Autores: Luiz Fernando Afonso Rodrigues (*)
Camila Mendonça dos Santos
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF é uma ação proposta ao Supremo Tribunal Federal com o objetivo de evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do poder público. A ADPF não pode ser usada para questionar a constitucionalidade de lei e, pode ser proposta pelos mesmos legitimados a ajuizar a Ação Direta de Inconstitucionalidade.
A ADPF 828 que tratarei neste artigo foi proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, em 15 de abril de 2021, sendo processado o pedido pelo STF ainda nesse período num cenário pandêmico, tendo como objetivo interromper ações de despejo, desocupações ou remoções forçadas com o intuito de garantir a proteção à moradia, por conta do contexto de uma pandemia mundial. Na ação foram apontados no pedido, como preceitos fundamentais a serem defendidos, o direito à vida, à saúde, à dignidade da pessoa humana e o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil de construir uma sociedade justa e igualitária, indicando juntamente, todos os dispositivos constitucionais. Contudo, não indicaram o ato do poder público atacado. Contudo, o que era uma medida inicialmente com data marcada para terminar, acabou sendo protelada, com acréscimo de novas medidas para retomada das desocupações, o que acabou gerando certa insegurança jurídica quanto ao real direito de propriedade no país.
No presente texto explanarei sobre a aplicabilidade dessa ADPF, relacionando o direito constitucional da propriedade, sua função social e outros direitos pertinentes à temática. A questão levantada não é para atacar o direito à garantia de moradia, mas debater sobre o real direito à propriedade e manutenção de sua posse e de que forma ela se torna ameaçada com a aplicação da ADPF em questão.
Ademais, esse estudo serve como reflexão e pensamento crítico acerca do cenário de insegurança jurídica que permeia o ordenamento jurídico brasileiro ao implementar medidas sociais que violam direitos fundamentais em detrimento de outros.Antes de se dar início ao debate central do tema deste estudo, é importante contextualizar o conceito de propriedade dentro do nosso ordenamento jurídico e diferenciá-lo do conceito de posse.
De maneira resumida, pode-se dizer que a propriedade é um direito real, que confere ao proprietário o poder de gozar, usar e dispor da coisa, de forma exclusiva, dentro dos ditames legais, podendo inclusive reivindicá-la de quem a detenha injustamente. Deste modo, a previsão legal pode ser encontrada hoje no art. 5º, caput, e inciso XXII, da Constituição Federal, e no art. 1.228 que reza: "O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha".
Desde então, no que se refere aos direitos reais, a nossa Magna Carta proporcionou um cenário de segurança e estabilidade para todos àqueles que dispõe de propriedades privadas. Com a conquista desse direito, e sua segurança prevista na CF/88, surgiu, ao mesmo tempo, a preocupação em conciliar o interesse privado com o público, de forma que o referido direito fosse exercido em consonância com o bem-estar geral da sociedade, em razão da função social da propriedade. Importante destacar que o tópico encontra previsão legal no art. 5º da CF, inciso XXIII, e no art. 170: " A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existências digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios, no inciso III, da função social da propriedade."
Após a formulação do requerimento junto ao STF, todos os Estados e a Advocacia Geral da União – GU, foram intimados para se manifestarem acerca dos pedidos formulados. Importante dizer aqui que, a Advocacia Geral da União, bem como os demais Estados-membros foram contrários às exigências contidas na petição inicial, ressaltando, todos, que o STF não detém de legitimidade para legislar positivamente acerca do tema, tendo em vista a inviabilidade de aplicação de políticas públicas pela União, cabendo a cada ente da federação adotar as medidas materiais e administrativas que visem a impedir os desalojamentos, e que seria inviável regularizar a nível nacional problemas que são encarados a nível local.
É interessante ressaltar um trecho da manifestação proferida pelos estados e constante no acórdão da liminar, especificamente na página 16, parágrafo 11, e que vai ao encontro central do ponto que será levantado aqui: "[,] impedir que o Poder Público, em todo e qualquer caso, realize atos de remoção, ensejaria a instalação de um quadro de instabilidade social, caracterizado pelo incentivo das ocupações irregulares, com grave risco de comprometimento de estruturas públicas essenciais à manutenção dos serviços públicos".
Detalhadamente, a referida liminar foi deferida em 03/06/2021, em decisão proferida pelo Ministro Luís Roberto Barroso, suspendendo pelo prazo de seis meses, despejos, desocupações e/ou remoções de natureza coletiva, tudo em âmbito nacional e desconsiderando os apontamentos realizados pelos Estados e pela AGU. Entretanto, o que era para ser apenas uma medida a curto prazo visando proteger a garantia à moradia, passou a ser uma ameaça ao direito de propriedade. Além disso, em que pese o período estipulado de vigência da suspensão de todas as desocupações em território nacional, a liminar foi renovada no mês de novembro de 2021, pelo prazo de mais um ano.
Exatamente no dia 22 de maio de 2022, foi decretado o fim do estado de calamidade pública, devidamente veiculado pela Portaria GM/MS nº 913, do Ministério da Saúde.
Assim, o contexto fático que fundamentou a liminar e todo o pedido da ADPF, deixou de existir. Porém, ainda sim, a medida continuou, por decisão do Ministro Roberto Barroso. Os novos abalizadores da liminar foram o avanço da fome e a queda de renda per capita do brasileiro após a pandemia. O STF modificou a liminar da ADPF para alterar o regime de reintegração de posse, acrescentando medidas obrigatórias para efetivação das desocupações, medidas essas que estão além das previstas em lei, e que na prática, são de difícil cumprimento, como será explicado mais adiante.
O teor da tutela concedida e agora, alterada, determinava a instalação imediata de comissões de conflitos fundiários pelos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, que deveriam realizar inspeções judiciais no local do litígio e audiências de mediação previamente à execução das desocupações coletivas, inclusive em relação àqueles cujos mandados já haviam sido expedidos. Além disso, determina a liminar o encaminhamento das pessoas em situação de vulnerabilidade social para abrigos públicos ou adoção de outra medida eficaz para resguardar o direito à moradia, vedando, em qualquer caso, a separação de membros da mesma família.
Sobre as determinações contidas na decisão, é necessário desde já, levantar dois pontos. O primeiro, é que, ainda que as medidas de conciliação devam ser o melhor caminho afim de se solucionar um litígio, este deve ser tomado por livre espontânea vontade das partes, e não uma medida obrigatória que condiciona o restante do procedimento para efetivar a desocupação.
E segundo, a medida tornou obrigatória o destino das famílias desocupadas como condição para cumprimento da desocupação, o que por si só, dificulta um processo que já é litigioso. Além disso, a obrigatoriedade de instalação de comissões de conflitos pelos tribunais mencionados ensejaria a necessidade de contratar profissionais para cumprimento fiel das exigências contidas na liminar. Ou seja, em rápida leitura pela decisão proferida, conclui-se que se tornou inviável a manutenção do direito à propriedade. É sabido que foi de grande importância a determinação de suspensão de liminares que determinavam despejos por falta de aluguel durante a pandemia e o princípio da proteção à moradia tem sua importância e deve ser defendido, mas de forma ponderada e dentro dos ditames legais.
Entretanto, em leitura do acórdão proferido e, posteriormente, em manifestação acerca da alteração da liminar, interpreta-se que não houve equilíbrio e nem ponderação no que se refere à aplicação das determinações contidas na liminar ferindo o direito de propriedade e trazendo insegurança jurídica. No mais, as regras de transição para a volta do procedimento de despejo nem sequer observou e nem fez menção àquelas propriedades que cumprem ou não sua função social, valendo dizer que, aquelas que não cumprem, devem ser submetidas a um procedimento diferente.
Ademais, é considerável destacar que o direito de propriedade também é um instrumento de fomento da economia do país, e colocar barreiras para o seu pleno exercício constituí não somente um posicionamento que se desatenta à Constituição, mas também como uma forma de ativismo judicial desamparado pela lei e que deve ser evitado em respeito ao equilíbrio e harmonia entre os poderes institucionais.
*LUIZ FERNANDO AFONSO RODRIGUES
-Advogado graduado pela UNIMES (1993):
-Mestre em Direito Civil pela PUC (2006); e
- Professor Universitário na UNISSANTA, ESAMC e UNIP
*CAMILA MENDONÇA DOS SANTOS
-Quintaanista de Direito pela Universidade Santa Cecília;
- Participa de eventos promovidos pela Jovem Advocacia de São Paulo;
-Aprovada no Exame 39° da Ordem dos Advogados do Brasil, e
-Atualmente, trabalha nas áreas Cível e Trabalhista no escritório Bechelli & Coca, em Itanhaém/SP.
Nota do Editor:
Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.