O Brasil é um estado laico- ao menos em tese. No seguinte artigo, será estudado como em um país tão religioso, a crença acaba se transformando em poderosa "arma política".
É certo que, desde que o homem passou a se organizar em sociedade, ou até mesmo antes disso, a crença em um Ser Superior e Transcendental está presente em sua cultura, sendo capaz de influenciar a raça humana de um modo que nenhum outro fator foi capaz de influenciar.
Mudanças climáticas, necessidade de se alimentar, fizeram com que o homem procurasse cavernas, se agrupasse com outros semelhantes, aprendesse a plantar. A crença no religioso, por sua vez, fez com que ele construísse pirâmides sem quase nenhum maquinário, perseguisse e matasse seus semelhantes, e abrisse mão de suas plantações para oferecê-las a sua divindade.
Se o homem evoluiu, e seu modo de organização em sociedade também, é certo que os moldes em que a religião é capaz de afetá-lo também se dinamizaram com o tempo. A vida civilizada passou a ser governada por representantes eleitos. A religião, é ministrada por aqueles que aparentemente receberam um dom do chamado divino. Neste sincretismo político-religioso, insere-se a atual sociedade, sendo certo que ambos são a mais concreta demonstração de poder existente.
Isto posto, chega-se ao tema que este breve Artigo pretende tratar: o ponto comum em que política e religião se cruzam, os limites morais que devem ser observados e o poder de influência da religião nas urnas, observados sob a égide da liberdade religiosa e da necessidade da lisura do pleito.
2 BRASIL: UM PAÍS LAICO
Por definição, segundo MICHAELIS (p. 355): "Estado laico é estado leigo, secular (por oposição a eclesiástico)".
Neste sentido, conforme Celso Lafer (p. 226):
"Uma primeira dimensão da laicidade é de ordem filosófico-metodológica, com suas implicações para a convivência coletiva. Nesta dimensão, o espírito laico, que caracteriza a modernidade, é um modo de pensar que confia o destino da esfera secular dos homens à razão crítica e ao debate, e não aos impulsos da fé e às asserções de verdades reveladas. Isto não significa desconsiderar o valor e a relevância de uma fé autêntica, mas atribui à livre consciência do indivíduo a adesão, ou não, a uma religião. O modo de pensar laico está na raiz do princípio da tolerância, base da liberdade de crença e da liberdade de opinião e de pensamento."
Interessante observar que, muito embora o Estado Brasileiro se proponha a desvincular a atividade Estatal da fé, tanto é verdade que o preâmbulo da Constituição Federal não faz menção a Deus, tem-se observado uma gradativa vinculação do mesmo a aspectos religiosos, prova disso é a expressiva bancada evangélica ora vislumbrada.
Corroborando este entendimento, Mezzomo (p. 168) esclarece que:
"Foi nas eleições presidenciais de 2010 que o voto evangélico, o peso da religião e de questões de natureza moral sobre a esfera pública brasileira revelaram-se de forma contundente. Dilma Roussef, que viria a se sagrar vencedora do pleito, durante a campanha visitou igrejas e lançou, no início da propaganda eleitoral, um documento chamado "Carta Aberta ao Povo de Deus", no qual, além de reconhecer a importância do trabalho das igrejas de confissão evangélica na sociedade brasileira, assumia o compromisso de deixar para o Congresso Nacional "a função básica de encontrar o ponto de equilíbrio nas posições que envolvem valores éticos e fundamentais, muitas vezes contraditórios, como o aborto, formação familiar, uniões estáveis e outros temas relevantes tanto para as minorias como para a sociedade brasileira".
Diante das definições colacionadas, não se pode negar que, em realidade, o Brasil não se aproxima concretamente de todos os ideais inerentes à noção de um Estado Laico. A grande ironia é que no país vislumbra-se o seguinte: ao Estado não é permitido interferir na religião, algo extremamente benéfico. Resta responder se a recíproca é verdadeira: à religião também não é possível interferir no Estado?
3 DA FIGURA DO ABUSO DE PODER POLÍTICO
Diversos fatores podem influenciar a vontade do eleitor: a simpatia face aos ideais de determinado partido, o carisma do candidato e a empatia às propostas de governo são maneiras lícitas de conquistar o eleitorado. O que não é tolerado no ordenamento jurídico eleitoral está na utilização de recursos econômicos ou de facilidades advindas de cargo público para "conquistar" o eleitor, culminando na captação ilícita de sufrágio, concessão de benefícios ao eleitor, ou no descumprimento de preceito legal para fins eleitoreiros.
Costa (p.353) conceitua o abuso de poder político da seguinte maneira:
"Abuso de poder político é o uso indevido de cargo ou função pública, com a finalidade de obter votos para determinado candidato. Sua gravidade consiste na utilização do múnus público para influenciar o eleitorado, com desvio de finalidade. Necessário que os fatos apontados como abusivos, entrementes, se encartem nas hipóteses legais de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92), de modo que o exercício de atividade pública possa se caracterizar como ilícito do ponto de vista eleitoral."
O legislador não quedou-se inerte diante desta possibilidade. Ao editar a Lei nº 9.504/1997, inseriu os artigos 73 a 78, disciplinando as chamadas Condutas Vedadas aos Agentes Públicos em Campanhas Eleitorais, visando a coibir as condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais. O Princípio Igualitário, conditio sine qua non para a manutenção da democracia garante não só a legitimidade das eleições, como também zela pela probidade administrativa e "incentiva" a moralidade no exercício de cargos eletivos.
Ainda neste sentido, a Lei Complementar 64/1990 estabelece que:
"Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político (...)"
Pela análise do dispositivo, percebe-se que os chamados abusos eleitorais (abuso de poder econômico, político, de autoridade ou uso indevido dos veículos de comunicação) são causas que ensejam a propositura da Ação de Investigação Judicial Eleitoral – AIJE.
A AIJE como hoje se vislumbra é uma inovação no Direito Eleitoral que, antigamente, consistia apenas em um meio de produção de provas para um futuro Recurso Contra Diplomação (RCD). Hoje, ela é meio processual hábil para declarar inelegibilidade e cassar o Registro de Candidatura.
As consequências advindas de uma condenação em sede de AIJE deixam clara a gravidade que o legislador intentava conferir aos abusos eleitorais. A pena de inelegibilidade constitui, sem sombra de dúvida, uma das maiores sanções a serem atribuídas a um político, pois se afastar do cenário eleitoral, mesmo que apenas por 3 (três) anos, pode levá-lo ao esquecimento do eleitorado,comprometendo irremediavelmente sua carreira política.
Exatamente diante da grandiosidade da sanção, forçosa alguma cautela para admitir a configuração do abuso. Destarte, o Tribunal Superior Eleitoral tem entendido que, para a configuração do abuso, é necessário demonstrar a gravidade do fato. Neste ponto, a chamada "Lei da Ficha Limpa" (LC 135/2010) introduziu um inciso no art. 22 da Lei das Inelegibilidades (LC 64/90), a saber:
"Art. 22. (...)
XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam."
É contumaz a controvérsia doutrinária a respeito do abuso de poder político, no sentido em que nem a Constituição nem o Código Eleitoral o definem precisamente. Neste sentido, parece razoável que, além de considerar o rol do artigo 73 da Lei das Eleições, atente-se também ao caso concreto. Preciosa, portanto, a contribuição de Reis (p. 258):
"É na realidade dos fatos que se deve buscar a verificação do eventual ato abusivo. É preciso, na hipótese, que o próprio candidato ou qualquer de seus apoiadores esteja no exercício de cargo, função ou emprego públicos que lhes possibilitem demonstrar capacidade para a solução de problemas pessoais dos eleitores ou carrear recursos materiais ou serviços para a campanha."
Em suma, pode-se definir o abuso de poder político como um ato omissivo ou comissivo, realizado por agente público independentemente da natureza de sua investidura, numa conjuntura eleitoral, em contrariedade à norma jurídica, e que, em razão de sua gravidade, seja capaz de macular o pleito eleitoral, tanto em benefício quanto em malefício de determinada candidatura.
4 DO ABUSO DO PODER RELIGIOSO
Conforme já explanado, cada vez mais a religião tem se inserido no processo eleitoral, fazendo surgir a recente figura do Abuso de Poder Religioso, mediante o qual, não somente candidatos, mas também agremiações partidárias, valem-se da influência da Igreja para, revestindo-se da figura de ministros da fé, comprometem a regularidade da disputa pelo eleitorado, acabando por influenciar quase que decisivamente o resultado dos pleitos.
Neste diapasão, Cutrim:
"Mas o poder religioso é novidade das mais recentes eleições. Não só porque passa por cima das leis humanas e das leis de Deus, mas devidos aos meios e artifícios utilizados pelas lideranças políticas, tudo com o indigesto aval das lideranças religiosas.
As condutas vão desde o registro de números de candidaturas de fácil vinculação com números bíblicos, arregimentação de discípulos de células como cabos eleitorais, pedidos de votos na porta das igrejas até os apelos mais emocionais possíveis no altar, durante os cultos de celebração, com uma suposta base equivocada na Palavra de Deus."
Neste contexto, resta claro que um pedido de voto advindo do sacerdote, em sua conotação quase divina, em geral alguém que contribuiu para a caridade realizada pela instituição religiosa, tem o condão de acuar o eleitor, que se sente obrigado a retribuir pelos ensinamentos e obras realizados pelo candidato no círculo religioso. Em alguns casos, o pedido de voto configura verdadeiro assédio ao eleitor.
Não poderia ser diferente. O Brasil é um dos países mais majoritariamente cristãos do mundo, sendo que quase a totalidade da população possui religião. Os sacerdotes possuem, por conseguinte, grande apelo sobre as pessoas.
Muito embora a aceitação dos líderes religiosos seja notória, sob o apelo de que irão restaurar os valores, em especial àqueles ligados à família, interessante citar Cutrim que atesta:
"Se é verdade que por meio das eleições os cristãos almejam uma mobilização que faça revigorar valores perdidos na sociedade, cuja ausência tem culminado com o aumento da violência, também se pode afirmar que esses mesmos cristãos devem ser exemplo a partir de seus atos políticos, seguindo o caminho mais correto possível."
O maior problema enfrentado neste contexto é que as mensagens eleitoreiras proferidas são de difícil percepção, visto que se encontram travestidas de discurso religioso. Ainda que assim não o fosse, também não há de se esperar que os fiéis os denunciem, de modo que o controle pela Justiça Eleitoral torna-se ainda mais dificultoso.
A despeito disso, tem-se encontrado sucesso em algumas empreitadas. Em agosto de 2.015, o Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais julgou procedente duas ações movidas contra três deputados, dois deles eleitos, sendo os mesmos cassados e declarados inelegíveis pelo período de oito anos. Na ocasião, teriam realizado evento sob pretexto de culto religioso na cidade de Belo Horizonte, sendo que nele foram distribuídos materiais de campanha e houve pedido expresso de voto.
Em outro caso, este no Rio de Janeiro, também foi reconhecido o abuso de poder religioso, em sede de Recurso Eleitoral, cuja ementa resultou na seguinte[1]:
"RECURSO ELEITORAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2012. USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO. ABUSO DO PODER RELIGIOSO. UTILIZAÇÃO DA IGREJA PARA INTENSA CAMPANHA ELEITORAL EM FAVOR DE CANDIDATO A VEREADOR. PREGAÇÕES, APELOS E PEDIDOS EXPRESSOS DE VOTOS. CITAÇÕES BÍBLICAS COM METÁFORAS ALUSIVAS AO BENEFICIARIO. PESQUISAS DE INTENÇÃO DENTRO DOS CULTOS. DISCURSOS DO CANDIDATO NO ALTAR. DISTRIBUIÇÃO DE MATERIAL PUBLICITÁRIO NA PORTA DA IGREJA. PRESSÃO PSICOLÓGICA RELATADA EM DEPOIMENTOS TESTEMUNHAIS. VIOLAÇÃO À MORALIDADE, à LIBERDADE DE VOTO E AO EQUILÍBRIO DA DISPUTA AO PLEITO. POTENCIALIDADE LESIVA IRRELEVANTE. GRAVIDADE DA CONDUTA CONFIGURADA. MANUTENÇÃO DA CASSAÇÃO OU DENEGAÇÃO DO DIPLOMA DO CANDIDATO E DA INELEGIBILIDADE DE TODOS OS REPRESENTADOS. DESPROVIMENTO DO RECURSO.
1) A entidade religiosa, enquanto veículo difusor de doutrinas apto a alcançar um número indeterminado de pessoas, é talvez o meio de comunicação social mais poderoso de todos, porquanto detém a capacidade de lidar com um dos sentimentos mais intrigantes e transcendentais do ser humano: a fé. 2) Os depoimentos testemunhais demonstraram que os pastores representados, muito mais do que apenas induzir ou influenciar os fiéis, efetuaram, ao longo do período eleitoral, uma pressão para que votassem no candidato indicado pela igreja, incitando um ambiente de temor e ameaça psicológica, na medida em que levavam a crer que o descumprimento das orientações, que mais pareciam ordens, representaria desobediência à instituição e uma espécie de desafio à vontade Divina.3) O abuso da confiança de um sem número de seguidores, representou conduta violadora à liberdade de voto e ao equilíbrio da concorrência entre candidatos.4) Propósito religioso que restou desvirtuado em prol de finalidades eleitoreiras, corn templos transformados em verdadeiros comitês de campanha, cuja localização em áreas humildes da região pressupõe em princípio, mais suscetível a manipulações.5) A prática vem se mostrando cada vez mais frequente na sociedade, levando alguns estudiosos a vislumbrar uma nova figura jurídica dentro do direito eleitoral: o abuso do poder religioso. Apesar de não possuir regulamentação expressa, tal modalidade, caso não considerada como uso indevido dos meios de comunicação, merece a mesma reprimenda dada as demais categoriais abusivas legalmente previstas.6) Recurso desprovido."
Conforme se vislumbra, também não fugiu à apreciação dos magistrados a pressão psicológica realizada por candidatos ligados ao sacerdócio. Também não se pode olvidar da grande propagação realizada em situações como esta, tendo em vista a profundidade do alcance da religião no país. Acertadas, portanto, as decisões em comento.
5 CONCLUSÃO
Diante do exposto, é possível perceber que embora se viva em um país laico, cujos princípios se pautam pela não interferência das crenças religiosas na administração do país, o que se vislumbra é uma via de mão única: ao passo em que não é lícito ao Estado intervir na Igreja, esta tem cada vez mais feito parte do Estado.
A premissa, muito embora pareça nociva, não o é de todo. Grande parte da população, que nunca se sentiu verdadeiramente representada por seus políticos, vê na imagem do líder religioso eleito alguém com quem pode se identificar, e que lhe inspira maior confiança na administração do país.
O que não é lícito é que o candidato ligado ao âmbito religioso se utilize das paixões advindas da crença para assediar os fiéis. A ele basta usufruir do carisma de líder que já lhe é inerente, o que por si só, já constitui vantagem o bastante – esta porém, lícita.
Não se pode tolerar que cultos religiosos se transformem em palanques, ou a mensagem divina, em mensagem subliminar e eleitoreira. É neste diapasão que o Direito Eleitoral, ciência dinâmica que é, deve se adaptar a este fenômeno cada vez mais recorrente e relevante, a fim de combater quaisquer atitudes capazes de alterar o resultado limpo das eleições.
Assim, muito embora o abuso de poder religioso seja mais difícil de detectar que o abuso de poder econômico, por exemplo, e em especial, não seja tão denunciado em razão da fé que nutrem os fiéis em relação aos infratores da legislação eleitoral na condição de sacerdotes, é certo que a jurisprudência já tem evoluído no sentido de tipificar, descrever e penalizar este tipo de abuso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito Eleitoral. Editora Lumen Júris. 2011;
CUTRIM, Mirla Regina da Silva. Abuso do Poder Religioso: uma nova figura no direito eleitoral? Disponível em <http://asmac.jusbrasil.com.br/noticias/2388379/abuso-do-poder-religioso-uma-nova-figura-no-direito-eleitoral>. Acesso em 20/05/2016, às 20:38;
LAFER, Celso. Estado Laico. In: Direitos Humanos, Democracia e República – Homenagem a Fábio Konder Comparato. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2009;
MEZZOMO, Frank Antonio; BONINI, Lara Grigoleto. O religioso em contexto político-eleitoral: eleições proporcionais de Campo Mourão/PR. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 11, Set. 2011;
MICHAELIS: Minidicionário Escolar da Língua Portuguesa. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 2000 e
REIS, Márlon. Direito Eleitoral Brasileiro. Editora Alumnos. 2012.
[1] Disponível em < http://inter03.tse.jus.br/sadpPush/RecuperaArquivo.do?sqImagemDoc=1274840>. Acesso em 30/05/2016, às 19:45.
POR MARINA ALMEIDA MORAIS
-Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica em Goiás;
-Advogada atuante no Direito Público e Eleitoral; e
-Colaboradora da Revista Jurídica Verba Legis.
Nota do Editor:
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