar litígios intermináveis, que podem inviabilizar a empresa, como muitos casos conhecidos, de poderosos grupos econômicos.
Trata-se de uma oportunidade de reconhecimento e resignificação da função da empresa, naquele momento histórico tanto da empresa como da família. Há, enfim, uma atualização da atividade em relação ao mercado e a oportunidade de avaliar se os sucessores estão realizando uma vocação ou se estão, apenas, servindo de seguidores dos sonhos dos ancestrais.
REFERÊNCIAS
[1] As empresas familiares são muito freqüentes, a exemplo do Grupo Votorantim, que fez um planejamento sucessório com profissionais dos Estados Unidos, para estabelecer os critérios de administração da empresa em caso de morte de seus integrantes da mesma família. O Grupo Pão de Açúcar viveu, publicamente, sérios conflitos entre irmãos que ocupavam a segunda geração da empresa, e se submeteram a uma mediação empresarial nos Estados Unidos. No entanto, há empresas familiares brasileiras cujo conflito familiar por ocasião do divórcio dos fundadores resultou na falência da empresa familiar, ou na venda da empresa por valor irrisório.
BIBLIOGRAFIA
BARBOSA, Águida Arruda. Mediação Familiar Interdisciplinar. São Paulo: Editora Atlas, 2015; e
SIX, Jean-François. Dinâmica da Mediação. Tradução de Águida Arruda Barbosa e outras. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2001.
*ÁGUIDA BARBOSA
-Graduada pela USP (Turma de 1972);
-Doutora e Mestre pela USP;
-Professora;
- Advogada especializada em Direito de Família; e
-Mediadora Familiar Interdisciplinar.
Contato: 11 5531-3388
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